São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Um personagem em cena

AUTOR DE "O INTELECTUAL", O SOCIÓLOGO BRITÂNICO STEVE FULLER DEFENDE QUE OS PENSADORES DEVEM "PROMOVER IDÉIAS"

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

O intelectual é um "personagem" que sabe que tem um papel a desempenhar -pois está no "negócio de promover idéias"- , e de sua performance depende a qualidade do debate público. Essa é uma das teses principais defendidas pelo sociólogo Steve Fuller em seu estudo sobre "O Intelectual" (ed. Relume-Dumará), lançado no Brasil no ano passado. Professor na Universidade de Warwick (Reino Unido), ele localiza na Grécia Antiga o protótipo do intelectual moderno.
Em particular, entre os sofistas, pela fé inabalável na força das idéias e na democracia. E, por isso, aponta como exemplo de iluminista uma sociedade que permita aquilo que chama de "o direito de estar errado". Na entrevista abaixo, concedida por e-mail de Brisbane, na Austrália, Fuller também fala da falência de categorias clássicas para definir a intelligentsia -como a de "intelectual orgânico", criada por Gramsci.

 

FOLHA - Habermas definiu a esfera pública como "uma rede para comunicar informações e pontos de vista". Qual é o limite de ação do intelectual, de modo que a esfera pública não entre em colapso? O que um intelectual pode ou não dizer?
STEVE FULLER
- Acredito que uma medida importante de uma sociedade iluminista é a sua capacidade de permitir a discussão de idéias altamente desagradáveis sem a necessidade de perseguir os debatedores -ainda que o que eles digam acabe por se provar falso. É o que chamo de "o direito de estar errado". Acho que as sociedades deveriam ser organizadas para permitir que tal princípio florescesse.
As idéias são temidas apenas quando são percebidas como tendo conseqüências destrutivas, para si e para os outros. Por exemplo, tentativas de banir "a negação do Holocausto" da esfera pública refletem uma sociedade que não confia no julgamento racional de seus membros. Talvez um problema maior do que a negação ativa do Holocausto seja o esquecimento passivo da questão toda, à medida que os anos -e as gerações- passam.

FOLHA - O sr. já afirmou que "os intelectuais estão no negócio de promover idéias", como se fossem marcas. Eles também podem, para melhor explicar ou desenvolver suas idéias, promover "sentimentos"?
FULLER
- Sim. Em última análise, o intelectual é um "personagem". Isso implica um determinado tipo de performance que, idealmente, pode servir como modelo para engajar-se em idéias, com pessoas e situações em instâncias públicas. Sob esse aspecto, os intelectuais são úteis tanto por sua atitude geral ou seu estilo quanto pelo conteúdo real de suas idéias.
Por exemplo, Sartre e Raymond Aron, seguramente os dois mais importantes intelectuais da segunda metade do século 20, forneceram dois modelos diferentes de "engajamento": um incendiário e retórico, o outro moderado e exato. Na verdade, a personalidade do intelectual sobrevive muito tempo depois que suas idéias já foram esquecidas. É só considerar os casos de, por exemplo, Erasmo, Voltaire ou Russell.

FOLHA - Em "Os Intelectuais na Idade Média", o historiador Jacques le Goff defende que os intelectuais podem libertar as mentes e as pessoas, numa premonição do iluminismo. No século 20, Adorno considerou que a razão tem, em sua essência, um elemento autoritário. Por qual dessas "razões" um intelectual contemporâneo deveria se guiar?
FULLER
- Em princípio, não há nada errado com a "razão instrumental". O problema começa de fato quando os "fins" passam a ser identificados estreitamente com os "meios", e considero ser essa a base da crítica de Adorno ao caráter autoritário da razão. A razão de fato pode libertar as mentes quando ela leva as pessoas a descobrirem aquilo que querem e, então, avaliar meios alternativos para chegar a determinados fins.
O crucial aqui é que os meios -políticas, instituições- que foram usados no passado não sejam tratados de modo privilegiado a priori.

FOLHA - Quando um acadêmico se torna um intelectual?
FULLER
- A resposta básica é: quando acadêmicos são capazes de traduzir suas idéias em múltiplas mídias. Isto é, não apenas a publicação técnica mas também o artigo de jornal, a demonstração em laboratório, a aplicação prática etc.
Nesse sentido, acadêmicos têm oportunidade de se tornar intelectuais quando lecionam a estudantes que carecem de conhecimento prévio -e até de interesse- sobre o tópico que está sendo ensinado. Infelizmente, esse aspecto da vida acadêmica é incrivelmente desvalorizado dentro das universidades.

FOLHA - Citando o filósofo francês Paul Ricoeur, o sr. afirma que os intelectuais são moldados pela "hermenêutica da suspeição". Por quê?
FULLER
- Os intelectuais acreditam que tudo acontece "devido a uma razão", o que implica que alguém é sempre responsável pelo que acontece -seja para o bem, seja para o mal. A esse respeito, são extremamente racionalistas, levando as pessoas a considerar como suas ações -ou a ausência delas- podem ter provocado efeitos indesejáveis.
Um intelectual trata tal ausência de ação como um ato deliberado em si mesmo. Nesse sentido, entendo a "hermenêutica da suspeição", de Paul Ricoeur, como o complemento de "o existencialismo é um humanismo", de Sartre.

FOLHA - Em "O Intelectual", o sr. diz que os sofistas prenunciaram os intelectuais modernos. Por que não Platão ou Aristóteles?
FULLER
- Entre os gregos antigos, os sofistas tinham o entendimento mais desmistificado das idéias, de que elas são parte do mundo material. Perceberam que as idéias são poderosas -assim como também o fizeram Platão e Aristóteles-, mas não tinham receio de mostrar isso a ninguém -pelo menos àqueles que podiam lhes pagar!
Eles tinham uma fé na democracia que não tinha precedentes, à época, e que teve conseqüências desastrosas para Atenas. Mas, assim como muitos outros desastres envolvendo intelectuais, esse acabou sendo muito instrutivo para as gerações seguintes.

FOLHA - Ainda há algum sentido em discutir hoje as famosas categorias criadas por Gramsci -o intelectual "tradicional" e o "orgânico"?
FULLER
- A distinção é uma criatura de seu tempo e espaço, em especial de marxistas sentindo-se culpados de suas origens burguesas. Não sei se ainda faz sentido hoje. Por exemplo, Edward Said (1935-2003) se via, no fim da vida, como um intelectual gramsciano.
O que Gramsci teria pensado desse cosmopolita professor da Ivy League, de origem árabe?
Mas Gramsci também estava falando de problemas mais gerais, sobre como os intelectuais ganham credibilidade com o público. A questão aqui é, invariavelmente, como persuadir o público de que é de seu próprio interesse -e que está a seu alcance- pensar ou fazer algo que não fizera ou pensara anteriormente.
É necessário um sentido claro tanto do início quanto do final desse processo, mas o intelectual pode adquirir tal percepção de muitas formas -e não necessariamente dizendo: "Eu sou um de vocês".


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