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A viagem iniciática
Convivendo com os jivaros entre 1976 e 1978, o antropólogo francês Philippe Descola buscou desvendar o enigma de um povo irreligioso, individualista e anarquista, mas sem pátria nem Estado
JACQUES MEUNIER
Estava faltando um livro digno de crédito,
um livro de ciência, de
paciência e de empatia sobre os índios jivaros. Está aqui. E a dificuldade não era pequena, pois os jivaros prezam ao extremo sua
independência.
Disseminados pela alta Amazônia, no Piemonte andino,
deslocando-se a cavalo na fronteira do Equador e do Peru,
mantêm entre eles relações tão
complexas quanto móveis, turbulentas e incessantes -algo
que, na ausência de dados teóricos, por muito tempo os manteve à distância de qualquer
compreensão extrínseca.
O belicismo, as "cabeças encolhidas", a zarabatana e o curare durante muito tempo garantiram a má reputação dos jivaros. Sua irreligiosidade, sua
desenvoltura sexual (eles são
polígamos) e sua anarquia social escandalizaram os primeiros missionários.
Em 1889, o abade François-Pierre escreveu: "A família jivaro é um lupanar no qual a devassidão mais desavergonhada
é exposta sem restrições nem
pudor", e, em 1895, o padre Vacas Galindo os descreveu como
"materialistas", "sensualistas"
e "positivistas extremos".
Aqui, como em outras paragens, o olhar colonial transforma qualidades em defeitos.
As civilizações orais são analfabetas, os homens que andam
de pés nus se transformam em
miseráveis vagabundos, os
não-crentes são tachados de
ateus, e mesmo seu saber em
matéria de taxidermia e preparações químicas (drogas e venenos) é desqualificado, pois os
cronistas não enxergavam neles mais que práticas ocultas,
perversos desvios da ciência.
Não mencionemos o nonsense histórico que representa
seu sistema social, o grau zero
de integração. Sim, os jivaros
desafiam as leis fundamentais
da sociologia: individualistas
sem pátria, anarquistas sem
Estado, autarquistas espontâneos que têm a guerra por nervo social, eles souberam tornar
viável o invivível "estado de natureza" de Thomas Hobbes.
Philippe Descola conhece o
paradoxo jivaro pessoal e profundamente. Ele parte para o
terreno jivaro com a bagagem
do acadêmico formado na Escola Normal [em Paris] e o
olhar aguçado do estruturalista. Ele vai pesquisar na região
do rio Pastaza, no Equador, durante mais de dois anos e meio.
O grupo achuar, o "povo das
palmeiras", distribuído em
grupos familiares distantes e
autônomos, forma uma tribo
molecular de cerca de 4.500 indivíduos, mas, devido aos conflitos de fronteira, o etnólogo
só irá abordar aqueles que vivem na parte equatoriana.
Insubmissos
Como os xuares, os aguarunas e os huambisas, os achuares
são jivaros. Falam um dialeto
que os liga aos outros e, pelo estilo de vida, o gosto pelas vendetas e o senso da dívida (sem
falar em sua obstinação em viver nos moldes de seus antepassados), formam o derradeiro bastião dos insubmissos.
Em "As Lanças do Crepúsculo", Descola lhes rende uma homenagem fundamentada ao
mesmo tempo em que declara
-com a emoção controlada de
um Lévi-Strauss- a parte subjetiva de seu empreendimento.
"A Amazônia desconcerta os
engenheiros da mecânica social
e os temperamentos messiânicos; ela é o terreno predileto
dos misantropos razoáveis que
amam, no isolamento dos índios, o eco de sua própria solidão, que são ardentes em defesa dela quando vêem ameaçadas sua sobrevivência, sua cultura e sua independência, não
para conduzi-los a um destino
melhor, mas porque rejeitam
ver imposta a outros a grande
lei comum à qual eles próprios
sempre tentaram se esquivar."
Em "As Lanças do Crepúsculo", Descola adota o tom da crônica para melhor oferecer uma
aula de etnologia. Procedendo
por quadros, sob a desculpa de
narrar a vida cotidiana, mostra
como a teoria se articula com o
vivido. Cada recordação evoca
um tema, e cada tema uma reflexão ou o ponto de partida de
uma tese inédita.
Essa maneira de proceder,
que pode parecer sistemática,
possui a vantagem de mostrar o
eterno trabalho de aprendiz do
etnólogo, a formação de sua
sensibilidade e de sua autoridade, sem jamais perder de vista
os fatos e os gestos daqueles
que ele estuda.
Assim, a primeira qualidade
deste livro é sua sutileza. Descola nunca se deixa cair em clichês nem na teoria pronta. Possui o dom de farejar o sentido
onde existem apenas fatos.
Se bem que são os achuares
que, em última análise, vão lhe
emprestar sua lógica e, além do
caráter de cada um, das histórias e das anedotas privadas,
lhe permitirão apreender um
perfil social, uma personalidade -em suma, os mil caminhos
pelos quais se interiorizam as
regras difusas da comunidade.
A comunidade? Apesar de
sua propensão à discórdia e à
atomização, os achuares são ligados a ela pela língua, pelo sistema de parentesco, pela troca
de bens, pelas técnicas de caça e
de pesca, por sua maneira de viver o tempo em vários registros, por sua crença em espíritos malignos, por seu consumo
da droga ayahuasca e até mesmo, na adversidade, pela violência ritualizada.
Apesar de seu voto de objetividade, Descola toma partido, e
"As Lanças do Crepúsculo", ao
narrar uma caçada a porcos selvagens ou recolher os relatos de
sonhos e de cânticos votivos,
nos apresenta uma verdadeira
"defesa e ilustração" do pensamento selvagem.
Descola fala a língua dos
achuares. Isso lhe permite atenuar o caráter aproximado das
informações que recebe e evitar as fantasias -os fantasmas- do intérprete. Ele recorta e reconstrói o que é dito, para
recolocá-lo em cena numa récita cursiva.
A vantagem dessa abordagem é que os mitos, por exemplo, não são "biblificados" ou
"vitrificados" na página do livro
e que os índios que os relatam
não são seres genéricos, mas
pessoas que vivem numa dada
situação, que têm um nome e
que habitam sua palavra.
Parte da paisagem
De passagem, Descola aproveita para dizer que a etnologia
não é "um acúmulo empírico de
conhecimentos" nem "uma estética do relativismo" nem
tampouco "uma hermenêutica
das culturas" e que ela nos ensina a amar a humanidade "sob
seus outros rostos".
Sem cair no viés autocentrado da "etnologia de si mesmo",
Descola não esquece que faz
parte da paisagem que descreve: ele se observa observando.
Com mais de 500 páginas, dividido em 24 capítulos, com um
prólogo, um epílogo e um post
scriptum, "As Lanças do Crepúsculo" apresenta um inventário quase completo da vida jivaro. O etnólogo toma o tempo
necessário para nos apresentar
seus amigos, nos conduz às roças e à taxonomia das plantas
cultivadas, nos faz assistir diretamente à fabricação de uma
zarabatana ou participar de
uma pescaria.
As doenças, as trocas, o xamanismo e a morte são evocados com o mínimo de distância
que caracteriza o profissional e
o discreto senso de teatralidade
que qualifica o escritor.
A caça, o bestiário amazônico
e até mesmo o status dos cães
domésticos: nada é esquecido
no livro. Descola compartilha
com os jivaros -que dispõem
de 42 nomes diferentes para
designar as formigas e distinguem 33 espécies diferentes de
borboletas- a paixão insaciável pela zoologia. Podemos
imaginar que isso lhe deve ter
valido um pouco de estima e
muita amizade nessa região.
Nada escapa do olhar do "jivarólogo". Ele observa, por
exemplo, que o pirilampo ganha o nome de "yaa", como as
estrelas. Ele faz o inventário
dos diferentes tipos de discurso
e de elocução, que, na conversa
ritual, exercem o mesmo papel
que o bemol ou o sustenido nas
partituras musicais.
Apoiando-se nos estudos de
sua companheira, Anne Christine Taylor, ele propõe uma
teoria nova para explicar as
"cabeças encolhidas" e faz uma
descrição quase pontilhista das
mulheres. Também lhe acontece de praticar uma espécie de
humor discreto, à maneira dos
ingleses.
Para explicar a brevidade das
relações sexuais entre os jivaros, escreve: "É verdade que,
com a alta concentração de insetos desagradáveis e de plantas hostis, a natureza nessas latitudes não incita ao prolongamento exagerado do amor ao ar
livre". Mais adiante, falando do
tédio e das civilizações lentas,
do tempo ampliado, ele arrisca
uma hipótese, sem, entretanto,
atribuir crédito demasiado a
ela: "Os índios parecem sofrer
de tédio tanto quanto nós sofremos -um pouco menos, talvez, graças à diversão que lhes
proporcionamos-, e me pergunto se as vendetas que pontilham suas vidas não são, para
eles, um modo de, de quando
em quando, escapar do cinza do
cotidiano". É verdade que essas
são duas anotações furtivas.
Hoje os achuares abandonaram a lança e o escudo -eles
possuem fuzis. Muitos deles
aderiram à Federação dos Centros Xuares do Equador, organização indígena muito influente no país, e rejeitam o etnônimo "jivaro", termo que é
visto como colonial e racista.
O fuzil, tabu para a caça
Isso não impede sua "jivaridade" de se expressar.
Prova disso é o fato de que o
fuzil, a nova arma de caça e de
guerra, torna-se "tabu" para a
caça se já matou um homem na
guerra. Ele poderia poluir a
presa. É preciso livrar-se dele a
qualquer preço, trocando-o
com alguém da periferia que
não tenha tomado conhecimento do conflito.
O etnólogo conta muitas histórias nas entrelinhas, como o
costume cotidiano do vômito, a
escolha de um "amik" (o amigo
cerimonial), o "vampirismo" da
mandioca ou o canto dos xamãs, todos momentos raros de
etnologia narrativa.
O próprio título, "As Lanças
do Crepúsculo", mostra que o
autor assimilou bem a filosofia
antinômica dos jivaros. De um
lado, revela a descontinuidade
dos dias e a continuidade do
tempo, fala do pavor de ver os
inimigos mortos retornarem
para se vingar; mas também,
com a cumplicidade do autor,
faz o voto piedoso da sobrevivência e a apologia da esquiva.
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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