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+ sociedade
A disciplina salva
Em "O Poder Psiquiátrico", Foucault ataca a imposição da ordem ao indivíduo
por meio de práticas clínicas
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um professor de filosofia que dedica
seu tempo a ler tratados de medicina
e relatos clínicos.
Como se não bastasse esse
emprego inusitado do tempo,
ele acredita que tais tratados e
relatos não versam apenas sobre problemas técnicos próprios ao saber clínico, mas contam, à sua maneira, a história
da razão e de seus processos de
racionalização da dimensão
prática.
Uma história na qual as estruturas de racionalidade aparecem como organicamente
imbricadas em dispositivos de
poder, como se a verdadeira
história da razão fosse indissociável de uma genealogia do
poder só visível quando a reflexão filosófica volta seus olhos
ao que está em jogo na constituição de campos empíricos de
saberes.
Esse professor de práticas
pouco ortodoxas se chamava
Michel Foucault. História dos
sistemas de pensamento era o
nome de sua cátedra, em que
ganhou corpo tal projeto de
constituição de uma genealogia
do poder por meio, principalmente, da reflexão sobre práticas médicas.
Corte epistemológico
Nessa cátedra, Foucault ministrou uma seqüência de cursos que visavam a retomar a
idéia-chave de "História da
Loucura" [ed. Perspectiva], que
consistia em compreender os
modos de partilha entre normal e patológico enquanto
ponto privilegiado para o desvelamento da solidariedade entre razão e processos de dominação. Dentre tais cursos, "O
Poder Psiquiátrico", de 1973-74, foi o que mais claramente
se colocou como desdobramento do projeto posto na tese
de doutorado. É a ele que o leitor brasileiro tem agora acesso.
De fato, "O Poder Psiquiátrico" [Martins Fontes, trad.
Eduardo Brandão, 528 págs.,
R$ 54,50] começa onde a "História da Loucura" termina, ou
seja, no advento da psiquiatria
moderna por meio das reformas asilares do início do século
19. Momento duplamente eloqüente, pois, ao menos segundo Foucault, ele marca também um corte epistemológico
que implicou na passagem da
episteme clássica à episteme
moderna.
Essa temática maior de "As
Palavras e as Coisas" permitira
a Foucault afirmar que só a
partir de tal corte aparecia em
cena algo como o "homem".
Ou seja, um duplo empírico-transcendental; indivíduo que
é, ao mesmo tempo, objeto empírico cujas funções intencionais (desejo, linguagem, trabalho) estão submetidas a sistemas sociais de regras e sujeito
transcendental que conhece
tais sistemas.
É nesse contexto de passagem à episteme moderna que,
pela primeira vez, a loucura será compreendida como doença
mental, expressão de uma perda da liberdade sob a forma da
"alienação". Da mesma forma,
será a primeira vez em que o
internamento da loucura aparecerá não apenas como isolamento de quem perturba a ordem social e familiar mas principalmente como dispositivo
de cura.
Verdade autônoma
Todo o trabalho de "O Poder
Psiquiátrico" consiste em identificar quais as condições para o
advento daquilo que a literatura médica da época descrevia
como cura.
Digamos que Foucault procura, fundamentalmente, demonstrar como a cura psiquiátrica estava vinculada à implementação de práticas disciplinares visando a reconstrução
de uma vontade autônoma.
Como se a prática psiquiátrica fosse, na verdade, um dispositivo de internalização da disciplina enquanto condição para
a autonomia -essa mesma autonomia que permitiria ao indivíduo ser reconhecido como
sujeito. Como se a verdadeira
questão fosse expulsar, por
meio da transformação da loucura em doença mental, tudo o
que impedisse a constituição
desta mais profunda ilusão da
razão moderna: uma vontade
que determina a si mesma.
Nesse sentido, Foucault seria
aquele que nunca cansou de se
perguntar: qual o preço a pagar
por tal ilusão?
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "A Paixão
do Negativo - Lacan e a Dialética" (Unesp).
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