São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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Trama de fios desencapados

Autor do clássico da contracultura "O Arco-Íris da Gravidade", Thomas Pynchon lança nos EUA seu novo romance, "Contra o Dia"

MICHIKO KAKUTANI

O novo romance de Thomas Pynchon, "Against the Day" (Contra o Dia), parece uma imitação do trabalho do autor escrita por um fã persistente (mas desajeitado) de seu estilo que decidisse trabalhar o tempo todo sob o efeito de psicotrópicos.
É um quebra-cabeças imenso, inchado, que oferece pretensão em lugar de provocação, elipse sem iluminação e complicação sem complexidade compensadora. O romance brinca com os temas que sempre animaram a obra de Pynchon: ordem versus caos, destino versus liberdade, paranóia versus niilismo.
O elenco é imenso, à maneira de Dickens, mas identificado por nomes típicos da literatura de Pynchon, como Fleetwood Vibe, Lindsay Noseworth ou Clive Crouchmas, e as páginas estão soterradas sob o peso de trocadilhos, versinhos, piadas à moda do vaudeville e alusões a tudo que se possa imaginar -de velhos filmes de ficção científica a Kafka, passando por Harry Potter.
Essas marcas registradas do estilo do autor, porém, são orquestradas de maneira fatigada e decididamente mecânica. Há momentos deslumbrantes, evocando a Feira Mundial de Chicago em 1893 e uma convenção de aficionados dos dirigíveis, mas são passagens comprimidas em meio a massas intermináveis de texto indulgente e sem sentido, que serve como prova número um quanto àquilo que só podemos definir como um caso sério de "o imperador está nu".

Muitos mistérios
Dezenas de personagens saem pelo mundo em aventuras misteriosas, que se cruzam com as aventuras misteriosas de pessoas que eles conheciam em outros contextos e com dezenas de outras portentosas linhas narrativas, entrelaçadas a eventos ainda mais portentosos: o surgimento de uma estranha figura no Ártico, um assustador "clarão de luz que abarcou o céu" ou a caçada por alguma coisa descrita como uma "arma do tempo", capaz de afetar o destino do planeta.
Enquanto o romance anterior de Pynchon, o excelente "Mason & Dixon", demonstrava nova profundidade psicológica, retratando os dois heróis como seres humanos tridimensionais, e não apenas como peões no xadrez filosófico do escritor, as pessoas em "Contra o Dia" não são mais que desenhos sumários.
A narrativa supostamente se concentra em um mineiro tornado anarcoterrorista chamado Webb -que é assassinado por matadores profissionais contratados por um capitalista rapace- e nos esforços dos filhos de Webb para vingar ou ao menos aceitar sua morte.
Mas esse esqueleto simples de história (tratado de maneira muito resumida e perfunctória) não oferece uma base firme para as infinitas digressões, comentários e linhas secundárias, terciárias, quaternárias e até mesmo quinárias de narrativa que o autor acumula.
"Contra o Dia" parece querer fornecer um panorama enciclopédico sobre um amplo e multicolorido grupo de pessoas que levavam suas vidas de muitas maneiras diferentes nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Sem dúvida, a intenção de todos esses retratos é oferecer ao leitor uma impressão sobre a miríade de indivíduos que desempenharam algum papel nos acontecimentos que conduziram à guerra ou que verão suas vidas irrevogavelmente alteradas por suas conseqüências.

Mecanismo da história
Ao contemplarmos o modo como as trajetórias dessas personagens se entrecruzam por meio de implausíveis doses de coincidência, deveríamos refletir sobre os papéis que o destino e o acaso desempenham na vida das pessoas.
Verificamos também quão pouco controle os seres humanos comuns exercem sobre suas vidas, como estão sujeitos às maquinações dos poderosos e influentes, ao mecanismo da história ou aos lances sempre imprevistos da sorte.
O problema é que esses personagens são traçados de maneira tão sumária que poderiam perfeitamente ser peças plásticas de xadrez, que a mão todo-poderosa e intangível do autor pode mover pelo tabuleiro como preferir.
Como "V." (Paz e Terra) e "O Arco-Íris da Gravidade", este romance aspira a nos oferecer uma espécie de história alternativa do mundo moderno e sondar as múltiplas camadas de realidade que as pessoas podem habitar. E, embora sua narrativa tenha por centro os acontecimentos que conduzem à Primeira Guerra, ela reverbera nos acontecimentos atuais.
O terrorismo (na forma de atentados praticados por anarquistas) é percebido como ameaça onipresente, e a vigilância -quer por detetives particulares, quer por olhos celestes invisíveis- se tornou uma constante da vida cotidiana. Um mortífero jogo de tabuleiro está sendo travado ao redor do globo, enquanto as grandes potências disputam posições e negociantes de armas, malucos e mercenários organizam tramas para iludirem uns aos outros. Há muito anseio por genuína sabedoria espiritual mas também imenso anseio por falsos deuses, conhecimento espúrio e bobagens sentimentais da "nova era".

Filisteus e picaretas
A tecnologia promete soluções rápidas e destruição ainda mais rápida bem como uma revolução da vida tal qual todos a conhecem. Picaretas abundam, assim como filisteus e agentes duplos. Os EUA, ao que parece a alguns dos personagens de Pynchon, "caíram irrevogavelmente sob o domínio dos malévolos e dos imbecis".
Apesar de todo o brilho pirotécnico, o trabalho anterior de Pynchon tendia a ser frio, duro e desesperador: desprovido de qualquer senso de conexão humana ou redenção. Isso começou a mudar com "Vineland" (1990) -romance que demonstrava novo interesse no relacionamento entre indivíduo e família- e com "Mason & Dixon" -que fez dos anseios e sonhos de seus heróis material tão palpável quanto suas peripécias cômicas.
Ainda que esse impulso seja discernível em "Contra o Dia", jamais chega a se desenvolver.

Esforços sentimentais
A perda da inocência -individual e coletiva- é o tema melódico que percorre o romance; muitos dos personagens centrais estão à procura da salvação; e a busca por progenitores, que era um dos temas subterrâneos dos livros anteriores, se tornou, no caso do clã Webb, uma preocupação quase obsessiva com o dever familiar.
Mas, porque essas pessoas são delineadas de maneira tão frouxa, seus esforços de conexão parecem sentimentais e forçados demais. E esse, por fim, é um dos mais sérios problemas desse problemático trabalho, ao qual falta tanto a energia feroz e a ousadia literária de "O Leilão do Lote 49" e "O Arco-Íris da Gravidade" quanto a emoção profunda de "Mason & Dixon".


AGAINST THE DAY
Autor: Thomas Pynchon
Editora: Penguin
Quanto: US$ 35/R$ 76 (1.120 págs.)
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
Os livros de Pynchon citados saíram todos, no Brasil, pela Cia. das Letras, salvo indicação em contrário.



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