São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Índice

Em "O Xale", a americana Cynthia Ozick descreve a obsessão e o resgate da memória de um drama pessoal na 2ª Guerra

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Como matéria literária, o Holocausto e a dimensão memorialística que propicia são temas ainda hoje muito fecundos.
É o caso do recente fenômeno literário francês, "As Benevolentes (a ser lançado no Brasil no final de 2007 pela ed. Alfaguara), que arrebanhou crítica e público ao narrar o Holocausto do ponto de vista de um carrasco nazista.
Ou então a história pode ser contada sob a ótica de um garoto de 15 anos deportado para Auschwitz e Buchenwald, como no caso de "Sem Destino", do Prêmio Nobel de 2002, o húngaro Imre Kertész.
É possível também que seja uma referência velada, como em "Dia de Finados" (Cia. das Letras), do holandês Cees Nooteboom, em que, na Berlim pós-Muro, a tragédia coletiva do passado se mescla à recordação pessoal de um documentarista que perdeu a família em um acidente aéreo.
Mas é outro o caso em "O Xale" (Companhia das Letras, tradução de Sonia Moreira, 86 págs., R$ 27,50), da norte-americana Cynthia Ozick. Anti-épica, a tragédia vivida pela protagonista penetra na narrativa por meio de um pedaço de pano velho e surrado, um xale com que protegia Magda, a filha ainda bebê, do frio inverno europeu em um árido campo de concentração.
Hoje inútil, o xale representa o vácuo das duas existências separadas a fórceps e que apenas a recordação está habilitada a preencher.

Presente incessante
É por meio da escrita frenética e incessante de cartas à filha morta que Rosa Lublin atribui materialidade a seu presente devastado. Oriunda de uma rica família judia polonesa, mas lançada na promiscuidade degradada do gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra, Rosa vive seu presente, décadas depois, em uma espelunca perdida na escaldante Miami, graças à generosidade da sobrinha que mora em Nova York.
"Pra mim, só existe um tempo; não existe depois". É essa incapacidade de esquecer que dá a dimensão trágica da protagonista, como uma versão mais modesta de "Funes el Memorioso", de Borges, personagem de "implacável memória".
Passo a passo, a perda da posição familiar, a exclusão no gueto sufocante, o dia-a-dia inclemente no campo e, por fim, a imagem incessante da filha dirigindo-se, trôpega, à cerca eletrificada em que iria morrer.
Um dos melhores contos do século 20, segundo lista elaborada pelo escritor John Updike, "O Xale" apresenta uma estrutura bimembre, de extensão desigual, mas eficaz. Na primeira e curta narrativa avulta a descrição objetiva da morte da filha. Na segunda, significativamente maior, a rememoração obsessiva enovela-se em torno desses fatos já remotos, roendo-os até o osso.
A possibilidade de redenção terá início pelas mãos do galanteador Persky, justamente um daqueles -como diz Rosa em suas cartas sem destinatários- aparentados àquela gente do gueto, "com todos seus avós malcheirosos e suas hordas de crianças subnutridas".
De fato, nada mais prosaico que Persky. Fabricante de botões aposentado, tem pouco apreço pela cultura, pela linguagem elevada, pela própria Rosa -a quem deseja apenas para aventuras- e, sobretudo, pela memória do Holocausto.
Mas é com o sopro dessa vida mundana e dessublimada -feita de "xarope de colônia", "assentos de plástico preto" e "um verão sem fim"- que, ao final, Rosa sai do novelo da rememoração em que estava enrodilhada. Então, de súbito, "Magda não estava lá. Tímida, fugiu de Persky. Magda estava longe".


Texto Anterior: Mães & Filhas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.