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Entre quatro paredes
PARA O FILÓSOFO RUY FAUSTO, INTELLIGENTSIA BRASILEIRA
É FECHADA AO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Se o papel do intelectual é influenciar a
opinião pública com
seus argumentos, a
opinião pública brasileira corre o risco de consumir
discursos pouco rigorosos, manejados em nome de perspectivas políticas já ultrapassadas.
O temor é expresso pelo filósofo Ruy Fausto, professor
emérito da USP, atualmente
residindo em Paris.
Para ele, a inteligência brasileira é pouco permeável a novidades no pensamento político
e social, o que resulta em um
baixo nível de conhecimento
de questões discutidas mundialmente no século 20.
Falando à Folha, ele associou esse atraso ao modo como
os intelectuais lidam com assuntos como corrupção e violência. Criticou ainda a repercussão que logram textos como
o de seu colega uspiano Renato
Janine Ribeiro a respeito da
violência urbana (Mais! de
18/2), que suscitou dezenas de
cartas ao jornal.
"É preciso ser receptivo à dor
das famílias, sim -mas ter um
discurso ambíguo sobre a pena
de morte, sobre o linchamento
na prisão ou sobre a tortura é
totalmente condenável."
FOLHA - O que é um intelectual?
RUY FAUSTO - Um sujeito cuja
profissão é se ocupar de assuntos culturais. Não acho que haja
relação estreita entre cultura e
lucidez -tem gente que sabe
muito e não é lúcida.
FOLHA - Ele exerce autoridade?
FAUSTO - Justificadamente ou
não, ele tem algum peso sobre a
juventude. É uma responsabilidade múltipla: política, por um
lado; por outro, relativa a assuntos de sociedade, como esse
caso [o crime em que morreu o
menino João Hélio e sua repercussão]; em terceiro lugar, ética; em quarto, teórica.
FOLHA - Quais os riscos e limites
para o pensador público?
FAUSTO - O poder do intelectual é relativo, o que tem como
lado positivo que, se ele errar
muito, não será ele quem irá
decidir. É claro que há riscos.
No plano da responsabilidade política, vejo três pontos que
podem ser banais, mas difíceis
de encontrar em conjunção no
Brasil: o intelectual ser de esquerda, ser intransigente com a
corrupção e ser democrático.
É claro que há gente boa, mas
há discursos revolucionários
que são de outra época, propõem saídas irrealizáveis ou indesejáveis. Há outra corrente
-penso na intelectualidade petista- que se perdeu em discursos de semijustificação do
que aconteceu com o partido
-os episódios de corrupção.
FOLHA - Comparando Brasil e Europa, o modo como a intelectualidade
trata essas questões é diferente?
FAUSTO - Há experiências muito mais importantes do que se
pensa -a Noruega e a Suécia,
por exemplo. Freqüentemente,
no Brasil se acha impossível o
que é possível e possível o que é
impossível ou indesejável.
FOLHA - O embate entre direita e
esquerda no Brasil aparece como argumentação, diálogo ou...
FAUSTO - A direita sempre foi
fraca intelectualmente, mas
agora se reforça. A esquerda
tem a reflexão sobre o totalitarismo ainda muito verde, o que
confunde a reflexão sobre o
país. Leva a pensar pouco sobre
a experiência européia, porque
existe uma miragem revolucionária misturada sem rigor.
Há também o problema do
discurso do intelectual: há no
Brasil uma distância muito
grande entre o intelectual falando de sua especialidade e falando de política. O discurso
político também tem de ser rigoroso. A gente vê intelectuais
falando de política irresponsavelmente, se deixando levar pela demagogia de auditório.
FOLHA - Quanto a isso, que acha do
artigo de Renato Janine Ribeiro?
FAUSTO - É um artigo desequilibrado. Já se falou demais sobre
isso. Refletir sobre o horror, o
sentimento das vítimas, a necessidade de punição é correto;
ao se deixar levar pelo horror,
há o perigo da banalização.
FOLHA - Ele extrapolou seu papel
de intelectual?
FAUSTO - Ele diz que não propôs a pena de morte, mas é
muito ambíguo. Imagine o que
seria essa lei, só reforçaria a
barbárie. Há no Brasil uma discussão excessiva sobre textos
de importância muito relativa.
FOLHA - O intelectual se deixa contaminar pela oratória?
FAUSTO - Não são todos. O problema é a orientação política do
intelectual de esquerda: na medida em que não houve reflexão
sobre os grandes fenômenos do
século 20, mesmo entre os menos radicais fica a impressão de
discurso velho.
A herança não tem sido repensada em geral com rigor, e o
resultado é ou um discurso radical ou o discurso do tipo do
petista, em geral confuso, com
um pé no radicalismo e outro
na pequena política.
FOLHA - Como esse discurso afeta a
discussão de normas, por exemplo a
legislação penal e as cotas em universidades públicas?
FAUSTO - No plano das questões de sociedade, é um pouco
diferente. Em casos como esse
[do menino João Hélio], é preciso não sociologizar os acontecimentos, não reduzir o fato
pura e simplesmente ao social,
sem levar em conta o "dever
ser". É justo criticar quem diz
"isso poderia ter acontecido
com qualquer um"; é preciso
não dissolver coisas monstruosas em fatores sociais.
É preciso ser receptivo à dor
das famílias, sim -mas ter um
discurso ambíguo sobre a pena
de morte, sobre o linchamento
na prisão ou sobre a tortura é
totalmente condenável.
A corrupção, embora seja um
problema diferente, tem essa
sociologização, um "isso tudo é
assim mesmo" que dissolve o
"dever ser" no "ser".
FOLHA - E como fica o leitor diante
desses valores dos intelectuais pressionados para se fazerem ouvir?
FAUSTO - Não vejo problema.
Não vamos achar que o intelectual irá dar solução para alguma coisa. É preciso melhorar o
tipo de intervenção no plano
político. Falta circular literatura histórica sobre o século 20,
muitas coisas importantes em
matéria de livros que ainda não
chegaram ao Brasil.
FOLHA - O discurso do intelectual
brasileiro é, portanto, atrasado?
FAUSTO - É fechado. Os europeus têm seus problemas, uma
inflação do discurso de tipo jurídico, mas há maior circulação. No Brasil, muita coisa não
chega nem àqueles que poderiam ler no idioma original.
Não se pode pensar nosso
tempo sem refletir muito sobre
o século 20. Certa intelectualidade brasileira estudou Marx,
as elites lêem os clássicos da
economia liberal e a extrema
esquerda tem seus personagens clássicos -e, de vez em
quando, inventa gurus.
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