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Em "O Xale", a americana Cynthia Ozick descreve a obsessão e o resgate da memória de um drama pessoal na 2ª Guerra
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Como matéria literária, o Holocausto e a
dimensão memorialística que propicia
são temas ainda hoje
muito fecundos.
É o caso do recente fenômeno literário francês, "As Benevolentes (a ser lançado no Brasil no final de 2007 pela ed. Alfaguara), que arrebanhou crítica e público ao narrar o Holocausto do ponto de vista de um
carrasco nazista.
Ou então a história pode ser
contada sob a ótica de um garoto de 15 anos deportado para
Auschwitz e Buchenwald, como no caso de "Sem Destino",
do Prêmio Nobel de 2002, o
húngaro Imre Kertész.
É possível também que seja
uma referência velada, como
em "Dia de Finados" (Cia. das
Letras), do holandês Cees Nooteboom, em que, na Berlim
pós-Muro, a tragédia coletiva
do passado se mescla à recordação pessoal de um documentarista que perdeu a família em
um acidente aéreo.
Mas é outro o caso em "O Xale" (Companhia das Letras, tradução de Sonia Moreira, 86
págs., R$ 27,50), da norte-americana Cynthia Ozick. Anti-épica, a tragédia vivida pela protagonista penetra na narrativa
por meio de um pedaço de pano velho e surrado, um xale
com que protegia Magda, a filha ainda bebê, do frio inverno
europeu em um árido campo
de concentração.
Hoje inútil, o xale representa
o vácuo das duas existências
separadas a fórceps e que apenas a recordação está habilitada a preencher.
Presente incessante
É por meio da escrita frenética e incessante de cartas à filha
morta que Rosa Lublin atribui
materialidade a seu presente
devastado. Oriunda de uma rica
família judia polonesa, mas lançada na promiscuidade degradada do gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra, Rosa
vive seu presente, décadas depois, em uma espelunca perdida na escaldante Miami, graças
à generosidade da sobrinha que
mora em Nova York.
"Pra mim, só existe um tempo; não existe depois". É essa
incapacidade de esquecer que
dá a dimensão trágica da protagonista, como uma versão mais
modesta de "Funes el Memorioso", de Borges, personagem
de "implacável memória".
Passo a passo, a perda da posição familiar, a exclusão no
gueto sufocante, o dia-a-dia inclemente no campo e, por fim, a
imagem incessante da filha dirigindo-se, trôpega, à cerca eletrificada em que iria morrer.
Um dos melhores contos do
século 20, segundo lista elaborada pelo escritor John Updike,
"O Xale" apresenta uma estrutura bimembre, de extensão
desigual, mas eficaz. Na primeira e curta narrativa avulta a
descrição objetiva da morte da
filha. Na segunda, significativamente maior, a rememoração
obsessiva enovela-se em torno
desses fatos já remotos, roendo-os até o osso.
A possibilidade de redenção
terá início pelas mãos do galanteador Persky, justamente um
daqueles -como diz Rosa em
suas cartas sem destinatários-
aparentados àquela gente do
gueto, "com todos seus avós
malcheirosos e suas hordas de
crianças subnutridas".
De fato, nada mais prosaico
que Persky. Fabricante de botões aposentado, tem pouco
apreço pela cultura, pela linguagem elevada, pela própria
Rosa -a quem deseja apenas
para aventuras- e, sobretudo,
pela memória do Holocausto.
Mas é com o sopro dessa vida
mundana e dessublimada -feita de "xarope de colônia", "assentos de plástico preto" e "um
verão sem fim"- que, ao final,
Rosa sai do novelo da rememoração em que estava enrodilhada. Então, de súbito, "Magda
não estava lá. Tímida, fugiu de
Persky. Magda estava longe".
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