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Passado e utopia
Novo livro reúne textos em que o filósofo Norberto Bobbio tratou dos limites do marxismo
MARIA HERMÍNIA
TAVARES DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nem marxista, nem
antimarxista: assim o pensador
italiano Norberto
Bobbio (1909-2004) definia sua posição singular, de um equilíbrio difícil
de encontrar nos anos da Guerra Fria. Crítico das limitações
do marxismo em tratar o tema
das liberdades e da democracia, parte de sua obra foi dedicada a estabelecer uma ponte
entre duas tradições fortes da
cultura política do Ocidente,
particularmente vivas na Itália
do segundo pós-guerra: a liberal, à qual se filiava e cuja renovação pregava, e a socialista de
inspiração marxista, encarnada em seu país pelo Partido Comunista.
"Nem com Marx, nem contra
Marx" reúne um conjunto de
textos escritos por Norberto
Bobbio no contexto da discussão com os marxistas italianos,
entre 1949 e 1993. São prefácios, artigos curtos ou de maior
fôlego, respostas a críticos,
conferências e apresentações
em seminários.
Organizado por Carlo Violi, o
livro assemelha-se ao Museu
Picasso em Paris: dedicado ao
grande gênio da pintura do século 20, não possui no acervo
suas grandes obras. Da mesma
forma, estão ausentes do livro
alguns dos textos mais importantes que compõem a polêmica de Bobbio com o marxismo e
com os marxistas, publicados
em outras coletâneas.
Mesmo assim a leitura é estimulante, em virtude da lógica
implacável da argumentação, e
prazeirosa, devido à clareza de
idéias e à precisão da frase.
Três temas aparecem com
força ao longo do livro. O primeiro é o reconhecimento do
lugar de Marx e da sua contribuição à história intelectual do
Ocidente. Marx é um clássico
da mesma forma que Platão,
Aristóteles, Hobbes, Locke,
Rousseau, Kant, Hegel, Pareto
e Weber porque foi um intérprete de sua época; porque cada geração o relê e o reinterpreta à luz de suas próprias perguntas; e porque elaborou
categorias gerais de compreensão úteis e necessárias ao entendimento de realidades diversas daquela na qual se originaram.
Já o marxismo, opina Bobbio, vale por ser uma modalidade de teoria realista da história,
que parte das relações sociais
reais e não das idéias que os homens têm sobre elas.
O segundo tema é o do marxismo como doutrina, cuja validade não se submete ao teste
empírico do confronto com os fatos, característico das ciências, mas se afirma pela autoridade, o que disseram seus fundadores e intérpretes autorizados. Porque o marxismo se fez
doutrina, afirma Bobbio, os comunistas negaram tanto quanto puderam os horrores perpetrados por Stálin e foram incapazes de interpretar o significado do stalinismo.
Possibilidade da tirania
Em artigo de 1956, "Ainda sobre o Stalinismo: Algumas
Questões de Teoria", um dos
mais interessantes da coletânea, Bobbio argumenta que
uma doutrina que excluía a
possibilidade da tirania durante a transição ao socialismo e
que concebia a sociedade socialista como uma organização social inédita e superior a tudo
que a humanidade conhecera
até então não poderia prever a
transformação de Stálin em tirano, cegara os comunistas a
seus crimes, que, segundo a
teoria, não poderiam existir, e
os tornara incapazes de explicá-los quando finalmente
Kruschev os reconheceu oficialmente.
O terceiro tema é o da limitação do marxismo como teoria
da política. A questão clássica
da teoria política, lembra Bobbio, é a da organização do Estado como poder soberano, das
formas como esse poder se
exerce e dos instrumentos que
permitem seu controle, o que
remete à discussão das diferentes formas de governo e suas
conseqüências para a liberdade
dos cidadãos.
Poder e Estado
Já o marxismo olha para outro lado, insiste Bobbio. Ocupa-se, de um lado, dos fundamentos sociais do poder, encarando
o Estado como pura expressão
das assimetrias de poder existentes na sociedade, e, de outro
lado, das estratégias para o controle do Estado. Nesse terreno
intelectual confinado, não há
respostas para quem se indaga
sobre como conciliar autoridade e liberdade, socialismo e democracia. Uma teoria do socialismo democrático não pode
assim prescindir da tradição
clássica de teoria política e, em
especial, da contribuição do liberalismo político que Bobbio
fazia questão de distinguir do
liberalismo econômico.
A história deu-lhe razão. Incapaz de se auto-reformar, o
socialismo real desmoronou,
arrastando consigo a doutrina.
O desafio intelectual de Bobbio
aos comunistas é passado, um
capítulo da história das idéias.
Mas a proposição de que a democracia requer a convergência entre liberalismo e algum tipo de utopia igualitária continua atual.
MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA é
professora titular de ciência política da USP.
NEM COM MARX, NEM CONTRA
MARX
Autor: Norberto Bobbio
Tradução: Marco Aurélio Nogueira
Editora: Unesp (tel. 0/ xx/11/ 3242-7171)
Quanto: R$ 38 (318 págs.)
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