São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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ARTES PLÁSTICAS
Intervenções da artista americana aliam "poesia" a tecnologia
Proteja-se de Holzer

SHEILA GRECCO
da Redação

"A propriedade privada criou o crime." "Quem pensa que é importante é louco." "Divirta-se, já que você não consegue mudar nada." Depois de iluminar morros no Rio de Janeiro com frases entre filosóficas e irônicas, o trabalho da artista plástica Jenny Holzer está em São Paulo, em sua primeira mostra individual na América Latina. Hoje é o último dia para ver a exposição, que segue para Buenos Aires e Cidade do México.
A mostra traz três instalações inéditas: "Toaster", que ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 1991; "Lustmord", coleção de ossos envoltos em argolas de metal, com inscrições representando a violência sofrida pelas mulheres; e "Mother and Child", letreiros multicoloridos que tratam do relacionamento humano.
A curadoria do evento é do designer Marcello Dantas. Ele acredita que "uma linha de Holzer pode ser mais iluminadora que uma sessão de análise". Em "Toaster", há uma babel linguística de textos, traduzidos por Mauro Pinheiro e os poetas Antonio Cicero e Leonardo Fróes.
Nascida em Ohio (EUA), Holzer, 49, se projetou internacionalmente em 1982, quando veiculou suas frases nos luminosos da Times Square, em Nova York. Autora do que ela define como "truísmos", frases curtas e provocantes, Holzer utiliza todo tipo de suporte -pôsteres, placas de metal, bancos de mármore ou granito, bonés, camisetas, TV e Internet. "O artista tem de estimular a reflexão, independentemente do meio", explica Holzer. Seu trabalho se aproxima de um novo conceito de arte pública, que se apropria tanto dos espaços convencionais quanto dos mais inesperados, como pedras ou o Parlamento Alemão, em Berlim. Neste ela realizou uma polêmica instalação, com um painel eletrônico que transmite textos de Hitler a Helmut Kohl.
De seu estúdio em Nova York, Jenny falou à Folha, por telefone, respondendo de maneira bem-humorada e econômica, a exemplo de seus "truísmos".

Folha - O seu trabalho usa diversos suportes, dos letreiros em neon à Internet. Você acredita que as novas tendências das artes devam aliar a tecnologia à criatividade?
Jenny Holzer-
Alguns tipos de arte, sim, é claro, tendem a misturar tecnologia com criatividade, mas outras não têm nada a ver com tecnologia. A pintura e os desenhos continuarão a ser feitos simplesmente com as mãos. Ainda que isso possa ser agilizado e incrementado com a informática, nada substituirá o trabalho e a sensibilidade. Quando há a possibilidade de junção de ambas as coisas, o resultado é sempre inovador. No meu trabalho, utilizo também a tecnologia para ver como as pessoas reagem ao acúmulo e à rapidez de informação.

Folha - Por que você abandonou a pintura abstrata e decidiu lidar com as palavras?
Holzer -
Por uma série de razões. Uma das principais é simplesmente porque eu não era boa o suficiente (risos). Outra, e a mais importante de todas, é que a arte abstrata não era capaz de lidar com o que acontecia de concreto no mundo. A descoberta dos truísmos foi mais forte para mim do que a pintura abstrata.

Folha - Como foi a experiência de pichar muros com Keith Haring, um dos expoentes da arte americana nos anos 80?
Holzer -
Trabalhei com Keith em muitos projetos. Foi muito reveladora nossa parceria e contribuiu muito para o que faço em termos de desafio de linguagem.

Folha - Os truísmos são uma espécie de poesia concreta?
Holzer -
Eu gostaria, mas não são (risos). Creio que eles são mais básicos e simples do que poesia. Meus truísmos são o mínimo de palavras necessárias para expressar o máximo de idéias.

Folha - Quais são as suas relações com a poesia?
Holzer -
Eu tenho, ao contrário do que se imagina, uma grande distância da poesia. Gosto muitíssimo, mas confesso que todos os grandes poemas que eu admiro me assustam ou me tornam fraca. Então, evito-os ao máximo.

Folha - O curador de sua exposição diz que seus trabalhos valem mais que uma sessão com psicólogo. Você concorda?
Holzer -
Não, mas talvez seja melhor duas sessões de análise depois (risos).

Folha - Qual é o seu público e qual a reação ao seu trabalho?
Holzer -
Geralmente os jovens são os mais receptivos. Há pessoas que ficam profundamente irritadas, me disseram que era uma irresponsabilidade colocar material tão subversivo nas ruas, houve protesto de ecologistas, outros me disseram que era extremamente engraçado, outros choraram depois de ler "Mother and Child".

Folha - A arte pública tem maior capacidade de comoção?
Holzer -
Por vezes, ela pode provocar debates no cotidiano das pessoas, na ida ao trabalho. Eu adoro e faço arte pública, mas uma das minhas principais ocupações é ir a museus.

Folha - Suas mensagens teriam uma relação especial com o Brasil, já que os "ditados" fazem parte do nosso cotidiano, em especial entre os caminhoneiros, que os utilizam como frases de auto-ajuda?
Holzer -
Eu creio que parte da boa recepção se deva a isso, trabalho com o conhecido, com os considerados clichês. A descoberta não está na mensagem, mas na forma como isso é apresentado.

Folha - Quais são as fronteiras entre arte, publicidade e comunicação de massas, pessoal e privado, uma vez que seu trabalho lida com todas essas bases?
Holzer -
Isso está vinculado com as circunstâncias concretas. Dependendo do trabalho, essas fronteiras mudam. Creio que deve haver um limite entre o meu trabalho e a publicidade, caso contrário perderia a especificidade de uma obra. O artista veicula idéias e não produtos.

Folha - A tão falada perda da "aura", tal como proclamava Walter Benjamin, não lhe assusta?
Holzer -
Estou feliz com o que faço e jamais parei para pensar nisso. O importante é provocar a reflexão "aqui e agora", no cotidiano das pessoas.

Folha - Você costuma dizer que "a propriedade privada criou o crime" e que "a elite é inevitável". Isso é mais real em países como o Brasil?
Holzer -
O truísmos falam de tudo, desde circunstâncias políticas a relacionamentos pessoais. Essas frases fazem parte de um contexto maior. É claro que as desigualdades sociais são mais evidentes e chocantes em países como o Brasil. Mas a minha crítica pretende ser mais abrangente e vai contra o tipo de relacionamento, mesquinho, subumano que pode se dar em qualquer lugar, Brasil, EUA etc.

Folha - Como foi criar arte a partir de discursos políticos? O envolvimento direto da arte com a história não corre o risco de torná-la panfletária?
Holzer -
No Reichstag, no corredor da entrada dos políticos, coloquei um dispositivo eletrônico que repete uma grande seleção de discursos feitos ali desde o século passado até a atualidade. A montagem não é didática, acho que aí está a distância do panfletarismo.

Folha - O fato de ser feminista levou-a a construir a obra "Lustmord" (assassinato sexual)?
Holzer -
O fato de lutar pelos direitos humanos, mais do que pelo feminismo, instigou-me a construir "Lustmord". Espero que essa obra chame a atenção para a tortura e a repressão sofrida por mulheres, os estupros em especial, na Guerra da Bósnia. Mas não é uma obra datada, no sentido de que a banalização da violência ocorre a toda hora.

Folha - A arte é instrumento de mudanças?
Holzer -
Instrumento de reflexão, o que já é um passo.


A exposição
"Proteja-me Do Que Eu Quero" - Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, São Paulo, tel. 0/xx/11/ 5080-3000). Hoje, das 10 às 19h. Entrada franca. Os truísmos da artista podem ser lidos e modificados no site: http://adaweb.com/cgi-bin/jfsjr/truism




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