São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Entre quatro paredes

PARA O FILÓSOFO RUY FAUSTO, INTELLIGENTSIA BRASILEIRA É FECHADA AO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Se o papel do intelectual é influenciar a opinião pública com seus argumentos, a opinião pública brasileira corre o risco de consumir discursos pouco rigorosos, manejados em nome de perspectivas políticas já ultrapassadas. O temor é expresso pelo filósofo Ruy Fausto, professor emérito da USP, atualmente residindo em Paris.
Para ele, a inteligência brasileira é pouco permeável a novidades no pensamento político e social, o que resulta em um baixo nível de conhecimento de questões discutidas mundialmente no século 20. Falando à Folha, ele associou esse atraso ao modo como os intelectuais lidam com assuntos como corrupção e violência. Criticou ainda a repercussão que logram textos como o de seu colega uspiano Renato Janine Ribeiro a respeito da violência urbana (Mais! de 18/2), que suscitou dezenas de cartas ao jornal.
"É preciso ser receptivo à dor das famílias, sim -mas ter um discurso ambíguo sobre a pena de morte, sobre o linchamento na prisão ou sobre a tortura é totalmente condenável."

 

FOLHA - O que é um intelectual?
RUY FAUSTO
- Um sujeito cuja profissão é se ocupar de assuntos culturais. Não acho que haja relação estreita entre cultura e lucidez -tem gente que sabe muito e não é lúcida.

FOLHA - Ele exerce autoridade?
FAUSTO
- Justificadamente ou não, ele tem algum peso sobre a juventude. É uma responsabilidade múltipla: política, por um lado; por outro, relativa a assuntos de sociedade, como esse caso [o crime em que morreu o menino João Hélio e sua repercussão]; em terceiro lugar, ética; em quarto, teórica.

FOLHA - Quais os riscos e limites para o pensador público?
FAUSTO
- O poder do intelectual é relativo, o que tem como lado positivo que, se ele errar muito, não será ele quem irá decidir. É claro que há riscos.
No plano da responsabilidade política, vejo três pontos que podem ser banais, mas difíceis de encontrar em conjunção no Brasil: o intelectual ser de esquerda, ser intransigente com a corrupção e ser democrático.
É claro que há gente boa, mas há discursos revolucionários que são de outra época, propõem saídas irrealizáveis ou indesejáveis. Há outra corrente -penso na intelectualidade petista- que se perdeu em discursos de semijustificação do que aconteceu com o partido -os episódios de corrupção.

FOLHA - Comparando Brasil e Europa, o modo como a intelectualidade trata essas questões é diferente?
FAUSTO
- Há experiências muito mais importantes do que se pensa -a Noruega e a Suécia, por exemplo. Freqüentemente, no Brasil se acha impossível o que é possível e possível o que é impossível ou indesejável.

FOLHA - O embate entre direita e esquerda no Brasil aparece como argumentação, diálogo ou...
FAUSTO
- A direita sempre foi fraca intelectualmente, mas agora se reforça. A esquerda tem a reflexão sobre o totalitarismo ainda muito verde, o que confunde a reflexão sobre o país. Leva a pensar pouco sobre a experiência européia, porque existe uma miragem revolucionária misturada sem rigor.
Há também o problema do discurso do intelectual: há no Brasil uma distância muito grande entre o intelectual falando de sua especialidade e falando de política. O discurso político também tem de ser rigoroso. A gente vê intelectuais falando de política irresponsavelmente, se deixando levar pela demagogia de auditório.

FOLHA - Quanto a isso, que acha do artigo de Renato Janine Ribeiro?
FAUSTO
- É um artigo desequilibrado. Já se falou demais sobre isso. Refletir sobre o horror, o sentimento das vítimas, a necessidade de punição é correto; ao se deixar levar pelo horror, há o perigo da banalização.

FOLHA - Ele extrapolou seu papel de intelectual?
FAUSTO
- Ele diz que não propôs a pena de morte, mas é muito ambíguo. Imagine o que seria essa lei, só reforçaria a barbárie. Há no Brasil uma discussão excessiva sobre textos de importância muito relativa.

FOLHA - O intelectual se deixa contaminar pela oratória?
FAUSTO
- Não são todos. O problema é a orientação política do intelectual de esquerda: na medida em que não houve reflexão sobre os grandes fenômenos do século 20, mesmo entre os menos radicais fica a impressão de discurso velho.
A herança não tem sido repensada em geral com rigor, e o resultado é ou um discurso radical ou o discurso do tipo do petista, em geral confuso, com um pé no radicalismo e outro na pequena política.

FOLHA - Como esse discurso afeta a discussão de normas, por exemplo a legislação penal e as cotas em universidades públicas?
FAUSTO
- No plano das questões de sociedade, é um pouco diferente. Em casos como esse [do menino João Hélio], é preciso não sociologizar os acontecimentos, não reduzir o fato pura e simplesmente ao social, sem levar em conta o "dever ser". É justo criticar quem diz "isso poderia ter acontecido com qualquer um"; é preciso não dissolver coisas monstruosas em fatores sociais.
É preciso ser receptivo à dor das famílias, sim -mas ter um discurso ambíguo sobre a pena de morte, sobre o linchamento na prisão ou sobre a tortura é totalmente condenável. A corrupção, embora seja um problema diferente, tem essa sociologização, um "isso tudo é assim mesmo" que dissolve o "dever ser" no "ser".

FOLHA - E como fica o leitor diante desses valores dos intelectuais pressionados para se fazerem ouvir?
FAUSTO
- Não vejo problema. Não vamos achar que o intelectual irá dar solução para alguma coisa. É preciso melhorar o tipo de intervenção no plano político. Falta circular literatura histórica sobre o século 20, muitas coisas importantes em matéria de livros que ainda não chegaram ao Brasil.

FOLHA - O discurso do intelectual brasileiro é, portanto, atrasado?
FAUSTO
- É fechado. Os europeus têm seus problemas, uma inflação do discurso de tipo jurídico, mas há maior circulação. No Brasil, muita coisa não chega nem àqueles que poderiam ler no idioma original.
Não se pode pensar nosso tempo sem refletir muito sobre o século 20. Certa intelectualidade brasileira estudou Marx, as elites lêem os clássicos da economia liberal e a extrema esquerda tem seus personagens clássicos -e, de vez em quando, inventa gurus.


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