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Trama de fios desencapados
Autor do clássico da contracultura "O Arco-Íris da Gravidade", Thomas Pynchon
lança nos EUA seu novo romance, "Contra o Dia"
MICHIKO KAKUTANI
O novo romance de
Thomas Pynchon,
"Against the Day"
(Contra o Dia), parece uma imitação
do trabalho do autor escrita
por um fã persistente (mas desajeitado) de seu estilo que decidisse trabalhar o tempo todo
sob o efeito de psicotrópicos.
É um quebra-cabeças imenso, inchado, que oferece pretensão em lugar de provocação,
elipse sem iluminação e complicação sem complexidade
compensadora.
O romance brinca com os temas que sempre animaram a
obra de Pynchon: ordem versus caos, destino versus liberdade, paranóia versus niilismo.
O elenco é imenso, à maneira
de Dickens, mas identificado
por nomes típicos da literatura
de Pynchon, como Fleetwood
Vibe, Lindsay Noseworth ou
Clive Crouchmas, e as páginas
estão soterradas sob o peso de
trocadilhos, versinhos, piadas à
moda do vaudeville e alusões a
tudo que se possa imaginar
-de velhos filmes de ficção
científica a Kafka, passando
por Harry Potter.
Essas marcas registradas do
estilo do autor, porém, são orquestradas de maneira fatigada
e decididamente mecânica.
Há momentos deslumbrantes, evocando a Feira Mundial
de Chicago em 1893 e uma convenção de aficionados dos dirigíveis, mas são passagens comprimidas em meio a massas intermináveis de texto indulgente e sem sentido, que serve como prova número um quanto
àquilo que só podemos definir
como um caso sério de "o imperador está nu".
Muitos mistérios
Dezenas de personagens
saem pelo mundo em aventuras misteriosas, que se cruzam
com as aventuras misteriosas
de pessoas que eles conheciam
em outros contextos e com dezenas de outras portentosas linhas narrativas, entrelaçadas a
eventos ainda mais portentosos: o surgimento de uma estranha figura no Ártico, um assustador "clarão de luz que abarcou o céu" ou a caçada por alguma coisa descrita como uma
"arma do tempo", capaz de afetar o destino do planeta.
Enquanto o romance anterior de Pynchon, o excelente
"Mason & Dixon", demonstrava nova profundidade psicológica, retratando os dois heróis
como seres humanos tridimensionais, e não apenas como
peões no xadrez filosófico do
escritor, as pessoas em "Contra
o Dia" não são mais que desenhos sumários.
A narrativa supostamente se
concentra em um mineiro tornado anarcoterrorista chamado Webb -que é assassinado
por matadores profissionais
contratados por um capitalista
rapace- e nos esforços dos filhos de Webb para vingar ou ao
menos aceitar sua morte.
Mas esse esqueleto simples
de história (tratado de maneira
muito resumida e perfunctória) não oferece uma base firme
para as infinitas digressões, comentários e linhas secundárias,
terciárias, quaternárias e até
mesmo quinárias de narrativa
que o autor acumula.
"Contra o Dia" parece querer
fornecer um panorama enciclopédico sobre um amplo e
multicolorido grupo de pessoas
que levavam suas vidas de muitas maneiras diferentes nos
anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial.
Sem dúvida, a intenção de todos esses retratos é oferecer ao
leitor uma impressão sobre a
miríade de indivíduos que desempenharam algum papel nos
acontecimentos que conduziram à guerra ou que verão suas
vidas irrevogavelmente alteradas por suas conseqüências.
Mecanismo da história
Ao contemplarmos o modo
como as trajetórias dessas personagens se entrecruzam por
meio de implausíveis doses de
coincidência, deveríamos refletir sobre os papéis que o destino e o acaso desempenham na
vida das pessoas.
Verificamos também quão
pouco controle os seres humanos comuns exercem sobre
suas vidas, como estão sujeitos
às maquinações dos poderosos
e influentes, ao mecanismo da
história ou aos lances sempre
imprevistos da sorte.
O problema é que esses personagens são traçados de maneira tão sumária que poderiam perfeitamente ser peças
plásticas de xadrez, que a mão
todo-poderosa e intangível do
autor pode mover pelo tabuleiro como preferir.
Como "V." (Paz e Terra) e "O
Arco-Íris da Gravidade", este
romance aspira a nos oferecer
uma espécie de história alternativa do mundo moderno e
sondar as múltiplas camadas de
realidade que as pessoas podem habitar. E, embora sua
narrativa tenha por centro os
acontecimentos que conduzem
à Primeira Guerra, ela reverbera nos acontecimentos atuais.
O terrorismo (na forma de
atentados praticados por anarquistas) é percebido como
ameaça onipresente, e a vigilância -quer por detetives particulares, quer por olhos celestes invisíveis- se tornou uma
constante da vida cotidiana.
Um mortífero jogo de tabuleiro está sendo travado ao redor do globo, enquanto as grandes potências disputam posições e negociantes de armas,
malucos e mercenários organizam tramas para iludirem uns
aos outros. Há muito anseio
por genuína sabedoria espiritual mas também imenso anseio por falsos deuses, conhecimento espúrio e bobagens sentimentais da "nova era".
Filisteus e picaretas
A tecnologia promete soluções rápidas e destruição ainda
mais rápida bem como uma revolução da vida tal qual todos a
conhecem. Picaretas abundam,
assim como filisteus e agentes
duplos. Os EUA, ao que parece
a alguns dos personagens de
Pynchon, "caíram irrevogavelmente sob o domínio dos malévolos e dos imbecis".
Apesar de todo o brilho pirotécnico, o trabalho anterior de
Pynchon tendia a ser frio, duro
e desesperador: desprovido de
qualquer senso de conexão humana ou redenção.
Isso começou a mudar com
"Vineland" (1990) -romance
que demonstrava novo interesse no relacionamento entre indivíduo e família- e com "Mason & Dixon" -que fez dos anseios e sonhos de seus heróis
material tão palpável quanto
suas peripécias cômicas.
Ainda que esse impulso seja
discernível em "Contra o Dia",
jamais chega a se desenvolver.
Esforços sentimentais
A perda da inocência -individual e coletiva- é o tema melódico que percorre o romance;
muitos dos personagens centrais estão à procura da salvação; e a busca por progenitores,
que era um dos temas subterrâneos dos livros anteriores, se
tornou, no caso do clã Webb,
uma preocupação quase obsessiva com o dever familiar.
Mas, porque essas pessoas
são delineadas de maneira tão
frouxa, seus esforços de conexão parecem sentimentais e
forçados demais. E esse, por
fim, é um dos mais sérios problemas desse problemático trabalho, ao qual falta tanto a
energia feroz e a ousadia literária de "O Leilão do Lote 49" e
"O Arco-Íris da Gravidade"
quanto a emoção profunda de
"Mason & Dixon".
AGAINST THE DAY
Autor: Thomas Pynchon
Editora: Penguin
Quanto: US$ 35/R$ 76 (1.120 págs.)
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
Os livros de Pynchon citados saíram
todos, no Brasil, pela Cia. das Letras, salvo indicação em contrário.
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