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Antiliteratura de viagem
Volume reúne cartas de William James, que criaria o pragmatismo, em expedição pelo Brasil no século 19
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Um livro precioso se
encontra à venda,
ainda que por importação: "Brazil
through the Eyes
of William James" (O Brasil
pelos Olhos de William James),
editado em versão bilíngüe pela historiadora Maria Helena
P.T. Machado. São apenas 18
cartas à família do fundador do
pragmatismo americano (ao lado de Charles Sanders Peirce),
um diário que cobre apenas
uma semana dos oito meses
despendidos no Brasil em
1865-66 e a narrativa inacabada "Um Mês no Solimoens".
Acompanhados de 16 desenhos, mais esboços que desenhos, mal compõem um volume -mas que volume.
William James contava só 23
anos quando se engajou na célebre Expedição Thayer ao
Brasil, liderada pelo não menos
célebre e controverso naturalista suíço-americano Louis
Agassiz (1807-73).
À primeira vista, não haveria
muita coisa de interesse nas
cartas efusivas e confessionais
que o jovem dirige a familiares,
com suas lamúrias sobre a varíola e subseqüente quase cegueira contraída no Rio.
África e França
A capital ora lhe aparece como a concepção materializada
de cidade africana, ora como civilizada urbe dotada de livrarias e restaurantes franceses.
Mas William já era William James, e Agassiz, mais Louis
Agassiz do que nunca.
Como explica Machado na
informativa introdução "O
Adão Norte-Americano no
Éden Amazônico", Agassiz viera ao Brasil na condição de correspondente assíduo do imperador dom Pedro 2º, professor
e fundador do Museu de Zoologia Comparada de Harvard e
ativo defensor de idéias racistas contra a miscigenação, num
país mergulhado em Guerra Civil (enquanto por aqui prosseguia a Guerra do Paraguai).
Os interesses da viagem
eram muitos e ambiciosos.
Abrangiam da busca de apoio
empírico para as convicções
antievolucionistas do "Professor" a negociações diplomáticas sobre a abertura da bacia
Amazônica para a navegação
internacional e até mesmo registro fotográfico da suposta
degeneração de mulatos, mamelucos e cafuzos.
James não era ainda um participante ativo desses debates
em seu país, mas um estudante
de medicina da Nova Inglaterra, admirador reticente da exuberância de Agassiz.
Sua motivação para obter um
disputado lugar na expedição
permanece obscura. As cartas
sugerem algum tipo de busca
pessoal ou vocacional (mas não
faltam intérpretes para indicar
uma compensação heróica ao
não-alistamento para o combate na Guerra de Secessão, como
haviam feito os irmãos mais
novos, mas não ele nem o irmão
mais velho, o escritor Henry
James).
Seus escritos brasileiros revelam uma personalidade e um
pensamento ainda em gestação. Reunidos, oferecem um registro tentativo, oscilante, até
mesmo ambíguo da experiência de viagem -sua verdade, seria o caso de dizer, muito pragmaticamente, deve ser buscada
nas conseqüências, não tanto
em idéias preconcebidas sobre
o estrangeiro.
Aceitação
Muito já se escreveu sobre os
vários ou parcos fios que conectam a breve temporada tropical
de James com sua obra posterior, e ao leitor se recomenda a
discussão reconstituída por
Machado. Da correspondência
salta aos olhos, como também
assinala a editora do volume,
uma entusiasmada aceitação
do convívio com os mestiços
estigmatizados por Agassiz,
apesar das barreiras lingüísticas e da ocasional exasperação
com a indolência amazônica.
"Empatia", na palavra exata
escolhida por Machado, é o que
exala das linhas de James sobre
seu barqueiro e anfitrião no Solimões.
"Nunca houve uma classe de
pessoas mais decentes do que
estas. O velho Urbano, especialmente, por seu refinamento
nativo, inteligência e espécie de
limpeza e pureza é talhado para
ser amigo de qualquer homem
que exista, não importando
quão elevado seja seu nascimento & bens. (...) Urbano &
seus companheiros conversam
com tanta beleza e harmonia
(...), em um tom suave, baixo e
vagaroso, como se a eternidade
estivesse à frente deles."
Os editores, sabiamente, diagramaram a citação nas mesmas páginas em que são reproduzidas dubiosas fotografias do
estúdio antropológico montado por Agassiz em Manaus, exibindo tanto a nudez constrangida das mulheres mestiças do
local quanto o olhar invasivo
dos cientistas brancos de Boston. Um livro precioso, enfim.
BRAZIL THROUGH THE EYES OF WILLIAM JAMES
Organizadora: Maria Helena P.T.
Machado
Tradutor: John M. Monteiro
Editora: Harvard University Press
Quanto: US$ 29,95/R$ 66
(230 págs.)
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