São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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Mães & Filhas

Consagrada nos EUA, a escritora Joyce Carol Oates fala de seus dois romances que estão saindo no Brasil, "As Cataratas" e "A Falta Que Você Me Faz", e da reinvenção das lembranças

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Joyce Carol Oates nasceu em 1938 na cidade de Lockport (noroeste do Estado de Nova York) e, desde que ganhou uma máquina de escrever, aos 14 anos, não parou mais. São dezenas de coletâneas de contos, mais de 40 romances (alguns sob pseudônimos), além de obras de teatro, poesia e crítica.
Até este ano, havia pouquíssimos títulos da autora disponíveis no Brasil, considerando-se sua vasta produção. Duas editoras vêm preencher essa lacuna com a publicação de livros recentes de Carol Oates: "A Falta Que Você Me Faz" (Nova Fronteira, 432 págs., R$ 47) e "As Cataratas" (Globo, 484 págs., R$ 48).
Este último é um romance épico sobre o efeito hipnótico das cataratas do Niágara em três "gerações" da família de Ariah. O primeiro marido de Ariah, quando estão em lua-de-mel, se atira da balaustrada do desfiladeiro do Niágara.
Ela fica conhecida como a "noiva-viúva das cataratas", vagando por ali durante todo o tempo que duram a busca e o resgate do corpo, o que atrai o interesse do advogado Dirk Burnaby, que acaba se casando com a protagonista.
Tanto ele quanto seus três filhos terão suas vidas atreladas ao fascínio exercido pela queda de 800 metros das cataratas. Assim como a própria Ariah. Considerado pela autora um de seus romances "públicos", que ela contrapõe aos mais intimistas, "As Cataratas" envereda por temas de saúde e meio ambiente na figura de Dirk Burnaby, que tem sua bem-sucedida carreira arruinada em uma luta cega para defender os direitos de moradores de um bairro próximo a indústrias químicas que despejam -a história se passa na década de 1950- resíduos poluentes no canal Love. Essa parte do enredo é baseada em fatos verídicos dos primórdios da consciência ecológica nos EUA.
Já "A Falta Que Você Me Faz" pertence ao grupo de romances intimistas e retrata um ano de luto na vida de Nikki Eaton, que se depara com a mãe brutalmente assassinada na garagem de sua casa. Gwen "Pluma" Eaton, a mais solícita vizinha e exemplar cidadã de Mt. Ephraim, no Estado de Nova York, é vítima de suas boas intenções, ao ajudar um ex-presidiário que termina por esfaqueá-la. "Um dos desgarrados da mamãe", conjectura, devastada, a narradora.
O livro, publicado dois anos após a morte da mãe de Carol Oates, já na primeira página anuncia sua pungência: "Esta é a história da saudade que sinto de mamãe. Um dia, de um modo singularmente seu, será também a sua história".
Quase todo dedicado ao trabalho de luto (a primeira parte da obra, que narra o assassinato e o desfecho das investigações, não chega a ocupar um quarto do total), o romance encadeia imagens comoventes da reconstrução da memória e da autodescoberta. Em entrevista à Folha, Carol Oates fala desses dois romances, de seu interesse pela história do homem como "uma saga trágica com infinitas variações" e da função dos filhos, a de "celebrar as coisas muito pequenas" em homenagem às mães, cuja função a autora define como "oceânica".
 

FOLHA - Figuras maternas cumprem um importante papel em três de seus livros lançados no Brasil ("Levo Você até Lá"; "A Falta Que Você Me Faz" e "As Cataratas"). Como a sra. vê ou imagina ser a experiência da maternidade?
JOYCE CAROL OATES
- Apesar de não ser eu mesma mãe, certamente fui uma filha com uma proximidade extrema tanto da minha mãe quanto da minha avó. Vejo a experiência da maternidade como vasta, oceânica. Alguma coisa infinita que consome totalmente.

FOLHA - A profundidade psicológica de suas personagens femininas lembra Virginia Woolf. Mas, ao invés de trágicos e insolúveis finais, as histórias que a sra. escreve tendem a conceder alguma forma de desfecho às protagonistas. A sra. considera a ficção contemporânea mais otimista do que a do início do século 20?
OATES
- Acima de tudo, não diria que "otimismo" e "pessimismo" sejam termos úteis. Ainda que eu tenda a considerar a história humana uma saga trágica com infinitas variações, penso em unidades humanas menores, em relações humanas íntimas como essencialmente positivas, em geral harmoniosas. Não sou uma pessoa dogmática, mas antes alguém particularmente interessado nas extraordinárias variedades da personalidade humana.

FOLHA - Parece haver sempre uma boa dose autobiográfica em seus livros. Anellia ["Levo Você até Lá"] foi criada a partir de sua experiência como estudante, Ariah toca piano muito bem e Nikki é uma talentosa escritora/jornalista que lida com o luto após a perda da mãe. O aspecto autobiográfico é algo que um escritor não tem como evitar?
OATES
- Não é nem possível nem desejável evitar o elemento autobiográfico, uma vez que a arte é alimentada por nossas mais profundas emoções. Sem dúvida, dramaturgos como Sófocles e Shakespeare inscreveram suas vidas emocionais em suas obras, ainda que de maneira elíptica. Meu trabalho é em geral um entremeado, como em um ninho de pássaros altamente complexo, do "real" com o "imaginado".

FOLHA - Por outro lado, seus romances lidam com temas sociais e políticos, como discriminação racial ("Levo Você até Lá"), violência e ecologia, ainda que de maneira periférica. A sra. se preocupa em intervir politicamente com sua obra? Considera esse um dos papéis do escritor?
OATES
- A maior parte de meus romances contém material político, e toda minha obra de ficção lida com temas éticos ou morais. Escritores e artistas tradicionalmente se preocuparam com tais assuntos, mas penso que existe um lugar para poetas líricos, por exemplo, e para artistas visuais que sejam, por temperamento, apolíticos.

FOLHA - "As Cataratas" possui um ritmo diferente dos outros dois livros. O leitor é violentamente levado pela narrativa como pelas águas do Niágara. A idéia foi emular, na forma da narrativa, a fascinação exercida pelas cataratas?
OATES
- "As Cataratas" é um de meus romances mais longos e mais engajados social e politicamente, assim como os que o precederam -"Um Jardim de Delícias" [Rocco] e "Blonde" [Globo]. Você está certa em apontar que há um ritmo bastante diverso nessas obras, que são muito mais "públicas" do que os romances "privados", aqueles mais intimistas, como os que você menciona. Às vezes minha escala é "épica", às vezes é mais "lírica". Nos EUA, sou provavelmente mais conhecida pelos romances extensos de dimensão pública.

FOLHA - Perto do final de "A Falta Que Você Me Faz", Nikki refere-se à "vida secreta das mães", como aquelas que devem se lembrar de tudo; seria o destino dos filhos reinventar a memória delas?
OATES
- Essa é uma bonita pergunta, e penso que, sim, cabe aos filhos "reinventar" -no mínimo para celebrar- o esforço da memória, em geral de coisas muito pequenas e íntimas que dificilmente importam fora da família, que são a amada ocupação das mães e, com freqüência, dos pais também.
Não foi minha intenção desprezar os pais em "A Falta Que Você Me Faz", mas tinha de me concentrar em um deles. Em minha vida pessoal, fui muito próxima de ambos, ao contrário de Nikki, cujo pai é muito mais distante do que a mãe.


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