São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Soma de fanatismo e desesperança na periferia do mundo cria condições para que um jovem siga cegamente sua lei por meio do martírio

A lógica ensandecida do terror

José Arthur Giannotti

Que não me interpretem incorretamente: um terrorista, pego de armas na mão, deve ser abatido como animal, mas esse ato de legítima defesa retira dele qualquer humanidade? Por isso não pode ter alguma razão? Convém, pois, investigar se há uma lógica ensandecida de suas ações; mais ainda, se ela se entrelaça com a lógica de nossa própria sociabilidade, digamos, a da civilização ocidental, ou se se contrapõe a ela como sua negação absoluta. No primeiro caso, a lógica terrorista seria o avesso, levado ao limite, de certos traços de nossa sociedade; no segundo, mal cuja radicalidade vem de fora. É evidente que o modo de combater o terrorismo depende do lugar no qual é reconhecido e da matriz de sua perversidade. É de notar, desde logo, que o terrorismo contemporâneo se distingue de outras formas do terror -do anarquismo do século 19, por exemplo, quando grupos marginais ao sistema político tinham como objetivo assassinar líderes cujas mortes provocassem comoção nacional. Estaria o anarquismo, por certo, mais próximo dos ativistas bascos, que, embora podendo visar a população civil, anunciam previamente o ato a ser realizado. O terror promovido pela Al Qaeda, entretanto, é diferente, pois é maciço, irrompe na vida cotidiana como catástrofe natural e se assemelha às guerras do século 20, no que concerne ao perigo por que faz passar, indiscriminadamente, a população civil. Daí ameaçar o espaço público na sua própria razão de ser, na sua função elementar de assegurar a sobrevivência física dos cidadãos. Já os contratualistas do século 18 diziam que uma sociedade "policiada" -no nosso vocabulário, civilizada- haveria de ser regida por leis estáveis, capazes de providenciar a segurança de todos, isolando-os de qualquer inimigo mortífero. O terrorista contemporâneo, porém, mata os adversários porque os considera cidadãos de outro mundo, funcionando assim como espécie de hacker da política, capaz de intervir nos interstícios da vida cotidiana para negá-la por inteiro.

Óleo fervente
Convém prestar atenção em como nossas metrópoles, do ponto de vista da segurança, são muito diferentes, por exemplo, das cidades italianas pouco "policiadas" ou, melhor, pouco civilizadas da alta Idade Média. Nessa época, Florença era um paliteiro de torres, como se vê ainda hoje em San Gimigniano, mas numa escala superior. Ao lado da casa do vizinho e adversário potencial, cada patrício tratava de construir outra mais alta, a fim de poder mais facilmente lançar-lhe flechas, pedras ou queimá-lo com óleo fervente. Para bloquear essa escalada para o alto e controlar a luta constante nas ruas, uma das medidas mais importantes tomadas pelo poder central foi impedir que se construíssem torres mais altas do que a do Palazzo Vecchio. Se esta ainda hoje sobrevoa a cidade, logo percebemos que as torres foram substituídas por uma sofisticada rede de dispositivos reguladores das condutas, por uma teia de olhos eletrônicos vigilantes e, finalmente, por um sofisticado sistema repressivo que mistura vigilância e punição. Não é precisamente essa complexidade que cria pontos nevrálgicos, cuja fragilidade permite pequenas intervenções de grande efeito destrutivo? Não é neles que intervém o terrorista, fazendo com que as sofisticações da segunda natureza na qual convivemos se transformem em catástrofes semelhantes às erupções vulcânicas? Daí ser possível que uma organização privada possa se contrapor eficazmente ao monopólio da violência legítima do Estado, que capitais privados e marginais possam se confrontar aos bilhões dos fundos públicos. Desse modo, são os próprios dispositivos encarregados de assegurar a unidade complexa da nova pólis, seja no plano da obediência às regras sociais, seja no plano da vigilância e da regulação dessas regras, que desenham as matrizes de sua negação. À medida que se tornam mais impessoais e se entrelaçam mediante redes de informação e aparelhos sofisticados, mais passam a ser susceptíveis de sofrer intervenções de cunho privado, pontuais, mas com o efeito de uma guerra que não mais opõe Estados a Estados. Noutras palavras, as normas e suas condições de existência, responsáveis pela regulação do mundo cotidiano, se articulam graças a mediadores técnicos e impessoais, cujas partes estão alinhavadas por elos criados pelo progresso das ciências; por conseguinte, são facilmente desatáveis pela cunha de um elemento mecânico, o que cria um poder de destruição maciça, pronto para ser utilizado, com o sinal negativo, por organizações marginais. Não se convertem, então, em associações políticas, graças ao tamanho do impacto de suas ações criminosas? Na Florença do fim da Idade Média o inimigo mais temido era o vizinho de rosto conhecido; nas metrópoles contemporâneas, ele se esconde em cada esquina, cuja iluminação pode ser cortada a qualquer momento; em vez de ser pessoa, ele se resume numa variável passível de assumir múltiplos valores, figura vagando no espaço, fantasma que um motorista francês alucinado atropela porque o identificou como Bin Laden. Se o mundo cotidiano tecnologicamente sofisticado permite uma forma total de terrorismo, o capitalismo contemporâneo configura seu ator. Já na primeira metade do século passado, Emile Durkheim apontava a anomia das sociedades contemporâneas, em que as relações sociais tradicionais vêm a ser substituídas por relacionamentos "ad hoc". Parece-me que, à medida que passam a ser mediadas por instrumentos tecnologicamente sofisticados, mais o agente se isola dos outros para enriquecer a si mesmo com elos virtuais. Daí se conformar numa mônada capaz de refletir um mundo, mas inepta para enfrentar as vicissitudes de um relacionamento real, sempre cheio de surpresas e viscosidades. Além do mais, usualmente deve assalariar-se para poder sobreviver, convivendo, portanto, com as formas mais instáveis do trabalho contemporâneo, quando não há de enfrentar o desemprego e o desmoronamento de suas perspectivas de vida por causa da falência do Estado de Bem-Estar Social. Se, como querem alguns sociólogos, nossa sociedade é de risco, ela ainda me parece sem visgo, de tal modo livre do atrito normal às ações que cada ator, ao mesmo tempo em que tende a se refugiar no seu próprio narcisismo, é virtualmente explosivo nas suas formas de intervenção social. Cada sociedade combina a seu modo a dualidade do ser humano -alma e corpo, razão e paixão, transcendência e imanência, sejam quais forem os nomes dados a esses pólos. Na contemporânea, parece-me que as normas tendem a ser parâmetros confusos, como se todos fôssemos míopes dirigindo num trânsito caótico. Se os sinais são apenas sugeridos como num quadro impressionista, o recurso é pautar as ações pelos carros vizinhos, que assim se transformam em exemplos da boa conduta. Se nada é fixo, se tudo fibrila, cada caso tende a ser um caso e quase toda norma é adaptável e negociável, ladeada de uma auréola de sentidos imprecisos, por conseguinte mais próxima de nós e, por isso mesmo, mais fugidia. Em compensação, o outro tende a ser tanto virtual como exemplo do possível, já que nossa ação responde, sem lei, aos meandros de seu percurso.

Sociedade reencantada
Em situações imprecisas, a tendência não é, em vez de combinar da melhor maneira os vetores contraditórios, radicalizar apenas uma das faces do problema? É possível, no trânsito caótico coordenado por códigos impressionistas, seguir a norma cegamente, avançar de modo resoluto como se o caminho fosse de gelo, e o outro, retrato do próprio ego. Esse novo ator não é quem chamamos de fanático?
Talvez por aí comece a ser possível explicar por que, em vez do que previra Max Weber, no início do século 20, a sociedade se reencanta, muitos tendendo a ver deuses e diabos por todos os lados, a freqüentar igrejas desde que lhes seja possível pular de uma para outra. Não é desse modo que a falta de visgo das relações contemporâneas vem a ser compensada por uma religião, religação, imaginária, embora precária? O terrorista não parece ser, então, aquele que nega essa precariedade pelo martírio de si mesmo? Se a crise não é das ciências ocidentais, mas das normas tácitas reguladoras da vida cotidiana, ainda é preciso considerar que o processo de globalização faz com que essa crise seja exportada do centro do sistema para a periferia. Convém tomar cautela com essa imagem, pois muitas vezes a periferia se encontra nos poros centrais do sistema capitalista global.

Nós e o terrorista
Mas, se a fibrilação da norma ocorre mais intensamente onde aumentam os riscos e diminui o visgo, é na periferia que ela tende a se instalar, pois aí se cruza com a fragilização da economia e dos Estados nacionais -de um lado, o fluxo mais elementar que os homens mantêm com a natureza; de outro, o sistema público mais abrangente de vigilância dessas mesmas normas. A soma do fanatismo com a falta de esperança do homem periférico, excluído da norma e do consumo narcisista, não é uma das receitas do terror? Não é nessas condições que um jovem passa a seguir cegamente sua lei por meio do martírio?
Que não me atribuam mais do que pretendo, não estou propondo uma explicação do terrorismo nem dando a chave para entender as formas de violência vigentes no nosso cotidiano. Apenas procuro dissolver essa rígida oposição entre nós e o terrorista, como se de um lado residisse o bem, de outro o mal, pois se o terror, como dizem, veio para ficar por longo tempo, não é por que, sob algum aspecto, é a sombra de nós mesmos?


Nota:
Revisaram este artigo Luciano Codato e Luiz Henrique dos Santos, aos quais devo o melhor de meus agradecimentos.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C.", do Mais!.


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