São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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+ sociedade

A disciplina salva

Em "O Poder Psiquiátrico", Foucault ataca a imposição da ordem ao indivíduo por meio de práticas clínicas

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um professor de filosofia que dedica seu tempo a ler tratados de medicina e relatos clínicos.
Como se não bastasse esse emprego inusitado do tempo, ele acredita que tais tratados e relatos não versam apenas sobre problemas técnicos próprios ao saber clínico, mas contam, à sua maneira, a história da razão e de seus processos de racionalização da dimensão prática.
Uma história na qual as estruturas de racionalidade aparecem como organicamente imbricadas em dispositivos de poder, como se a verdadeira história da razão fosse indissociável de uma genealogia do poder só visível quando a reflexão filosófica volta seus olhos ao que está em jogo na constituição de campos empíricos de saberes.
Esse professor de práticas pouco ortodoxas se chamava Michel Foucault. História dos sistemas de pensamento era o nome de sua cátedra, em que ganhou corpo tal projeto de constituição de uma genealogia do poder por meio, principalmente, da reflexão sobre práticas médicas.

Corte epistemológico
Nessa cátedra, Foucault ministrou uma seqüência de cursos que visavam a retomar a idéia-chave de "História da Loucura" [ed. Perspectiva], que consistia em compreender os modos de partilha entre normal e patológico enquanto ponto privilegiado para o desvelamento da solidariedade entre razão e processos de dominação. Dentre tais cursos, "O Poder Psiquiátrico", de 1973-74, foi o que mais claramente se colocou como desdobramento do projeto posto na tese de doutorado. É a ele que o leitor brasileiro tem agora acesso.
De fato, "O Poder Psiquiátrico" [Martins Fontes, trad. Eduardo Brandão, 528 págs., R$ 54,50] começa onde a "História da Loucura" termina, ou seja, no advento da psiquiatria moderna por meio das reformas asilares do início do século 19. Momento duplamente eloqüente, pois, ao menos segundo Foucault, ele marca também um corte epistemológico que implicou na passagem da episteme clássica à episteme moderna.
Essa temática maior de "As Palavras e as Coisas" permitira a Foucault afirmar que só a partir de tal corte aparecia em cena algo como o "homem".
Ou seja, um duplo empírico-transcendental; indivíduo que é, ao mesmo tempo, objeto empírico cujas funções intencionais (desejo, linguagem, trabalho) estão submetidas a sistemas sociais de regras e sujeito transcendental que conhece tais sistemas.
É nesse contexto de passagem à episteme moderna que, pela primeira vez, a loucura será compreendida como doença mental, expressão de uma perda da liberdade sob a forma da "alienação". Da mesma forma, será a primeira vez em que o internamento da loucura aparecerá não apenas como isolamento de quem perturba a ordem social e familiar mas principalmente como dispositivo de cura.

Verdade autônoma
Todo o trabalho de "O Poder Psiquiátrico" consiste em identificar quais as condições para o advento daquilo que a literatura médica da época descrevia como cura.
Digamos que Foucault procura, fundamentalmente, demonstrar como a cura psiquiátrica estava vinculada à implementação de práticas disciplinares visando a reconstrução de uma vontade autônoma.
Como se a prática psiquiátrica fosse, na verdade, um dispositivo de internalização da disciplina enquanto condição para a autonomia -essa mesma autonomia que permitiria ao indivíduo ser reconhecido como sujeito. Como se a verdadeira questão fosse expulsar, por meio da transformação da loucura em doença mental, tudo o que impedisse a constituição desta mais profunda ilusão da razão moderna: uma vontade que determina a si mesma.
Nesse sentido, Foucault seria aquele que nunca cansou de se perguntar: qual o preço a pagar por tal ilusão?


VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "A Paixão do Negativo - Lacan e a Dialética" (Unesp).



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