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Anita por inteiro
Historiadora investiga a obra e a trajetória
da artista considerada o "estopim do modernismo" no Brasil
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Uma artista que decidisse fazer experiências extremas,
como vivenciar a
cegueira ou a fome.
Uma artista que, para entender
a morte, resolvesse se deitar
nos dormentes de uma linha
férrea e aguardar a passagem
do trem para decifrar o abismo
do que significa ser humano.
Parece a descrição de performances de idos dos anos 1960
ou 1970, quando nomes como
Marina Abramovic levaram ao
limite as experimentações da
"body art". Mas a época em
questão são as primeiras décadas do século 20, quando Anita
Malfatti (1889-1964) levou a
cabo as experiências descritas
acima "pari passu" com a invenção de uma pintura expressionista que marcaria o início
da arte moderna no Brasil.
A historiadora da arte e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Marta
Rossetti Batista acaba de publicar o estudo em dois volumes
"Anita Malfatti no Tempo e no
Espaço" (ed. 34/ Edusp, R$ 89),
resultado de mais de 40 anos
de pesquisa, iniciada com uma
bolsa de iniciação científica na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1964,
quando a autora pôde realizar
entrevistas com a artista.
Em entrevista à Folha, Rossetti Batista analisa aspectos
polêmicos e revolucionários da
trajetória de Malfatti.
FOLHA - O fato de Anita Malfatti
não ter ido estudar em Paris, como a
maioria dos artistas acadêmicos,
mas em Berlim, foi determinante na
escala de inovação que a artista
trouxe para a arte brasileira?
MARTA ROSSETTI BATISTA - Sim,
porque Paris era uma coisa já
muito estabelecida aqui no
Brasil. O artista fazia a escola de
belas-artes, tinha um professor
particular, depois ia para a Escola Nacional de Belas Artes no
Rio, ganhava uma bolsa para ir
para a Escola de Belas Artes de
Paris. Era uma estrutura muito
forte na época. Caso ela tivesse
ido para Paris, provavelmente
teria, pelo menos no início, entrado nessa estrutura. A Tarsila
do Amaral, por exemplo, só se
livrou disso quando entrou em
contato com os modernistas.
Na Alemanha, Anita percebeu o clima expressionista, mas
a obra que ela trouxe de lá ainda
não era claramente expressionista, estava se encaminhando
para isso. Ela teve um professor, Lovis Corinth [1858-1925],
que pintava emocionalmente e
que foi importante para ela. A
pintura dela na Alemanha é absolutamente emocional, é feita
de uma vez, direto na tela.
Quando ela vai para os EUA,
onde se falava do cubismo, do
fauvismo, as cores dela passam
a ser mais claras, mais contrastadas do que na Alemanha.
FOLHA - É a influência do expressionismo alemão que explica a opção da artista por retratar os "marginais da vida" ou esta era já uma inclinação da artista no desenvolvimento de seu discurso pictórico?
ROSSETTI BATISTA - De alguma
maneira ela tinha uma tendência que se casou bem com o expressionismo. Ela teve influência muito forte dessa formação
e tinha uma personalidade que
era a de uma pessoa que fazia
experiências vitais.
FOLHA - Sobre os aspectos lendários ligados à adolescência de Anita
Malfatti, eles são verdadeiros?
ROSSETTI BATISTA - A história de,
quando criança, ter se deitado
entre os trilhos do trem ela
contou várias vezes, portanto
deve ter feito essa experiência.
E ela realizou outras. Uma
vez, relatou que quis saber o
que era a fome; passou dias e
dias sem comer, até que não ficava mais em pé.
Outra vez, quis saber o que
era a cegueira. Ela se vedava e
passava tempos assim para entender o que era a cegueira.
Quer dizer, estava procurando
entender sensações essenciais
da pessoa. Era uma personalidade ou romântica ou expressionista. Como personalidade,
tinha esse lado de pesquisar o
que é essencial no ser humano.
FOLHA - Tendo isso em vista, é fácil
entender a dificuldade que o meio
artístico brasileiro enfrentou ao se
deparar com a pintura da artista. A
incompreensão, como a própria
Malfatti previa (e que motivou uma
montagem didática de sua mostra
de 1917), era inevitável.
ROSSETTI BATISTA - Isso é uma interpretação minha, tendo em
vista o que ela expôs, incluindo
obras dos companheiros da Independent School of Art. A minha sensação é que ela quis ser
didática, ela quis mostrar um
modo novo de encarar a pintura e mostrar que ela era parte
de uma coletividade.
FOLHA - A sra. diz que a frase usual
"o artigo de Monteiro Lobato ["Paranóia ou Mistificação?'] destruiu a
carreira de Anita Malfatti" é simplista e não explica sua trajetória posterior. Por que essa versão simplista da
história se consolidou?
ROSSETTI BATISTA - O artigo de
Lobato teve muita importância, mas é uma versão dos modernistas essa de que Anita regrediu depois de 1917. Acredito
que a época não entendia a pintura dela, não era só o Lobato.
Quando ela chegou, a família
já não entendeu. Ela diz que o
tio [Jorge Krug], que tinha dado dinheiro para ela estudar no
exterior, considerou aquilo
dantesco e proibiu a entrada
das obras da Anita na casa dele.
Ou seja, ela teve uma oposição familiar enorme. E essa
oposição familiar não diferia da
oposição da sociedade da época: os visitantes chegavam lá e
não entendiam o que estavam
vendo, eles não podiam entender uma pintura feita daquele
modo. O artigo do Monteiro
Lobato sintetiza um modo de
pensar da época.
FOLHA - E a sra. defende que o abalo provocado pelo artigo não explica
a trajetória posterior da artista?
ROSSETTI BATISTA - Não explica,
porque ela não tinha uma personalidade que a gente imagina
em um pioneiro, por exemplo,
que abre caminho a todo custo
e não se importa se o mundo
não o compreende. Ela não tinha essa personalidade, queria
ser compreendida.
Um pioneiro que faz uma
obra que ninguém entende e ao
mesmo tempo quer ser compreendido é uma contradição.
Ela queria ser uma profissional
da pintura e viver da venda dos
seus quadros e das aulas.
Isso, com o tipo de pintura
que ela fez, era incompatível.
Então, o que aconteceu? Durante um certo tempo, ela passou a pintar como todo mundo
esperava que ela pintasse. Ela
tenta ser do meio dela na época.
FOLHA - Seu estudo situa claramente a artista no contexto da história brasileira como marco inicial
do movimento modernista. Como a
sra. se posiciona frente à polêmica
sobre Segall (que fez a primeira exposição individual em 1913) e Malfatti (cuja primeira individual aconteceu em 1914) como pioneiros do
modernismo?
ROSSETTI BATISTA - Minha posição é a seguinte: nunca ninguém fala da exposição de 1914
da Anita. Só se fala na de 1917,
porque a de 14 não marcou.
A de 13, do Segall, também
não marcou. Porque a pintura
dos dois na época não era claramente moderna nem revolucionária, ela era uma pintura
vinda de discípulos da "escola
impressionista alemã".
A maioria das coisas que eles
faziam eram retratos, era uma
pintura com uma certa violência da pincelada, mas não avançava mais do que isso.
Em um artigo de 1944, chamado "Fazer a História", Mário
de Andrade diz que Segall não
levantou polêmica nenhuma
com a exposição dele, e eu posso dizer a mesma coisa quanto à
mostra de 1914 da Anita. O que
é que marca uma revolução? É
quando realmente tem uma batalha. E a batalha foi em 1917.
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