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A ARTE DO POSSÍVEL
EM CARTA A UM ESTUDANTE DE TEOLOGIA, A FILÓSOFA ALEMÃ HANNAH ARENDT REBATE O ALCANCE UNIVERSAL DOS ATOS POLÍTICOS
25 de novembro de 1967
Prezado senhor Benedict,
O senhor está a par das errâncias de sua bela carta, que só me
chegou às mãos, depois de todas as tribulações, quando eu já
me aprontava a embarcar num
avião. Quero tentar responder-lhe agora; é uma pena que deva
fazê-lo por escrito.
O senhor diz ter relido minha
brochura sobre a Revolução
Húngara [1956]. Até onde sei, a
editora a retirou do mercado,
com minha concordância. Suas
objeções estão corretas; são as
mesmas que me faço hoje. Não
pus fé no desenvolvimento da
situação na Rússia.
Jamais ataquei o comunismo
enquanto tal, muito menos o
reduzi a uma posição totalitária. Sempre me manifestei com
toda clareza contra a identificação de Lênin com Stálin ou
mesmo de Marx com Stálin.
Não diria que o comunismo
se modificou, mas, sim, que a
forma de domínio se transformou. O que temos hoje na Rússia é a ditadura do partido único, uma variante da tirania, e
apenas isso, que era de esperar
pelo curso "normal" das coisas
após a morte de Lênin, não fosse a intervenção de Stálin.
Também não acredito no
"potencial" de autotransformação do sistema totalitário
-seria como se uma monarquia absoluta pudesse rumar
por si só para uma monarquia
constitucional.
Também no que toca o seu
segundo ponto, imperialismo
americano no Vietnã, estamos
de acordo quanto ao essencial.
Vácuo de poder
O único elemento de consolo
na história toda é que o país vai
se agitando mais e mais, e que o
governo não pode fazer nada a
respeito, se não quiser atingir
os fundamentos da república.
Confio que o senhor esteja a
par disso e não entrarei em detalhes. Pode bem ser que estejamos no início de um novo desenvolvimento imperialista -não necessariamente totalitário; o que é certo é que a república dos EUA não sobreviverá
a um tal curso das coisas, isto é,
a república como forma de governo, não o próprio país.
Também o país se encontra
sob grave ameaça, mas isso não
me importa tanto. Minha lealdade vincula-se a esta república -não ao país- e, é claro,
também às pessoas, entre as
quais, feitas as contas, me sinto
melhor do que nunca.
O senhor me pergunta ainda
se a questão social se tornou a
questão política por excelência.
A luta contra a pobreza e a fome
diz respeito exclusivamente à
pobreza e à fome, ao menos no
que diz respeito aos pobres e famintos, que não costumam ser
os que conduzem ou que poderiam conduzir essa luta.
E a luta contra o analfabetismo é cada vez mais uma pré-condição para o fim da pobreza
e da fome. A pobreza e a fome
(chame-as como quiser) impediram que surgisse, dos movimentos de libertação na Ásia e
na África, alguma coisa com um
mínimo de estabilidade.
A pobreza e a fome criaram o
vácuo de poder -também na
América do Sul, onde a corrupção dos governos é o reverso
dessa medalha- que agora está
ressuscitando o imperialismo.
Toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela
violência!) que ela é capaz de
exercer; pobreza, fome e analfabetismo criam apenas impotência. Não me venha com os
vietnamitas, que de fato conquistaram poder no curso da
guerra de guerrilha; nós já os
conhecíamos quando ainda se
chamavam "indochineses".
Não são absolutamente um
povo miserável, mas um povo
desafortunado, mas altamente
dotado e herdeiro de uma cultura antiga. Trata-se, ali, de libertação nacional, mas não, absolutamente, do que entendemos por liberdade.
E o mesmo vale, creio, para
Cuba, onde cabe a nós a culpa
maior pelo desdobrar dos acontecimentos rumo à tirania russa. Mas olhe bem para os outros
Estados sul-americanos.
Bem, chegamos então ao "capítulo adicional da história da
revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário". Quisera eu ser tão
otimista quanto o senhor! A
Pax Americana, contra a qual
Kennedy se exprimiu com veemência e que Johnson proclamou abertamente, é um pesadelo imperialista -mas, por isso mesmo, apenas um sonho.
Caos puro
A "pacificação de cima para
baixo" de que o senhor fala é
impossível tecnicamente, seja
em termos militares ou econômicos. Ninguém é rico o bastante para ajudar a quem não
consegue se ajudar; foi possível
dar auxílio à Alemanha ou ao
Japão, mas não há como ajudar
a Índia, o Egito ou o Congo.
E, no que diz respeito aos militares, a Guerra do Vietnã deveria ser prova suficiente de
que as superpotências já não
têm como conduzir guerras
convencionais; e graças a Deus
estão todos de mãos amarradas
no que diz respeito à guerra
atômica.
É claro que seria possível invadir o Vietnã, o Vietnã do Norte e ocupar e violentar o país
com alguns milhões de soldados. Mas, sem falar nos tremendos riscos políticos, quantas vezes um país como os Estados Unidos poderia se permitir
esse tipo de coisa?
No que diz respeito à violência: não há revolução que tenha
triunfado graças à simples violência. Há, é claro, o levante
violento dos oprimidos, que entretanto só conseguiu alguma
coisa quando o poder do Estado
já estava minado. É sempre a
impotência, a cólera cega e tremenda dos impotentes que se
manifesta como violência.
Quando ela triunfa, o caos
puro e simples se instala no dia
seguinte -simplesmente porque todos que descarregaram
sua ira começam imediatamente a divergir. Daí não virá
nenhuma resistência.
E, se acha que algo do gênero
está se dando no Vietnã, creio
que o senhor está fundamentalmente equivocado. E creio
haver algo do gênero, um erro
do mesmo gênero, em outra de
suas observações.
Sonho de unidade
O senhor afirma que a Guerra do Vietnã teria revelado aos
estudantes "a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo". Quanto a esse último
ponto, podemos concordar
sem mais delongas; mas a "unidade do mundo", supondo que
o senhor entenda por esse termo mais que uma espécie de
solidariedade, é apenas um sonho. Apenas em termos técnicos o mundo constitui uma espécie de unidade.
Sob todos os outros pontos
de vista, sobretudo no que diz
respeito à política e às chances
de um desenvolvimento rumo
à liberdade, cada país constitui
um caso à parte.
Quanto ao seu último ponto,
não resta dúvida de que estamos envolvidos na persistência
de "condições indignas" na
Pérsia, no Vietnã e no Brasil,
mas não cabe a nós transformá-las. Essa me parece ser uma espécie de delírio de grandeza às
avessas.
Tente fazer política na Pérsia, e o senhor logo estará curado. Sua responsabilidade diz
respeito a impedir que se perpetuem condições indignas na
Alemanha ou que se matem estudantes durante uma manifestação. Temo que isso já o
manterá mais que ocupado.
"Politics, like charity, begins
at home" [Política, como caridade, começa em casa]. Se amanhã -e isso seria bem possível-, após a retirada das tropas
americanas do Vietnã, os vietnamitas começarem a se degolar mutuamente, eu não me
sentirei em nada responsável.
A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e
as possibilidades dos homens e
dos povos são sempre limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza,
por mais que este se oculte por
trás de sentimentos sublimes.
[...]
Com os melhores votos, sua
Hannah Arendt
A íntegra desta carta saiu na "Mittelweg".
Tradução de SAMUEL TITAN JR.
NA INTERNET - Leia a íntegra da
troca de cartas entre Hannah Arendt
e o estudante de teologia Hans-Jürgen Benedict no site
www.folha.com.br/081221
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