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+ sociedade
Escalada do terrorismo ameaça
acentuar cultura política do segredo,
que já vem se desenvolvendo
nos Estados ocidentais nos últimos 60 anos
ENTRE QUATRO PAREDES
por Richard Rorty
É sabido que Albert Einstein observou que, caso ocorresse a Terceira
Guerra Mundial com toda a tecnologia disponível, a Quarta
Guerra Mundial seria travada com paus
e pedras. Einstein temia um intercâmbio
de ataques termonucleares, supondo
que a ONU não chegasse a se transformar em um autêntico governo mundial,
com uma força policial capaz de se impor. Nada do que se soube desde então
poderia enfraquecer esse argumento.
Mas Einstein não podia imaginar uma
coisa: que armas nucleares de volume
pouco maior que uma maleta e fabricadas no Paquistão ou na Coréia do Norte
facultariam a um senhor como Osama
bin Laden fazer coisas de que antes só os
Estados eram capazes.
No entanto há um certo consolo no fato de que os terroristas só conseguiriam
atrasar o relógio mundial em cerca de
200 anos, e não 5.000. Porque o maior
impacto que alcançarão com suas máquinas infernais e seus horrendos atentados não serão o sofrimento e a morte. O
maior impacto será o das medidas que os
governos ocidentais tomarão para reagir
ao terrorismo. Essas reações poderiam
significar o fim de algumas instituições
que foram criadas nos 200 anos posteriores às revoluções burguesas na Europa e
na América do Norte.
A suspeita amplamente compartilhada
de que a guerra contra o terrorismo é potencialmente mais perigosa do que o terrorismo em si me parece totalmente justificada. Porque, se as conseqüências diretas do terrorismo fossem a única coisa
que devêssemos temer, não haveria motivo para supor que as democracias ocidentais não seriam capazes de sobreviver
a explosões de bombas nucleares em
suas metrópoles. Afinal, as catástrofes
naturais que causam à humanidade
morte e destruição de magnitude comparável tampouco representam risco para as instituições democráticas.
No Nordeste do Brasil ou nos povoados da África e Ásia ninguém perceberia que no mundo se apagou uma luz
Morte e reconstrução
Por exemplo, se as placas tectônicas da costa do
Pacífico se deslocassem e derrubassem
os arranha-céus, esse fato significaria a
morte certa para centenas de milhares de
pessoas. Mas, assim que se enterrassem
as vítimas, começaria a reconstrução. As
atribuições extraordinárias conseqüentes do estado de emergência também seriam limitadas no tempo.
A situação seria muito diferente no caso de um ataque terrorista. Os políticos
fariam o possível para evitar novos atentados, seriam motivados a superarem
uns aos outros em rigidez e na adoção de
medidas de maior alcance. Haveria até
medidas que poderiam pôr fim ao Estado de Direito. E a raiva que se sente
quando o sofrimento anônimo é infligido pela ação humana, e não por forças
naturais, faria a opinião pública aceitar
essas medidas.
É verdade que a conseqüência não seria um golpe de Estado fascista. A conseqüência seria uma catarata de medidas
que iniciaria uma mudança nas condições sociais e políticas da vida ocidental.
Os juízes e os tribunais perderiam sua independência, e os comandantes militares regionais receberiam da noite para o
dia uma autoridade que antes só os funcionários eleitos possuíam. Os meios de
comunicação, por sua vez, se veriam
obrigados a abafar os protestos contra os
acordos governamentais.
O medo diante de uma evolução desse
tipo é mais disseminado entre os norte-americanos, como eu, do que entre os
europeus, porque só nos Estados Unidos
o governo afirmou que estamos num estado de guerra prolongado. O ensaísta
Christopher Hitchens já brincou dizendo que a esquerda americana tem mais
medo do ministro da Justiça, John Ashcroft, do que do próprio Osama bin Laden. Com efeito, eu pertenço a esse tipo
de homem em que Hitchens pensava.
Poderes especiais
Em 11 de setembro de 2001, meu primeiro pensamento
foi que o governo Bush iria aproveitar a
situação da mesma forma como os nazistas aproveitaram o incêndio do
Reichstag. Embora esse temor não tenha
se confirmado na totalidade, ocorreu em
parte. A Casa Branca exigiu imediatamente poderes especiais, e muitos deles
lhe foram outorgados pelo Congresso.
Nas faculdades de direito se discutiu
muito se esses poderes especiais contidos no Patriot Act [conjunto de medidas
aprovado por maioria absoluta no Congresso no dia seguinte ao dos atentados e
considerado um marco na violação dos
direitos civis norte-americanos] se enquadram na Constituição americana.
Em abril, esse tema ocupará inclusive a
Suprema Corte dos EUA. Duzentos e
cinqüenta municípios e cidades americanas aprovaram resoluções contra o Patriot Act, e alguns autores chegaram a pedir que as forças policiais locais não colaborem com o governo federal na hora de aplicá-las. Além disso, os detratores do
Patriot Act o consideram apenas uma
antecipação dos poderes do estado de
emergência, que vão muito além e que
serão solicitados quando os terroristas
executarem novos atentados da magnitude do 11 de Setembro.
O Patriot Act é um compêndio muito
complexo de 342 páginas. Assim como o
texto homólogo britânico, a Lei contra o
Terrorismo, o Crime e de Segurança
(Anti-Terrorism, Crime and Security
Act), depois do 11 de Setembro essa lei
passou pelas instituições legislativas aos
tropeços. Parece improvável que todos
os deputados do Congresso que votaram
a favor tivessem uma idéia clara de seu
conteúdo. Qualquer Parlamento de um
país ocidental onde a Al Qaeda tivesse
executado um atentado maciço provavelmente aprovaria com rapidez leis semelhantes. Embora eu efetivamente
considere John Ashcroft um personagem obscuro, não creio que o governo
Bush seja composto exclusivamente de
criptofascistas ávidos pelo poder. Também não vejo assim o governo britânico.
Mas penso que o fim do Estado de Direito poderia passar quase despercebido
tanto nos Estados Unidos como na Europa simplesmente por causa das mudanças institucionais que se pretende impor
em nome do "combate ao terrorismo".
Se houvesse mais atentados terroristas
em capitais européias, os Exércitos e os
burocratas responsáveis pela segurança
nacional em todos os países-membros
da UE disporiam subitamente de poderes jamais vistos.
A opinião pública em geral consideraria isso adequado. Passaria a rejeitar
qualquer crítica em público como apoio
e tentativa de reduzir a gravidade do terrorismo. Rapidamente os ministros da
Justiça europeus diriam a seus detratores
o mesmo que disse Ashcroft: "Esta é minha mensagem para todos os que aterrorizam as pessoas pacíficas com o fantasma da perda das liberdades: sua tática só
ajuda os terroristas, porque deteriora a
união nacional e limita nossa capacidade
de tomar decisões".
Pouco a pouco esses acontecimentos
obstruiriam os canais por meio dos quais
a opinião pública pode influir nos processos políticos. Ao final desse processo
de limitação das liberdades, a democracia seria substituída por uma coisa muito
diferente, não uma ditadura militar,
tampouco um totalitarismo orwelliano,
mas um absolutismo esclarecido imposto por uma nomenclatura.
Esse tipo de estrutura de poder sobreviveu à queda da União Soviética e agora,
com Putin e seus antigos companheiros
da KGB, volta a se firmar. A mesma estrutura parece se configurar na China e
no Sudeste Asiático. Nos países governados dessa forma -por mais esclarecidos
que sejam- a opinião pública exerce
pouca influência sobre as decisões do governo. Nessa espécie de feudalismo continuariam se realizando eleições como
até agora, mas seriam tão irrelevantes
quanto as recentes eleições para a Duma
[Câmara Baixa do Parlamento russo].
Volta ao ancien régime
Como até
os tribunais e as comissões de inquérito
teriam relativamente poucos poderes, os
empresários poderiam achar oportuno
efetuar pagamentos de proteção à polícia
ou a bandos tolerados por esta. E, se um
cidadão se queixasse de corrupção ou
abuso de poder, poderia ver-se em apuros. E não somente isso. A alta cultura
perderia sua importância política, como
era hábito na União Soviética e continua
sendo na China. Nenhum meio de comunicação sem censura nem protestos
estudantis. E praticamente nenhuma sociedade civil. Mas isso significaria a volta
ao ancien régime, no qual o establishment dos responsáveis pela segurança
nacional ocuparia o lugar da corte em
Versalhes.
Caso esse panorama tão desolador se
torne realidade no Ocidente, a vida em
grande parte do mundo não sofreria mudanças. Porque nos países pobres a sociedade ainda é organizada segundo esquemas feudais. No Nordeste do Brasil
ou nos povoados da África Equatorial e
da Ásia Central ninguém perceberia tal
mudança no mundo nem notaria que se
apagou uma luz. No entanto os países
que experimentaram mais progresso
moral ficariam paralisados. E, algumas
gerações depois, um punhado de leitores
românticos reviveria nas páginas de velhos livros as utópicas fantasias da sociedade aberta, lamentando sua perda.
Talvez essa seja uma visão demasiado
pessimista do futuro. Possivelmente
Ashcroft tenha conseguido me intimidar
de tal forma -assim como a muitos outros americanos- que vejo fantasmas
por toda parte. Desejo de todo o coração
que seja assim. Não obstante comprovo
que as instituições democráticas, pelo
menos em meu país, se tornaram muito
frágeis. Temo que todos os precedentes
criados pelo governo americano em relação ao 11 de Setembro influirão muito
nos governos de outras democracias.
Depois dos atentados em Madri, o cenário americano também poderia se repetir na Europa. Embora os serviços de
espionagem e as Forças Armadas dos
países-membros da UE não sejam nem
de longe tão poderosos quanto nos Estados Unidos, poderiam conquistar de repente faculdades que nunca antes haviam tentado conseguir. A Junta, em
Washington, veria isso com bons olhos.
Muitos se perguntarão se os cidadãos
das democracias ocidentais podem fazer
algo para evitar que seus netos tenham
de viver em algum momento numa espécie de neofeudalismo. Sim, podem. Em
primeiro lugar, terão de questionar essa
política obsessiva de "segredismo". Devem exigir que seus governos divulguem
a existência de armas de destruição em
massa e informem sobre as medidas que
pensam tomar quando outros países ou
bandos criminosos como a Al Qaeda utilizarem armas nucleares.
Mudar o direito
Isso não é tudo. Os
cidadãos também podem exigir que seus
governos façam esforços para modificar
o direito internacional e as leis relativas à
Justiça penal internacional. Muitos juristas lamentam com razão que o direito internacional só foi pensado para a atuação dos Estados e que o direito penal só
faz referência a delitos cometidos pelos
cidadãos dentro de suas fronteiras nacionais. A nova redação dessas leis ofereceria, além disso, uma oportunidade para
assinar acordos multilaterais e refletir sobre uma reforma estrutural da ONU.
Definitivamente, se os governos ocidentais fossem obrigados a publicar seus
planos para estados de emergência, os
políticos autoritários e demagógicos teriam maior dificuldade para aproveitar
em benefício próprio um possível estado
de exceção. Quanto mais intensamente a
opinião pública debater as futuras crises,
menor será a mudança institucional que
estas poderão provocar. Por isso não há
nenhuma razão pela qual os governos da
França, Reino Unido, Estados Unidos e
Israel não devam informar a seus cidadãos a quantidade de ogivas nucleares de
que dispõem, quantas pensam fabricar
no futuro e sob que condições deverão
ser utilizadas.
Também não há, tampouco, nenhum
motivo pelo qual se deva ocultar a verdade sobre o desenvolvimento de armas
químicas ou biológicas ou porque se deva privar a opinião pública americana de
informações sobre o motivo da produção de "antraz próprio para armamento", fabricado com o dinheiro dos contribuintes. E por que manter em segredo os
orçamentos e as responsabilidades do
órgão de segurança nacional americano
ou de seu homólogo britânico?
Além disso, é hora de serem finalmente
publicados os convênios que tornaram
possível salpicar o planeta com mais de
700 bases de apoio militar americanas.
Os motivos para privar a opinião pública
dessas informações já eram bastante fracos durante a Guerra Fria. O progresso
experimentado pela humanidade nos séculos 19 e 20 se deve sobretudo ao papel
da opinião pública crítica e a sua influência na política.
Mas as medidas de segredo de Estado
dos governos nos últimos 60 anos fizeram surgir uma nova e duvidosa cultura
política. Um estrato do poder nos Estados Unidos e na União Européia se acostumou à idéia de que só pode cumprir
seu dever de garantir a segurança nacional ocultando completamente suas atividades da opinião pública. O 11 de Setembro reforçou ainda mais suas convicções,
e, se ocorrerem mais atentados terroristas, essas elites provavelmente acabarão
acreditando que, para salvar a democracia, é preciso primeiro destruí-la.
Mas, se ocorrer a pior das mudanças
possíveis, os historiadores terão de explicar algum dia à humanidade por que a
época de ouro do Ocidente durou apenas
200 anos. As passagens mais tristes de
seus livros falariam de como os cidadãos
das democracias contribuíram com sua
covardia para provocar a catástrofe.
Richard Rorty é filósofo e professor na Universidade Stanford (EUA). É autor de "Para Realizar a
América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará). Este artigo se baseia em
uma conferência pronunciada no Fórum Einstein,
em Berlim.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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