São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Passado e utopia

Novo livro reúne textos em que o filósofo Norberto Bobbio tratou dos limites do marxismo

MARIA HERMÍNIA
TAVARES DE ALMEIDA

ESPECIAL PARA A FOLHA

Nem marxista, nem antimarxista: assim o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004) definia sua posição singular, de um equilíbrio difícil de encontrar nos anos da Guerra Fria. Crítico das limitações do marxismo em tratar o tema das liberdades e da democracia, parte de sua obra foi dedicada a estabelecer uma ponte entre duas tradições fortes da cultura política do Ocidente, particularmente vivas na Itália do segundo pós-guerra: a liberal, à qual se filiava e cuja renovação pregava, e a socialista de inspiração marxista, encarnada em seu país pelo Partido Comunista.
"Nem com Marx, nem contra Marx" reúne um conjunto de textos escritos por Norberto Bobbio no contexto da discussão com os marxistas italianos, entre 1949 e 1993. São prefácios, artigos curtos ou de maior fôlego, respostas a críticos, conferências e apresentações em seminários.
Organizado por Carlo Violi, o livro assemelha-se ao Museu Picasso em Paris: dedicado ao grande gênio da pintura do século 20, não possui no acervo suas grandes obras. Da mesma forma, estão ausentes do livro alguns dos textos mais importantes que compõem a polêmica de Bobbio com o marxismo e com os marxistas, publicados em outras coletâneas.
Mesmo assim a leitura é estimulante, em virtude da lógica implacável da argumentação, e prazeirosa, devido à clareza de idéias e à precisão da frase.
Três temas aparecem com força ao longo do livro. O primeiro é o reconhecimento do lugar de Marx e da sua contribuição à história intelectual do Ocidente. Marx é um clássico da mesma forma que Platão, Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Pareto e Weber porque foi um intérprete de sua época; porque cada geração o relê e o reinterpreta à luz de suas próprias perguntas; e porque elaborou categorias gerais de compreensão úteis e necessárias ao entendimento de realidades diversas daquela na qual se originaram.
Já o marxismo, opina Bobbio, vale por ser uma modalidade de teoria realista da história, que parte das relações sociais reais e não das idéias que os homens têm sobre elas.
O segundo tema é o do marxismo como doutrina, cuja validade não se submete ao teste empírico do confronto com os fatos, característico das ciências, mas se afirma pela autoridade, o que disseram seus fundadores e intérpretes autorizados. Porque o marxismo se fez doutrina, afirma Bobbio, os comunistas negaram tanto quanto puderam os horrores perpetrados por Stálin e foram incapazes de interpretar o significado do stalinismo.

Possibilidade da tirania
Em artigo de 1956, "Ainda sobre o Stalinismo: Algumas Questões de Teoria", um dos mais interessantes da coletânea, Bobbio argumenta que uma doutrina que excluía a possibilidade da tirania durante a transição ao socialismo e que concebia a sociedade socialista como uma organização social inédita e superior a tudo que a humanidade conhecera até então não poderia prever a transformação de Stálin em tirano, cegara os comunistas a seus crimes, que, segundo a teoria, não poderiam existir, e os tornara incapazes de explicá-los quando finalmente Kruschev os reconheceu oficialmente.
O terceiro tema é o da limitação do marxismo como teoria da política. A questão clássica da teoria política, lembra Bobbio, é a da organização do Estado como poder soberano, das formas como esse poder se exerce e dos instrumentos que permitem seu controle, o que remete à discussão das diferentes formas de governo e suas conseqüências para a liberdade dos cidadãos.

Poder e Estado
Já o marxismo olha para outro lado, insiste Bobbio. Ocupa-se, de um lado, dos fundamentos sociais do poder, encarando o Estado como pura expressão das assimetrias de poder existentes na sociedade, e, de outro lado, das estratégias para o controle do Estado. Nesse terreno intelectual confinado, não há respostas para quem se indaga sobre como conciliar autoridade e liberdade, socialismo e democracia. Uma teoria do socialismo democrático não pode assim prescindir da tradição clássica de teoria política e, em especial, da contribuição do liberalismo político que Bobbio fazia questão de distinguir do liberalismo econômico.
A história deu-lhe razão. Incapaz de se auto-reformar, o socialismo real desmoronou, arrastando consigo a doutrina.
O desafio intelectual de Bobbio aos comunistas é passado, um capítulo da história das idéias.
Mas a proposição de que a democracia requer a convergência entre liberalismo e algum tipo de utopia igualitária continua atual.


MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA é professora titular de ciência política da USP.

NEM COM MARX, NEM CONTRA MARX
Autor:
Norberto Bobbio
Tradução: Marco Aurélio Nogueira
Editora: Unesp (tel. 0/ xx/11/ 3242-7171)
Quanto: R$ 38 (318 págs.)


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