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Da excrescência à modernidade
Inovação de Caio Prado Jr. foi tentar demonstrar que Brasil não era marginal ao capitalismo europeu, mas sim sua realização integral, uma criação destinada a um determinado fim: acumular lucro na metrópole
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Pensar o Brasil hoje
(como ontem) é pensá-lo em um novo espaço de problemas
contraditórios. Por
um lado, uma nova fase do capitalismo (chamada globalização) na qual a idéia de nação é
dissolvida. Por outro, um novo
arranjo global que reforça nacionalismos e produz periferias
em massa por toda parte.
O importante seria entender
que se a idéia de nações em formação (ou dissolução) está viva
(sua morte anunciada é uma
estratégia de quem lucra nesse
novo estado de coisas), novas
compreensões são necessárias.
O "intérprete do Brasil" de hoje
seria aquele que pensa (e critica) nosso lugar na nova conformação histórica e não se conforma a ela. Se algo nessas afirmações tem valor, então a contribuição de Caio Prado é atual.
Caio Prado foi um pensador
múltiplo. Descendente da aristocracia decadente, virou comunista e nunca saiu do PCB.
Foi talvez o primeiro aristocrata-burguês a "trair" sua classe
de origem.
Formou-se em direito em
1928, ingressou no curso de
história e geografia da USP recém-nascida e nunca os concluiu (porque foi preso em
1935). Mas foi o suficiente para
que apreendesse o método crítico dos professores franceses
(especialmente Fernand Braudel) que ele iria incorporar
criativamente ao marxismo.
Tudo isso já foi discutido por
alguns dos principais historiadores brasileiros que se debruçaram sobre sua obra, desde
Dante Moreira Leite, Fernando Novais, Carlos Guilherme
Mota, Maria Odila Dias e Amaral Lapa até, mais recentemente, Paulo Henrique Martinez e
Bernardo Ricupero.
Seu primeiro livro foi "Evolução Política do Brasil" (1933),
que -segundo Carlos Guilherme Mota- introduziu o conceito de classe social para analisar a história brasileira. Mais
recentemente, Paulo Martinez
mostrou que a formação deste
livro devia tanto ao marxismo
(especialmente ao "18 Brumário" de Marx) quanto às discussões que ele assistiu no Clube
dos Artistas Modernos, ao lado
dos modernistas mais radicais:
Flávio de Carvalho, Oswald de
Andrade, Mário Pedrosa.
Seu trabalho mais importante é "Formação do Brasil Contemporâneo" (1942). Neste livro espetacular -cuja linguagem aparentemente fria contrasta com o ensaísmo de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque, mas não é isenta de um
movimento e de uma dicção
que tematizam seu conteúdo-
arranja um esquema guiado
pelo conceito de formação:
uma análise da marcha dos fatos que vai do passado para o
presente, e vice-versa, buscando as causas verdadeiras do
comprometimento do processo. E o que dava dinâmica à
nossa formação? Seu "sentido"
era que nossa vida econômica
(e social, e cultural, e política)
estava dirigida para completar
as necessidades do capitalismo
europeu, do qual éramos parte
ativa e dependente.
O Brasil era parte do movimento do capital mercantil,
uma realização dos interesses
europeus, o que nos propiciou
a condição de alternar momentos de enorme prosperidade
com outros de "aniquilamento
total" (segundo Amaral Lapa).
Novais notou que a inovação
do sentido da formação em
Caio Prado permitiu que ele, de
maneira original, pudesse estabelecer as relações dialéticas
entre a parte e o todo em um
movimento que se inicia no recorte do objeto, passa pela
apreensão de seu sentido e chega à reconstrução da realidade.
Assim, ele demonstrou que
não era o clima ou a raça que
explicavam os desocupados na
colônia (como a historiografia
anterior repetia), mas o sistema econômico global dentro
do qual girávamos e que nos
destinava a ser uma sociedade
inorgânica (a dialética entre o
orgânico e o inorgânico é uma
das inovações mais atuais e
precisas do historiador).
Por isso, em Caio Prado não
há sinal de qualquer determinismo do "destino" ou do "caráter" nacionais. Ao contrário,
como as características de nossa formação não foram impostas pelo destino, elas podem ser
modificadas pela ação. Nele há
uma idéia de história que se
constrói e reconstrói sobre as
suas bases, como luta política.
Por isso, a contribuição de
Caio Prado para a compreensão do processo da formação
histórica brasileira é ainda fundamental. Ao contrário da moda recente (que valoriza Sérgio
Buarque e supervaloriza Gilberto Freyre), creio que é mesmo a mais significativa.
Ele demonstrou que não éramos uma excrescência do capitalismo europeu, mas sua realização integral.
"Nascemos"
modernos, dentro da modernidade e como uma criação dela.
Mas uma criação acertada para
um determinado fim (no sentido de finalidade): acumular lucro na metrópole, que para isso
poderia até mesmo reinventar
uma forma bárbara de exploração que a modernidade havia
marginalizado, a escravidão.
Além disso, percebeu que a
forma da colonização definia
seu conteúdo e seu sentido: a
colônia de exploração (o Brasil,
por exemplo) servia para uma
coisa, e a colônia de povoamento (o norte dos EUA), para outra. Se continuarmos pensando
por aí poderemos entender como nos localizamos (e esse
"nós" envolve toda a América
Latina) no mundo atual. É um
caminho melhor do que o culturalismo, hoje tão em moda.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de História Contemporânea da USP.
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