São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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O tecido aparente

A antropóloga Nina Jablonski publica nos EUA amplo estudo sobre a pele humana, que aborda a cor, o tato e até variantes robóticas

Matt Dunham - 22.mai.2003/Reuters
O artista John Kamikaze realiza performance preso por ganchos em suas costas e pernas em loja de departamentos em Londres


CLIVE COOKSON
A pele é o maior e mais visível órgão do corpo humano. Sua riqueza e sua complexidade biológicas só são excedidas pelas do cérebro e do sistema imunológico. E, agora, ela enfim está ganhando o livro que merece.
Ainda que existam muitos manuais de saúde e beleza no mercado para explicar de que maneira obter uma aparência radiante, Nina Jablonski escreveu a primeira obra voltada ao grande público que cobre a pele humana em todos os aspectos -"à maneira de uma antiquada história natural", na definição da autora.
O fascinante do livro de Jablonski ["Skin - A Natural History", Pele - Uma História Natural, University of California Press, 290 págs., US$ 24,95, R$ 54] é tão abrangente quanto a própria pele. A autora, professora de antropologia na Universidade Estadual da Pensilvânia, trata de tópicos que vão da história evolutiva da pele a perspectivas futuras, tais como peles robóticas ou eletrônicas, passando por temas como suor, cor, tato e dermatite.
No processo, ela demonstra que a pele é não apenas crucial para nossa saúde como também um importante veículo para a expressão pessoal. Uma combinação de três atributos torna a pele humana única no reino animal.
Primeiro, ela não é revestida por pêlos e sua. Segundo, é produzida naturalmente em ampla variedade de cores, "um fascinante arco-íris em sépia", nas palavras de Jablonski, que varia do marrom escuro ao branco marfim pálido. Terceiro, ela é uma superfície para decoração, de maquiagem e outras formas de pintura temporária a cicatrizes e tatuagens.

Macaco aquático

A falta de pêlos abundantes é uma característica humana tão singular que atraiu a atenção de muitos cientistas e teóricos amadores, que apresentaram grande variedade de explicações pouco convencionais -da caça ao piolho a uma herança relacionada à natação durante a evolução dos hominídeos.
Jablonski torpedeia de maneira efetiva a teoria do "macaco aquático", que conquistou imensa popularidade nos anos 1960 e continua a contar com partidários ainda hoje. A idéia é que nossos ancestrais teriam passado por uma fase semi-aquática alguns milhões de anos atrás, durante a qual teriam perdido a maior parte dos pêlos de seus corpos, ganho uma camada de gordura subcutânea e se tornado bípedes.
Jablonski aponta que, embora a pele nua represente uma vantagem para animais puramente aquáticos tais como baleias e golfinhos, porque reduz o atrito, implica desvantagem para animais que dividam seu tempo entre a água e a terra e tenham necessidade de regular a temperatura do corpo quando se transferem de um para o outro meio.
É por isso que lontras e focas, por exemplo, têm seus corpos recobertos por pêlos espessos que servem como isolamento. E a forma dos hominídeos jamais foi longilínea o suficiente para a natação e as manobras rápidas requeridas quando é preciso escapar de predadores aquáticos.
O livro demole outras teorias sobre a ausência de pêlos nos seres humanos, como a hipótese, mais recente, de que isso talvez sirva para reduzir doenças causadas por parasitas que infestam cabelos (o que requereria que nossos antepassados tivessem começado a usar roupas muito mais cedo do que de fato aconteceu).
Jablonski acredita que os primeiros seres humanos perderam a maior parte de seus pêlos a fim de se manterem refrigerados em ambientes quentes. Os seres humanos suam mais profusamente do que outros animais, e a pele nua permite que o suor se evapore de forma mais rápida, refrigerando o corpo ao fazê-lo.
Jablonski oferece uma explicação complexa, mas convincente, para os motivos da perda de pêlos entre os seres humanos, ao contrário do que aconteceu com outros primatas.

Refrigeração
Essencialmente, o estilo de vida de nossos ancestrais africanos e o rápido aumento do tamanho e da produção de energia em seus cérebros requeria refrigeração mais eficiente do que era o caso quanto a outras espécies.
E o melhor mecanismo de refrigeração era suar o mais rápido possível em um corpo desprovido de pêlos. A maioria das pessoas pode produzir um litro de suor por hora num deserto quente e, em alguns casos, até três litros (a cabeça humana manteve os cabelos para proteger o couro cabeludo da radiação do sol tropical). "Sem uma profusão de glândulas sudoríparas para nos manter resfriados por meio de um suor copioso, ainda teríamos o espesso manto de pêlos de nossos ancestrais e viveríamos vidas semelhantes às dos macacos", escreve Jablonski.
"Jamais teríamos desenvolvido nossos cérebros de funcionamento a quente ou nossa capacidade de manter elevado nível de atividade mesmo sob o calor do dia e nos locais mais quentes. [...] Foi o velho, simples e nada elegante suor que tornou os seres humanos aquilo que hoje são".
Assim que os seres humanos perderam os pêlos, a cor da pele se tornou extremamente importante. Pigmentação é o campo de estudo em que Jablonski se especializa, e ela emprega bem os seus conhecimentos para explicar as duas principais forças evolutivas que estabeleceram o gradiente de cores predominantes da linha do Equador aos pólos.
As pessoas que vivem sob o forte sol dos trópicos precisam de níveis elevados de melanina, o principal pigmento da pele, a fim de absorver a radiação ultravioleta -que de outra maneira causaria danos insustentáveis a biomoléculas essenciais, especialmente o DNA e o folato (substância vital ao sucesso na reprodução).
Em latitudes mais altas, no entanto, a proteção contra os raios ultravioleta é menos importante do que permitir que a pele absorva luz solar, quando a pele gera vitamina D por meio de fotossíntese, e isso requer uma coloração menos intensa.
Uma observação que se aplica de maneira consistente em todo o mundo é que as mulheres têm a pele naturalmente mais pálida que a dos homens, em cada grupo étnico, dada exposição semelhante ao sol. Alguns biólogos que estudam a evolução explicam a diferença por meio da seleção sexual: os homens preferem mulheres menos pigmentadas como parceiras, talvez porque pele mais clara esteja associada à infância (em todas as populações, os bebês têm a pele mais clara, as pessoas tendem a adquirir tom mais escuro na juventude e voltam a empalidecer na velhice).

Homens e mulheres
Mas Jablonski prefere uma explicação bioquímica: as mulheres requerem mais vitamina D do que os homens, durante a gestação e a amamentação, para garantir que o esqueleto do feto e bebê se desenvolva apropriadamente -e por isso produzem menos melanina, já que esta bloqueia o sol.
"Pele" é um belo trabalho em termos de estilo e conteúdo, ainda que haja, inevitavelmente, certas máculas e omissões. Fiquei decepcionado, por exemplo, com o fato de que o capítulo sobre cabelo (ou sua falta) não tenha explicado por que os homens são mais hirsutos do que as mulheres e algumas raças mais hirsutas do que outras -ou, aliás, porque os homens ficam calvos.
Em termos mais sérios, a exposição científica de Jablonski sobre o efeito da radiação ultravioleta na pele -uma passagem importante de seu livro- é obscura, mesmo para alguém que disponha de conhecimento prévio sobre fotoquímica. E, surpreendentemente, em se tratando do trabalho de uma antropóloga, ela não discute aquilo que pessoas de eras e regiões diferentes do mundo sentiam sobre suas peles, mesmo que descreva as técnicas físicas que empregavam para decorá-las e marcá-las.
No cômputo geral, porém, "Pele" é um livro fascinante e instigante. Jablonski diz que sentia grande respeito pela pele antes de começar o trabalho, e que seu respeito aumentou ainda mais ao concluí-lo. Os leitores de seu trabalho provavelmente sentirão a mesma coisa.
CLIVE COOKSON é editor de ciência do "Financial Times", onde este texto foi publicado.
Tradução de Paulo Migliacci.


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