São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Anita por inteiro

Historiadora investiga a obra e a trajetória da artista considerada o "estopim do modernismo" no Brasil

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Uma artista que decidisse fazer experiências extremas, como vivenciar a cegueira ou a fome.
Uma artista que, para entender a morte, resolvesse se deitar nos dormentes de uma linha férrea e aguardar a passagem do trem para decifrar o abismo do que significa ser humano.
Parece a descrição de performances de idos dos anos 1960 ou 1970, quando nomes como Marina Abramovic levaram ao limite as experimentações da "body art". Mas a época em questão são as primeiras décadas do século 20, quando Anita Malfatti (1889-1964) levou a cabo as experiências descritas acima "pari passu" com a invenção de uma pintura expressionista que marcaria o início da arte moderna no Brasil.
A historiadora da arte e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Marta Rossetti Batista acaba de publicar o estudo em dois volumes "Anita Malfatti no Tempo e no Espaço" (ed. 34/ Edusp, R$ 89), resultado de mais de 40 anos de pesquisa, iniciada com uma bolsa de iniciação científica na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1964, quando a autora pôde realizar entrevistas com a artista.
Em entrevista à Folha, Rossetti Batista analisa aspectos polêmicos e revolucionários da trajetória de Malfatti.  

FOLHA - O fato de Anita Malfatti não ter ido estudar em Paris, como a maioria dos artistas acadêmicos, mas em Berlim, foi determinante na escala de inovação que a artista trouxe para a arte brasileira?
MARTA ROSSETTI BATISTA
- Sim, porque Paris era uma coisa já muito estabelecida aqui no Brasil. O artista fazia a escola de belas-artes, tinha um professor particular, depois ia para a Escola Nacional de Belas Artes no Rio, ganhava uma bolsa para ir para a Escola de Belas Artes de Paris. Era uma estrutura muito forte na época. Caso ela tivesse ido para Paris, provavelmente teria, pelo menos no início, entrado nessa estrutura. A Tarsila do Amaral, por exemplo, só se livrou disso quando entrou em contato com os modernistas.
Na Alemanha, Anita percebeu o clima expressionista, mas a obra que ela trouxe de lá ainda não era claramente expressionista, estava se encaminhando para isso. Ela teve um professor, Lovis Corinth [1858-1925], que pintava emocionalmente e que foi importante para ela. A pintura dela na Alemanha é absolutamente emocional, é feita de uma vez, direto na tela. Quando ela vai para os EUA, onde se falava do cubismo, do fauvismo, as cores dela passam a ser mais claras, mais contrastadas do que na Alemanha.

FOLHA - É a influência do expressionismo alemão que explica a opção da artista por retratar os "marginais da vida" ou esta era já uma inclinação da artista no desenvolvimento de seu discurso pictórico?
ROSSETTI BATISTA
- De alguma maneira ela tinha uma tendência que se casou bem com o expressionismo. Ela teve influência muito forte dessa formação e tinha uma personalidade que era a de uma pessoa que fazia experiências vitais.

FOLHA - Sobre os aspectos lendários ligados à adolescência de Anita Malfatti, eles são verdadeiros?
ROSSETTI BATISTA
- A história de, quando criança, ter se deitado entre os trilhos do trem ela contou várias vezes, portanto deve ter feito essa experiência.
E ela realizou outras. Uma vez, relatou que quis saber o que era a fome; passou dias e dias sem comer, até que não ficava mais em pé.
Outra vez, quis saber o que era a cegueira. Ela se vedava e passava tempos assim para entender o que era a cegueira.
Quer dizer, estava procurando entender sensações essenciais da pessoa. Era uma personalidade ou romântica ou expressionista. Como personalidade, tinha esse lado de pesquisar o que é essencial no ser humano.

FOLHA - Tendo isso em vista, é fácil entender a dificuldade que o meio artístico brasileiro enfrentou ao se deparar com a pintura da artista. A incompreensão, como a própria Malfatti previa (e que motivou uma montagem didática de sua mostra de 1917), era inevitável.
ROSSETTI BATISTA
- Isso é uma interpretação minha, tendo em vista o que ela expôs, incluindo obras dos companheiros da Independent School of Art. A minha sensação é que ela quis ser didática, ela quis mostrar um modo novo de encarar a pintura e mostrar que ela era parte de uma coletividade.

FOLHA - A sra. diz que a frase usual "o artigo de Monteiro Lobato ["Paranóia ou Mistificação?'] destruiu a carreira de Anita Malfatti" é simplista e não explica sua trajetória posterior. Por que essa versão simplista da história se consolidou?
ROSSETTI BATISTA
- O artigo de Lobato teve muita importância, mas é uma versão dos modernistas essa de que Anita regrediu depois de 1917. Acredito que a época não entendia a pintura dela, não era só o Lobato.
Quando ela chegou, a família já não entendeu. Ela diz que o tio [Jorge Krug], que tinha dado dinheiro para ela estudar no exterior, considerou aquilo dantesco e proibiu a entrada das obras da Anita na casa dele.
Ou seja, ela teve uma oposição familiar enorme. E essa oposição familiar não diferia da oposição da sociedade da época: os visitantes chegavam lá e não entendiam o que estavam vendo, eles não podiam entender uma pintura feita daquele modo. O artigo do Monteiro Lobato sintetiza um modo de pensar da época.

FOLHA - E a sra. defende que o abalo provocado pelo artigo não explica a trajetória posterior da artista?
ROSSETTI BATISTA
- Não explica, porque ela não tinha uma personalidade que a gente imagina em um pioneiro, por exemplo, que abre caminho a todo custo e não se importa se o mundo não o compreende. Ela não tinha essa personalidade, queria ser compreendida.
Um pioneiro que faz uma obra que ninguém entende e ao mesmo tempo quer ser compreendido é uma contradição.
Ela queria ser uma profissional da pintura e viver da venda dos seus quadros e das aulas. Isso, com o tipo de pintura que ela fez, era incompatível.
Então, o que aconteceu? Durante um certo tempo, ela passou a pintar como todo mundo esperava que ela pintasse. Ela tenta ser do meio dela na época.

FOLHA - Seu estudo situa claramente a artista no contexto da história brasileira como marco inicial do movimento modernista. Como a sra. se posiciona frente à polêmica sobre Segall (que fez a primeira exposição individual em 1913) e Malfatti (cuja primeira individual aconteceu em 1914) como pioneiros do modernismo?
ROSSETTI BATISTA
- Minha posição é a seguinte: nunca ninguém fala da exposição de 1914 da Anita. Só se fala na de 1917, porque a de 14 não marcou.
A de 13, do Segall, também não marcou. Porque a pintura dos dois na época não era claramente moderna nem revolucionária, ela era uma pintura vinda de discípulos da "escola impressionista alemã".
A maioria das coisas que eles faziam eram retratos, era uma pintura com uma certa violência da pincelada, mas não avançava mais do que isso.
Em um artigo de 1944, chamado "Fazer a História", Mário de Andrade diz que Segall não levantou polêmica nenhuma com a exposição dele, e eu posso dizer a mesma coisa quanto à mostra de 1914 da Anita. O que é que marca uma revolução? É quando realmente tem uma batalha. E a batalha foi em 1917.


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