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+ Arte
ATO SUSTENTÁVEL
REIVINDICAÇÕES DE 68 RESSURGEM EM ESCALA AMBIENTAL E CONTRA A IDÉIA
DE CONSUMO
A onda geral é crer na reconquista de uma unidade da vida, mesmo que o espetáculo seja irreversível
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LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se não há mais pesquisa formal em seu trabalho, qual é a sua intenção atual?". Nessa
pergunta de Vera Pedrosa a Lygia Clark (1920-88),
ouvimos os ecos do grito estudantil da França para o "Correio da Manhã", no Rio de Janeiro (30/5/1968).
No lugar de produzir objetos
destinados à função contemplativa, artistas do mundo inteiro se posicionam contra o
império da representação.
Quis-se que o desejo fosse
realidade. Combater a aceitação passiva do espectador diante do mundo da imagem -teses
formuladas por Guy Debord
(1931-1994)- foi a grande mola
dos atos de contestação. Redundou em convites para caminhadas-derivas, relatos de
deambulações urbanas e mapas psicogeográficos com o objetivo de fazer explorações, notadamente de bairros industriais desativados.
Essa fixação no comportamento permitiu a passagem de
uma idealização da revolução
para os paradigmas da cultura
pop, pelo viés do "comportamento", ou, no léxico da arte
engajada, da "atitude".
No ano seguinte, o curador
Harald Szeemann (1933-2005)
capta no espírito do tempo a
necessidade de evidenciar processos artísticos, e organiza
"When Attitudes Become
Form" [Quando Atitudes Se
Tornam Forma].
O mundo continuava opaco e
os textos estéticos de Merleau-Ponty (1908-61) guiaram a percepção de um corpo "ao mesmo tempo vidente e visível", "visível e sensível por si mesmo". Na arte, foi traduzida em
tintas de teor dramático (o
neo-expressionismo dá nome a
uma das tendências).
Corpo descoberto
Em paralelo, a sexualidade
encontra a Aids e ensaia uma
ideologia substitutiva. O corpo,
continente a ser descoberto a
cada geração, é acometido de
um mal ligado ao desejo.
No Brasil, esse pesadelo do
sistema imunológico tem a fatalidade de coincidir com o final da ditadura militar (1985).
A liberdade de expressão assume imediatamente um sentido
duplo na luta pela vida. Como
ser um jovem inconformado
depois de Leonilson (1957-83)?
A ressaca da transmissibilidade
leva à retração da mensagem.
Mas a tradução em inglês do
livro "A Abjeção", de Julia Kristeva, desencadeia nos EUA um
alento para questionar ainda o
desejo. Diminuída a distância
entre sujeito e corpo, a fusão
era inevitável e seu arco conceitual vai da crise do objeto à ênfase nos fragmentos escatológicos (Whitney Museum, 1993).
Mais tarde, saberemos que
não sucumbir ao prosaísmo da
biografia foi um ganho de maturidade.
Entretanto o Muro de Berlim
e a União Soviética também
iam sendo despedaçados, mas o
verdadeiro debate político demorou a retomar fôlego, no mínimo até o homem aprender a
conviver sem uma cura definitiva. O "pós-comunismo" se
torna condição necessária para
reescrever narrativas históricas que restringiram, durante a
Guerra Fria, o direito à modernidade aos Estados Unidos e à
Europa Ocidental.
Destruição, reconstrução e
desconstrução: esse cenário
envolvendo guerra civil e confrontos com os vizinhos é emblematizado na cidade de Beirute, cujos arquitetos, artistas e
escritores se reúnem para garantir uma memória e uma representação. A crítica e curadora Catherine David deu voz internacional às práticas documentárias vinculadas à compilação de arquivos.
Na era digital, essa discussão
foi além do mero uso da internet e do terror iminente da tecla "delete" (apagar).
Karaokê
Hoje, vemos iniciativas na
esteira dos acontecimentos do
Maio de 68 sendo retomadas e
desenvolvidas na escala ambiental das intervenções artísticas. O sentido dessa volta poderia denotar uma falta de originalidade, mas não: a lógica da
urbanização e da globalização
gerou a classe dos excluídos. As
vertentes da crítica institucional (família, ensino, carreira
profissional) são seu refluxo.
Porém, contrariamente aos
vaticínios de Debord, a onda
geral é acreditar na reconquista
de uma unidade da vida, mesmo que o espetáculo seja irreversível. "Museu é o mundo." O
"programa ambiental" de Hélio
Oiticica (1937-80) não foi uma
teoria negativa da sociedade.
Por exemplo, o karaokê vale
para um artista-propositor na
busca da participação do não-artista.
Os projetos de Rirkrit Tiravanija têm uma filiação inconsciente: ocupar espaços não habituais para mostras, implantar
uma comunidade ("The Land",
iniciado em 1998), cozinhar para o público de vernissages, não
fazer vernissage, fomentar encontros para trocas informais
etc. A utopia de Rirkrit (e de outros) é a sustentabilidade, e não
o consumo.
A pergunta feita a Lygia
Clark pode ser estendida a muitos artistas em atividade.
É uma indagação que permanece, como se nenhuma resposta, de nenhuma autoridade,
pudesse fazer frente às práticas
artísticas que fizeram a opção
de centrar sua intencionalidade no pensamento do homem
"comum".
LISETTE LAGNADO é professora do mestrado
em artes visuais da Faculdade Santa Marcelina
(SP) e foi curadora-geral da 27ª Bienal de SP.
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