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Um personagem em cena
AUTOR DE "O INTELECTUAL",
O SOCIÓLOGO BRITÂNICO
STEVE FULLER DEFENDE
QUE OS PENSADORES DEVEM
"PROMOVER IDÉIAS"
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
O
intelectual é um
"personagem" que
sabe que tem um
papel a desempenhar -pois está no
"negócio de promover idéias"-
, e de sua performance depende
a qualidade do debate público.
Essa é uma das teses principais defendidas pelo sociólogo
Steve Fuller em seu estudo sobre "O Intelectual" (ed. Relume-Dumará), lançado no Brasil no ano passado.
Professor na Universidade
de Warwick (Reino Unido), ele
localiza na Grécia Antiga o protótipo do intelectual moderno.
Em particular, entre os sofistas, pela fé inabalável na força
das idéias e na democracia.
E, por isso, aponta como
exemplo de iluminista uma sociedade que permita aquilo que
chama de "o direito de estar errado".
Na entrevista abaixo, concedida por e-mail de Brisbane, na
Austrália, Fuller também fala
da falência de categorias clássicas para definir a intelligentsia
-como a de "intelectual orgânico", criada por Gramsci.
FOLHA - Habermas definiu a esfera
pública como "uma rede para comunicar informações e pontos de vista". Qual é o limite de ação do intelectual, de modo que a esfera pública não entre em colapso? O que um
intelectual pode ou não dizer?
STEVE FULLER - Acredito que uma
medida importante de uma sociedade iluminista é a sua capacidade de permitir a discussão
de idéias altamente desagradáveis sem a necessidade de perseguir os debatedores -ainda
que o que eles digam acabe por
se provar falso.
É o que chamo de "o direito
de estar errado". Acho que as
sociedades deveriam ser organizadas para permitir que tal
princípio florescesse.
As idéias são temidas apenas
quando são percebidas como
tendo conseqüências destrutivas, para si e para os outros.
Por exemplo, tentativas de
banir "a negação do Holocausto" da esfera pública refletem
uma sociedade que não confia
no julgamento racional de seus
membros.
Talvez um problema maior
do que a negação ativa do Holocausto seja o esquecimento
passivo da questão toda, à medida que os anos -e as gerações- passam.
FOLHA - O sr. já afirmou que "os intelectuais estão no negócio de promover idéias", como se fossem marcas. Eles também podem, para melhor explicar ou desenvolver suas
idéias, promover "sentimentos"?
FULLER - Sim. Em última análise, o intelectual é um "personagem". Isso implica um determinado tipo de performance que,
idealmente, pode servir como
modelo para engajar-se em
idéias, com pessoas e situações
em instâncias públicas.
Sob esse aspecto, os intelectuais são úteis tanto por sua atitude geral ou seu estilo quanto
pelo conteúdo real de suas
idéias.
Por exemplo, Sartre e Raymond Aron, seguramente os
dois mais importantes intelectuais da segunda metade do século 20, forneceram dois modelos diferentes de "engajamento": um incendiário e retórico, o outro moderado e exato.
Na verdade, a personalidade
do intelectual sobrevive muito
tempo depois que suas idéias já
foram esquecidas. É só considerar os casos de, por exemplo,
Erasmo, Voltaire ou Russell.
FOLHA - Em "Os Intelectuais na
Idade Média", o historiador Jacques
le Goff defende que os intelectuais
podem libertar as mentes e as pessoas, numa premonição do iluminismo. No século 20, Adorno considerou que a razão tem, em sua essência, um elemento autoritário. Por
qual dessas "razões" um intelectual
contemporâneo deveria se guiar?
FULLER - Em princípio, não há
nada errado com a "razão instrumental". O problema começa de fato quando os "fins" passam a ser identificados estreitamente com os "meios", e considero ser essa a base da crítica
de Adorno ao caráter autoritário da razão.
A razão de fato pode libertar
as mentes quando ela leva as
pessoas a descobrirem aquilo
que querem e, então, avaliar
meios alternativos para chegar
a determinados fins.
O crucial aqui é que os meios
-políticas, instituições- que
foram usados no passado não
sejam tratados de modo privilegiado a priori.
FOLHA - Quando um acadêmico se
torna um intelectual?
FULLER - A resposta básica é:
quando acadêmicos são capazes de traduzir suas idéias em
múltiplas mídias. Isto é, não
apenas a publicação técnica
mas também o artigo de jornal,
a demonstração em laboratório, a aplicação prática etc.
Nesse sentido, acadêmicos
têm oportunidade de se tornar
intelectuais quando lecionam a
estudantes que carecem de conhecimento prévio -e até de
interesse- sobre o tópico que
está sendo ensinado.
Infelizmente, esse aspecto da
vida acadêmica é incrivelmente
desvalorizado dentro das universidades.
FOLHA - Citando o filósofo francês
Paul Ricoeur, o sr. afirma que os intelectuais são moldados pela "hermenêutica da suspeição". Por quê?
FULLER - Os intelectuais acreditam que tudo acontece "devido
a uma razão", o que implica que
alguém é sempre responsável
pelo que acontece -seja para o
bem, seja para o mal.
A esse respeito, são extremamente racionalistas, levando as
pessoas a considerar como suas
ações -ou a ausência delas-
podem ter provocado efeitos
indesejáveis.
Um intelectual trata tal ausência de ação como um ato deliberado em si mesmo.
Nesse sentido, entendo a
"hermenêutica da suspeição",
de Paul Ricoeur, como o complemento de "o existencialismo
é um humanismo", de Sartre.
FOLHA - Em "O Intelectual", o sr.
diz que os sofistas prenunciaram os
intelectuais modernos. Por que não
Platão ou Aristóteles?
FULLER - Entre os gregos antigos, os sofistas tinham o entendimento mais desmistificado
das idéias, de que elas são parte
do mundo material.
Perceberam que as idéias são
poderosas -assim como também o fizeram Platão e Aristóteles-, mas não tinham receio
de mostrar isso a ninguém
-pelo menos àqueles que podiam lhes pagar!
Eles tinham uma fé na democracia que não tinha precedentes, à época, e que teve conseqüências desastrosas para Atenas. Mas, assim como muitos
outros desastres envolvendo
intelectuais, esse acabou sendo
muito instrutivo para as gerações seguintes.
FOLHA - Ainda há algum sentido
em discutir hoje as famosas categorias criadas por Gramsci -o intelectual "tradicional" e o "orgânico"?
FULLER - A distinção é uma criatura de seu tempo e espaço, em
especial de marxistas sentindo-se culpados de suas origens
burguesas. Não sei se ainda faz
sentido hoje. Por exemplo, Edward Said (1935-2003) se via,
no fim da vida, como um intelectual gramsciano.
O que Gramsci teria pensado
desse cosmopolita professor da
Ivy League, de origem árabe?
Mas Gramsci também estava
falando de problemas mais gerais, sobre como os intelectuais
ganham credibilidade com o
público. A questão aqui é, invariavelmente, como persuadir o
público de que é de seu próprio
interesse -e que está a seu alcance- pensar ou fazer algo
que não fizera ou pensara anteriormente.
É necessário um sentido claro tanto do início quanto do final desse processo, mas o intelectual pode adquirir tal percepção de muitas formas -e
não necessariamente dizendo:
"Eu sou um de vocês".
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