São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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+ sociedade

Escalada do terrorismo ameaça acentuar cultura política do segredo, que já vem se desenvolvendo nos Estados ocidentais nos últimos 60 anos

ENTRE QUATRO PAREDES

por Richard Rorty

É sabido que Albert Einstein observou que, caso ocorresse a Terceira Guerra Mundial com toda a tecnologia disponível, a Quarta Guerra Mundial seria travada com paus e pedras. Einstein temia um intercâmbio de ataques termonucleares, supondo que a ONU não chegasse a se transformar em um autêntico governo mundial, com uma força policial capaz de se impor. Nada do que se soube desde então poderia enfraquecer esse argumento. Mas Einstein não podia imaginar uma coisa: que armas nucleares de volume pouco maior que uma maleta e fabricadas no Paquistão ou na Coréia do Norte facultariam a um senhor como Osama bin Laden fazer coisas de que antes só os Estados eram capazes. No entanto há um certo consolo no fato de que os terroristas só conseguiriam atrasar o relógio mundial em cerca de 200 anos, e não 5.000. Porque o maior impacto que alcançarão com suas máquinas infernais e seus horrendos atentados não serão o sofrimento e a morte. O maior impacto será o das medidas que os governos ocidentais tomarão para reagir ao terrorismo. Essas reações poderiam significar o fim de algumas instituições que foram criadas nos 200 anos posteriores às revoluções burguesas na Europa e na América do Norte. A suspeita amplamente compartilhada de que a guerra contra o terrorismo é potencialmente mais perigosa do que o terrorismo em si me parece totalmente justificada. Porque, se as conseqüências diretas do terrorismo fossem a única coisa que devêssemos temer, não haveria motivo para supor que as democracias ocidentais não seriam capazes de sobreviver a explosões de bombas nucleares em suas metrópoles. Afinal, as catástrofes naturais que causam à humanidade morte e destruição de magnitude comparável tampouco representam risco para as instituições democráticas.

No Nordeste do Brasil ou nos povoados da África e Ásia ninguém perceberia que no mundo se apagou uma luz

Morte e reconstrução
Por exemplo, se as placas tectônicas da costa do Pacífico se deslocassem e derrubassem os arranha-céus, esse fato significaria a morte certa para centenas de milhares de pessoas. Mas, assim que se enterrassem as vítimas, começaria a reconstrução. As atribuições extraordinárias conseqüentes do estado de emergência também seriam limitadas no tempo. A situação seria muito diferente no caso de um ataque terrorista. Os políticos fariam o possível para evitar novos atentados, seriam motivados a superarem uns aos outros em rigidez e na adoção de medidas de maior alcance. Haveria até medidas que poderiam pôr fim ao Estado de Direito. E a raiva que se sente quando o sofrimento anônimo é infligido pela ação humana, e não por forças naturais, faria a opinião pública aceitar essas medidas. É verdade que a conseqüência não seria um golpe de Estado fascista. A conseqüência seria uma catarata de medidas que iniciaria uma mudança nas condições sociais e políticas da vida ocidental. Os juízes e os tribunais perderiam sua independência, e os comandantes militares regionais receberiam da noite para o dia uma autoridade que antes só os funcionários eleitos possuíam. Os meios de comunicação, por sua vez, se veriam obrigados a abafar os protestos contra os acordos governamentais. O medo diante de uma evolução desse tipo é mais disseminado entre os norte-americanos, como eu, do que entre os europeus, porque só nos Estados Unidos o governo afirmou que estamos num estado de guerra prolongado. O ensaísta Christopher Hitchens já brincou dizendo que a esquerda americana tem mais medo do ministro da Justiça, John Ashcroft, do que do próprio Osama bin Laden. Com efeito, eu pertenço a esse tipo de homem em que Hitchens pensava.

Poderes especiais
Em 11 de setembro de 2001, meu primeiro pensamento foi que o governo Bush iria aproveitar a situação da mesma forma como os nazistas aproveitaram o incêndio do Reichstag. Embora esse temor não tenha se confirmado na totalidade, ocorreu em parte. A Casa Branca exigiu imediatamente poderes especiais, e muitos deles lhe foram outorgados pelo Congresso. Nas faculdades de direito se discutiu muito se esses poderes especiais contidos no Patriot Act [conjunto de medidas aprovado por maioria absoluta no Congresso no dia seguinte ao dos atentados e considerado um marco na violação dos direitos civis norte-americanos] se enquadram na Constituição americana.
Em abril, esse tema ocupará inclusive a Suprema Corte dos EUA. Duzentos e cinqüenta municípios e cidades americanas aprovaram resoluções contra o Patriot Act, e alguns autores chegaram a pedir que as forças policiais locais não colaborem com o governo federal na hora de aplicá-las. Além disso, os detratores do Patriot Act o consideram apenas uma antecipação dos poderes do estado de emergência, que vão muito além e que serão solicitados quando os terroristas executarem novos atentados da magnitude do 11 de Setembro. O Patriot Act é um compêndio muito complexo de 342 páginas. Assim como o texto homólogo britânico, a Lei contra o Terrorismo, o Crime e de Segurança (Anti-Terrorism, Crime and Security Act), depois do 11 de Setembro essa lei passou pelas instituições legislativas aos tropeços. Parece improvável que todos os deputados do Congresso que votaram a favor tivessem uma idéia clara de seu conteúdo. Qualquer Parlamento de um país ocidental onde a Al Qaeda tivesse executado um atentado maciço provavelmente aprovaria com rapidez leis semelhantes. Embora eu efetivamente considere John Ashcroft um personagem obscuro, não creio que o governo Bush seja composto exclusivamente de criptofascistas ávidos pelo poder. Também não vejo assim o governo britânico. Mas penso que o fim do Estado de Direito poderia passar quase despercebido tanto nos Estados Unidos como na Europa simplesmente por causa das mudanças institucionais que se pretende impor em nome do "combate ao terrorismo". Se houvesse mais atentados terroristas em capitais européias, os Exércitos e os burocratas responsáveis pela segurança nacional em todos os países-membros da UE disporiam subitamente de poderes jamais vistos. A opinião pública em geral consideraria isso adequado. Passaria a rejeitar qualquer crítica em público como apoio e tentativa de reduzir a gravidade do terrorismo. Rapidamente os ministros da Justiça europeus diriam a seus detratores o mesmo que disse Ashcroft: "Esta é minha mensagem para todos os que aterrorizam as pessoas pacíficas com o fantasma da perda das liberdades: sua tática só ajuda os terroristas, porque deteriora a união nacional e limita nossa capacidade de tomar decisões". Pouco a pouco esses acontecimentos obstruiriam os canais por meio dos quais a opinião pública pode influir nos processos políticos. Ao final desse processo de limitação das liberdades, a democracia seria substituída por uma coisa muito diferente, não uma ditadura militar, tampouco um totalitarismo orwelliano, mas um absolutismo esclarecido imposto por uma nomenclatura. Esse tipo de estrutura de poder sobreviveu à queda da União Soviética e agora, com Putin e seus antigos companheiros da KGB, volta a se firmar. A mesma estrutura parece se configurar na China e no Sudeste Asiático. Nos países governados dessa forma -por mais esclarecidos que sejam- a opinião pública exerce pouca influência sobre as decisões do governo. Nessa espécie de feudalismo continuariam se realizando eleições como até agora, mas seriam tão irrelevantes quanto as recentes eleições para a Duma [Câmara Baixa do Parlamento russo].

Volta ao ancien régime
Como até os tribunais e as comissões de inquérito teriam relativamente poucos poderes, os empresários poderiam achar oportuno efetuar pagamentos de proteção à polícia ou a bandos tolerados por esta. E, se um cidadão se queixasse de corrupção ou abuso de poder, poderia ver-se em apuros. E não somente isso. A alta cultura perderia sua importância política, como era hábito na União Soviética e continua sendo na China. Nenhum meio de comunicação sem censura nem protestos estudantis. E praticamente nenhuma sociedade civil. Mas isso significaria a volta ao ancien régime, no qual o establishment dos responsáveis pela segurança nacional ocuparia o lugar da corte em Versalhes. Caso esse panorama tão desolador se torne realidade no Ocidente, a vida em grande parte do mundo não sofreria mudanças. Porque nos países pobres a sociedade ainda é organizada segundo esquemas feudais. No Nordeste do Brasil ou nos povoados da África Equatorial e da Ásia Central ninguém perceberia tal mudança no mundo nem notaria que se apagou uma luz. No entanto os países que experimentaram mais progresso moral ficariam paralisados. E, algumas gerações depois, um punhado de leitores românticos reviveria nas páginas de velhos livros as utópicas fantasias da sociedade aberta, lamentando sua perda. Talvez essa seja uma visão demasiado pessimista do futuro. Possivelmente Ashcroft tenha conseguido me intimidar de tal forma -assim como a muitos outros americanos- que vejo fantasmas por toda parte. Desejo de todo o coração que seja assim. Não obstante comprovo que as instituições democráticas, pelo menos em meu país, se tornaram muito frágeis. Temo que todos os precedentes criados pelo governo americano em relação ao 11 de Setembro influirão muito nos governos de outras democracias. Depois dos atentados em Madri, o cenário americano também poderia se repetir na Europa. Embora os serviços de espionagem e as Forças Armadas dos países-membros da UE não sejam nem de longe tão poderosos quanto nos Estados Unidos, poderiam conquistar de repente faculdades que nunca antes haviam tentado conseguir. A Junta, em Washington, veria isso com bons olhos. Muitos se perguntarão se os cidadãos das democracias ocidentais podem fazer algo para evitar que seus netos tenham de viver em algum momento numa espécie de neofeudalismo. Sim, podem. Em primeiro lugar, terão de questionar essa política obsessiva de "segredismo". Devem exigir que seus governos divulguem a existência de armas de destruição em massa e informem sobre as medidas que pensam tomar quando outros países ou bandos criminosos como a Al Qaeda utilizarem armas nucleares.

Mudar o direito
Isso não é tudo. Os cidadãos também podem exigir que seus governos façam esforços para modificar o direito internacional e as leis relativas à Justiça penal internacional. Muitos juristas lamentam com razão que o direito internacional só foi pensado para a atuação dos Estados e que o direito penal só faz referência a delitos cometidos pelos cidadãos dentro de suas fronteiras nacionais. A nova redação dessas leis ofereceria, além disso, uma oportunidade para assinar acordos multilaterais e refletir sobre uma reforma estrutural da ONU.
Definitivamente, se os governos ocidentais fossem obrigados a publicar seus planos para estados de emergência, os políticos autoritários e demagógicos teriam maior dificuldade para aproveitar em benefício próprio um possível estado de exceção. Quanto mais intensamente a opinião pública debater as futuras crises, menor será a mudança institucional que estas poderão provocar. Por isso não há nenhuma razão pela qual os governos da França, Reino Unido, Estados Unidos e Israel não devam informar a seus cidadãos a quantidade de ogivas nucleares de que dispõem, quantas pensam fabricar no futuro e sob que condições deverão ser utilizadas.
Também não há, tampouco, nenhum motivo pelo qual se deva ocultar a verdade sobre o desenvolvimento de armas químicas ou biológicas ou porque se deva privar a opinião pública americana de informações sobre o motivo da produção de "antraz próprio para armamento", fabricado com o dinheiro dos contribuintes. E por que manter em segredo os orçamentos e as responsabilidades do órgão de segurança nacional americano ou de seu homólogo britânico?
Além disso, é hora de serem finalmente publicados os convênios que tornaram possível salpicar o planeta com mais de 700 bases de apoio militar americanas. Os motivos para privar a opinião pública dessas informações já eram bastante fracos durante a Guerra Fria. O progresso experimentado pela humanidade nos séculos 19 e 20 se deve sobretudo ao papel da opinião pública crítica e a sua influência na política.
Mas as medidas de segredo de Estado dos governos nos últimos 60 anos fizeram surgir uma nova e duvidosa cultura política. Um estrato do poder nos Estados Unidos e na União Européia se acostumou à idéia de que só pode cumprir seu dever de garantir a segurança nacional ocultando completamente suas atividades da opinião pública. O 11 de Setembro reforçou ainda mais suas convicções, e, se ocorrerem mais atentados terroristas, essas elites provavelmente acabarão acreditando que, para salvar a democracia, é preciso primeiro destruí-la.
Mas, se ocorrer a pior das mudanças possíveis, os historiadores terão de explicar algum dia à humanidade por que a época de ouro do Ocidente durou apenas 200 anos. As passagens mais tristes de seus livros falariam de como os cidadãos das democracias contribuíram com sua covardia para provocar a catástrofe.


Richard Rorty é filósofo e professor na Universidade Stanford (EUA). É autor de "Para Realizar a América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará). Este artigo se baseia em uma conferência pronunciada no Fórum Einstein, em Berlim.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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