São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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Antiliteratura de viagem

Volume reúne cartas de William James, que criaria o pragmatismo, em expedição pelo Brasil no século 19

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Um livro precioso se encontra à venda, ainda que por importação: "Brazil through the Eyes of William James" (O Brasil pelos Olhos de William James), editado em versão bilíngüe pela historiadora Maria Helena P.T. Machado. São apenas 18 cartas à família do fundador do pragmatismo americano (ao lado de Charles Sanders Peirce), um diário que cobre apenas uma semana dos oito meses despendidos no Brasil em 1865-66 e a narrativa inacabada "Um Mês no Solimoens".
Acompanhados de 16 desenhos, mais esboços que desenhos, mal compõem um volume -mas que volume. William James contava só 23 anos quando se engajou na célebre Expedição Thayer ao Brasil, liderada pelo não menos célebre e controverso naturalista suíço-americano Louis Agassiz (1807-73).
À primeira vista, não haveria muita coisa de interesse nas cartas efusivas e confessionais que o jovem dirige a familiares, com suas lamúrias sobre a varíola e subseqüente quase cegueira contraída no Rio.

África e França
A capital ora lhe aparece como a concepção materializada de cidade africana, ora como civilizada urbe dotada de livrarias e restaurantes franceses. Mas William já era William James, e Agassiz, mais Louis Agassiz do que nunca.
Como explica Machado na informativa introdução "O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico", Agassiz viera ao Brasil na condição de correspondente assíduo do imperador dom Pedro 2º, professor e fundador do Museu de Zoologia Comparada de Harvard e ativo defensor de idéias racistas contra a miscigenação, num país mergulhado em Guerra Civil (enquanto por aqui prosseguia a Guerra do Paraguai).
Os interesses da viagem eram muitos e ambiciosos. Abrangiam da busca de apoio empírico para as convicções antievolucionistas do "Professor" a negociações diplomáticas sobre a abertura da bacia Amazônica para a navegação internacional e até mesmo registro fotográfico da suposta degeneração de mulatos, mamelucos e cafuzos.
James não era ainda um participante ativo desses debates em seu país, mas um estudante de medicina da Nova Inglaterra, admirador reticente da exuberância de Agassiz. Sua motivação para obter um disputado lugar na expedição permanece obscura. As cartas sugerem algum tipo de busca pessoal ou vocacional (mas não faltam intérpretes para indicar uma compensação heróica ao não-alistamento para o combate na Guerra de Secessão, como haviam feito os irmãos mais novos, mas não ele nem o irmão mais velho, o escritor Henry James).
Seus escritos brasileiros revelam uma personalidade e um pensamento ainda em gestação. Reunidos, oferecem um registro tentativo, oscilante, até mesmo ambíguo da experiência de viagem -sua verdade, seria o caso de dizer, muito pragmaticamente, deve ser buscada nas conseqüências, não tanto em idéias preconcebidas sobre o estrangeiro.

Aceitação
Muito já se escreveu sobre os vários ou parcos fios que conectam a breve temporada tropical de James com sua obra posterior, e ao leitor se recomenda a discussão reconstituída por Machado. Da correspondência salta aos olhos, como também assinala a editora do volume, uma entusiasmada aceitação do convívio com os mestiços estigmatizados por Agassiz, apesar das barreiras lingüísticas e da ocasional exasperação com a indolência amazônica.
"Empatia", na palavra exata escolhida por Machado, é o que exala das linhas de James sobre seu barqueiro e anfitrião no Solimões. "Nunca houve uma classe de pessoas mais decentes do que estas. O velho Urbano, especialmente, por seu refinamento nativo, inteligência e espécie de limpeza e pureza é talhado para ser amigo de qualquer homem que exista, não importando quão elevado seja seu nascimento & bens. (...) Urbano & seus companheiros conversam com tanta beleza e harmonia (...), em um tom suave, baixo e vagaroso, como se a eternidade estivesse à frente deles."
Os editores, sabiamente, diagramaram a citação nas mesmas páginas em que são reproduzidas dubiosas fotografias do estúdio antropológico montado por Agassiz em Manaus, exibindo tanto a nudez constrangida das mulheres mestiças do local quanto o olhar invasivo dos cientistas brancos de Boston. Um livro precioso, enfim.


BRAZIL THROUGH THE EYES OF WILLIAM JAMES
Organizadora:
Maria Helena P.T. Machado
Tradutor: John M. Monteiro
Editora: Harvard University Press
Quanto: US$ 29,95/R$ 66
(230 págs.)



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