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Mães & Filhas
Consagrada nos EUA, a escritora Joyce Carol Oates fala de seus dois romances que estão saindo no Brasil, "As Cataratas" e "A Falta Que Você Me Faz", e da reinvenção das lembranças
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Joyce Carol Oates nasceu
em 1938 na cidade de
Lockport (noroeste do
Estado de Nova York) e,
desde que ganhou uma
máquina de escrever, aos 14
anos, não parou mais. São dezenas de coletâneas de contos,
mais de 40 romances (alguns
sob pseudônimos), além de
obras de teatro, poesia e crítica.
Até este ano, havia pouquíssimos títulos da autora disponíveis no Brasil, considerando-se sua vasta produção. Duas
editoras vêm preencher essa
lacuna com a publicação de livros recentes de Carol Oates:
"A Falta Que Você Me Faz"
(Nova Fronteira, 432 págs., R$
47) e "As Cataratas" (Globo,
484 págs., R$ 48).
Este último é um romance
épico sobre o efeito hipnótico
das cataratas do Niágara em
três "gerações" da família de
Ariah. O primeiro marido de
Ariah, quando estão em lua-de-mel, se atira da balaustrada do
desfiladeiro do Niágara.
Ela fica conhecida como a
"noiva-viúva das cataratas", vagando por ali durante todo o
tempo que duram a busca e o
resgate do corpo, o que atrai o
interesse do advogado Dirk
Burnaby, que acaba se casando
com a protagonista.
Tanto ele quanto seus três filhos terão suas vidas atreladas
ao fascínio exercido pela queda
de 800 metros das cataratas.
Assim como a própria Ariah.
Considerado pela autora um
de seus romances "públicos",
que ela contrapõe aos mais intimistas, "As Cataratas" envereda por temas de saúde e meio
ambiente na figura de Dirk
Burnaby, que tem sua bem-sucedida carreira arruinada em
uma luta cega para defender os
direitos de moradores de um
bairro próximo a indústrias
químicas que despejam -a história se passa na década de
1950- resíduos poluentes no
canal Love. Essa parte do enredo é baseada em fatos verídicos
dos primórdios da consciência
ecológica nos EUA.
Já "A Falta Que Você Me
Faz" pertence ao grupo de romances intimistas e retrata um
ano de luto na vida de Nikki Eaton, que se depara com a mãe
brutalmente assassinada na garagem de sua casa.
Gwen "Pluma" Eaton, a mais
solícita vizinha e exemplar cidadã de Mt. Ephraim, no Estado de Nova York, é vítima de
suas boas intenções, ao ajudar
um ex-presidiário que termina
por esfaqueá-la. "Um dos desgarrados da mamãe", conjectura, devastada, a narradora.
O livro, publicado dois anos
após a morte da mãe de Carol
Oates, já na primeira página
anuncia sua pungência: "Esta é
a história da saudade que sinto
de mamãe. Um dia, de um modo singularmente seu, será
também a sua história".
Quase todo dedicado ao trabalho de luto (a primeira parte
da obra, que narra o assassinato e o desfecho das investigações, não chega a ocupar um
quarto do total), o romance encadeia imagens comoventes da
reconstrução da memória e da
autodescoberta.
Em entrevista à Folha, Carol
Oates fala desses dois romances, de seu interesse pela história do homem como "uma saga
trágica com infinitas variações" e da função dos filhos, a
de "celebrar as coisas muito pequenas" em homenagem às
mães, cuja função a autora define como "oceânica".
FOLHA - Figuras maternas cumprem um importante papel em três
de seus livros lançados no Brasil
("Levo Você até Lá"; "A Falta Que
Você Me Faz" e "As Cataratas"). Como a sra. vê ou imagina ser a experiência da maternidade?
JOYCE CAROL OATES - Apesar de
não ser eu mesma mãe, certamente fui uma filha com uma
proximidade extrema tanto da
minha mãe quanto da minha
avó. Vejo a experiência da maternidade como vasta, oceânica. Alguma coisa infinita que
consome totalmente.
FOLHA - A profundidade psicológica de suas personagens femininas
lembra Virginia Woolf. Mas, ao invés de trágicos e insolúveis finais, as
histórias que a sra. escreve tendem a
conceder alguma forma de desfecho
às protagonistas. A sra. considera a
ficção contemporânea mais otimista do que a do início do século 20?
OATES - Acima de tudo, não diria que "otimismo" e "pessimismo" sejam termos úteis. Ainda
que eu tenda a considerar a história humana uma saga trágica
com infinitas variações, penso
em unidades humanas menores, em relações humanas íntimas como essencialmente positivas, em geral harmoniosas.
Não sou uma pessoa dogmática, mas antes alguém particularmente interessado nas extraordinárias variedades da
personalidade humana.
FOLHA - Parece haver sempre uma
boa dose autobiográfica em seus livros. Anellia ["Levo Você até Lá"] foi
criada a partir de sua experiência como estudante, Ariah toca piano
muito bem e Nikki é uma talentosa
escritora/jornalista que lida com o
luto após a perda da mãe. O aspecto
autobiográfico é algo que um escritor não tem como evitar?
OATES - Não é nem possível
nem desejável evitar o elemento autobiográfico, uma vez que
a arte é alimentada por nossas
mais profundas emoções.
Sem dúvida, dramaturgos como Sófocles e Shakespeare inscreveram suas vidas emocionais em suas obras, ainda que
de maneira elíptica. Meu trabalho é em geral um entremeado,
como em um ninho de pássaros
altamente complexo, do "real"
com o "imaginado".
FOLHA - Por outro lado, seus romances lidam com temas sociais e
políticos, como discriminação racial
("Levo Você até Lá"), violência e ecologia, ainda que de maneira periférica. A sra. se preocupa em intervir politicamente com sua obra? Considera esse um dos papéis do escritor?
OATES - A maior parte de meus
romances contém material político, e toda minha obra de ficção lida com temas éticos ou
morais. Escritores e artistas
tradicionalmente se preocuparam com tais assuntos, mas
penso que existe um lugar para
poetas líricos, por exemplo, e
para artistas visuais que sejam,
por temperamento, apolíticos.
FOLHA - "As Cataratas" possui um
ritmo diferente dos outros dois livros. O leitor é violentamente levado pela narrativa como pelas águas
do Niágara. A idéia foi emular, na
forma da narrativa, a fascinação
exercida pelas cataratas?
OATES - "As Cataratas" é um de
meus romances mais longos e
mais engajados social e politicamente, assim como os que o
precederam -"Um Jardim de
Delícias" [Rocco] e "Blonde"
[Globo]. Você está certa em
apontar que há um ritmo bastante diverso nessas obras, que
são muito mais "públicas" do
que os romances "privados",
aqueles mais intimistas, como
os que você menciona.
Às vezes minha escala é "épica", às vezes é mais "lírica". Nos
EUA, sou provavelmente mais
conhecida pelos romances extensos de dimensão pública.
FOLHA - Perto do final de "A Falta
Que Você Me Faz", Nikki refere-se à
"vida secreta das mães", como
aquelas que devem se lembrar de
tudo; seria o destino dos filhos reinventar a memória delas?
OATES - Essa é uma bonita pergunta, e penso que, sim, cabe
aos filhos "reinventar" -no mínimo para celebrar- o esforço
da memória, em geral de coisas
muito pequenas e íntimas que
dificilmente importam fora da
família, que são a amada ocupação das mães e, com freqüência,
dos pais também.
Não foi minha intenção desprezar os pais em "A Falta Que
Você Me Faz", mas tinha de me
concentrar em um deles. Em
minha vida pessoal, fui muito
próxima de ambos, ao contrário de Nikki, cujo pai é muito
mais distante do que a mãe.
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