São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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+ Arte

ATO SUSTENTÁVEL

REIVINDICAÇÕES DE 68 RESSURGEM EM ESCALA AMBIENTAL E CONTRA A IDÉIA DE CONSUMO


A onda geral é crer na reconquista de uma unidade da vida, mesmo que o espetáculo seja irreversível

LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se não há mais pesquisa formal em seu trabalho, qual é a sua intenção atual?". Nessa pergunta de Vera Pedrosa a Lygia Clark (1920-88), ouvimos os ecos do grito estudantil da França para o "Correio da Manhã", no Rio de Janeiro (30/5/1968). No lugar de produzir objetos destinados à função contemplativa, artistas do mundo inteiro se posicionam contra o império da representação.
Quis-se que o desejo fosse realidade. Combater a aceitação passiva do espectador diante do mundo da imagem -teses formuladas por Guy Debord (1931-1994)- foi a grande mola dos atos de contestação. Redundou em convites para caminhadas-derivas, relatos de deambulações urbanas e mapas psicogeográficos com o objetivo de fazer explorações, notadamente de bairros industriais desativados.
Essa fixação no comportamento permitiu a passagem de uma idealização da revolução para os paradigmas da cultura pop, pelo viés do "comportamento", ou, no léxico da arte engajada, da "atitude".
No ano seguinte, o curador Harald Szeemann (1933-2005) capta no espírito do tempo a necessidade de evidenciar processos artísticos, e organiza "When Attitudes Become Form" [Quando Atitudes Se Tornam Forma].
O mundo continuava opaco e os textos estéticos de Merleau-Ponty (1908-61) guiaram a percepção de um corpo "ao mesmo tempo vidente e visível", "visível e sensível por si mesmo". Na arte, foi traduzida em tintas de teor dramático (o neo-expressionismo dá nome a uma das tendências).

Corpo descoberto
Em paralelo, a sexualidade encontra a Aids e ensaia uma ideologia substitutiva. O corpo, continente a ser descoberto a cada geração, é acometido de um mal ligado ao desejo.
No Brasil, esse pesadelo do sistema imunológico tem a fatalidade de coincidir com o final da ditadura militar (1985). A liberdade de expressão assume imediatamente um sentido duplo na luta pela vida. Como ser um jovem inconformado depois de Leonilson (1957-83)? A ressaca da transmissibilidade leva à retração da mensagem.
Mas a tradução em inglês do livro "A Abjeção", de Julia Kristeva, desencadeia nos EUA um alento para questionar ainda o desejo. Diminuída a distância entre sujeito e corpo, a fusão era inevitável e seu arco conceitual vai da crise do objeto à ênfase nos fragmentos escatológicos (Whitney Museum, 1993). Mais tarde, saberemos que não sucumbir ao prosaísmo da biografia foi um ganho de maturidade.
Entretanto o Muro de Berlim e a União Soviética também iam sendo despedaçados, mas o verdadeiro debate político demorou a retomar fôlego, no mínimo até o homem aprender a conviver sem uma cura definitiva. O "pós-comunismo" se torna condição necessária para reescrever narrativas históricas que restringiram, durante a Guerra Fria, o direito à modernidade aos Estados Unidos e à Europa Ocidental.
Destruição, reconstrução e desconstrução: esse cenário envolvendo guerra civil e confrontos com os vizinhos é emblematizado na cidade de Beirute, cujos arquitetos, artistas e escritores se reúnem para garantir uma memória e uma representação. A crítica e curadora Catherine David deu voz internacional às práticas documentárias vinculadas à compilação de arquivos. Na era digital, essa discussão foi além do mero uso da internet e do terror iminente da tecla "delete" (apagar).

Karaokê
Hoje, vemos iniciativas na esteira dos acontecimentos do Maio de 68 sendo retomadas e desenvolvidas na escala ambiental das intervenções artísticas. O sentido dessa volta poderia denotar uma falta de originalidade, mas não: a lógica da urbanização e da globalização gerou a classe dos excluídos. As vertentes da crítica institucional (família, ensino, carreira profissional) são seu refluxo.
Porém, contrariamente aos vaticínios de Debord, a onda geral é acreditar na reconquista de uma unidade da vida, mesmo que o espetáculo seja irreversível. "Museu é o mundo." O "programa ambiental" de Hélio Oiticica (1937-80) não foi uma teoria negativa da sociedade. Por exemplo, o karaokê vale para um artista-propositor na busca da participação do não-artista.
Os projetos de Rirkrit Tiravanija têm uma filiação inconsciente: ocupar espaços não habituais para mostras, implantar uma comunidade ("The Land", iniciado em 1998), cozinhar para o público de vernissages, não fazer vernissage, fomentar encontros para trocas informais etc. A utopia de Rirkrit (e de outros) é a sustentabilidade, e não o consumo.
A pergunta feita a Lygia Clark pode ser estendida a muitos artistas em atividade. É uma indagação que permanece, como se nenhuma resposta, de nenhuma autoridade, pudesse fazer frente às práticas artísticas que fizeram a opção de centrar sua intencionalidade no pensamento do homem "comum".


LISETTE LAGNADO é professora do mestrado em artes visuais da Faculdade Santa Marcelina (SP) e foi curadora-geral da 27ª Bienal de SP.


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