São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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O professor como corretor

por Nicolau Sevcenko

Uma discreta cerimônia póstuma, celebrada no King's College da Universidade de Londres em fevereiro passado, se transformou numa reveladora aula de sociologia universitária. A reunião era em homenagem ao professor Noel Annan, morto recentemente e que nos anos 50 fora o primeiro reitor dedicado com exclusividade à direção daquela universidade. Lá estavam, presentes e arranjadas em camadas nitidamente separadas, três gerações acadêmicas. A primeira, nas fileiras frontais, era a dos próprios contemporâneos do professor Annan. Representavam o período em que a universidade era o feudo de um pequeno grupo de famílias de linhagens distintas, cujos membros e descendentes ocupavam todos os postos decisórios, fazendo da academia a extensão natural de seus privilégios de classe. A segunda, nos bancos intermediários, era composta pelos integrantes da rebelião dos anos 60, que confrontou o elitismo universitário, rompendo seus preconceitos e escancarando suas portas para grupos excluídos e idéias renegadas. Daí nasceram inspirações e alianças radicais, cujos frutos mais exóticos foram a insurreição punk, a música eletroacústica, o dub, o novo cinema inglês e a chamada escola londrina de artes plásticas.

Herdeiros do futuro
No fundo do salão, buliçosos e ostensivos, se concentrava a última camada, a dos representantes dos anos 90 e, portanto, aqueles que se sabiam os herdeiros do futuro. A história desse grupo talvez possa explicar um pouco da sua autoconfiança, reverberada no inflado das roupas. Naturalmente sua madrinha espiritual é Margaret Thatcher, aquela que em sua empáfia retórica decretou que "não há nem nunca houve essa coisa chamada sociedade; o que há e sempre haverá são indivíduos". O fato é que, na sua oportuna aliança com Ronald Reagan, ao longo dos anos 80, ambos efetuaram uma mudança drástica no discurso conservador, invertendo os termos do debate político. Até então as posições radicais monopolizavam a simbologia epifânica, apostando todas as cartas no princípio esperança, num mundo coeso por impulsos fraternais. Aos conservadores restava tachar essa atitude de ilusória, de lunática e de chamariz para a implantação da tirania totalitária. A operação ideológica construída pelo nexo Reagan-Thatcher mudou completamente a configuração do debate político. Sua maior proeza foi metamorfosear os termos de sua aliança num amálgama cultural de alcance místico. Fortemente apoiados em tradições puritanas exclusivistas e autocentradas da cultura anglo-saxônica, deslocaram seus conteúdos doutrinários da esfera religiosa para a política. O resultado foi o deslizamento do conceito de destino manifesto, tão latente em Cromwell quanto em Washington e Jefferson, de um fado inelutável dos povos anglo-saxões para o próprio sistema capitalista.


Nas universidades, o que prevalece é o modelo da administração eficiente, capaz de gerar seus próprios recursos estabelecendo nexos cada vez mais profundos com o mercado e a corrida tecnológica; a eficácia de desempenho é medida em termos de sucessos estatísticos, de capitais, produtividade e visibilidade, todos conversíveis em valores de marketing


O século americano
Diante da obsolescência e esfarelamento do mundo soviético, acentuado pelo apoio maciço aos rebeldes afegãos, da hegemonia incontestável da língua e cultura anglo-americana, das redes de informação e comunicação unificando o planeta e da cristalização de um estilo de vida centrado na publicidade, nos apelos hedonistas e na euforia do consumo, ninguém poderia negar a preponderância do modelo saxônico. A queda do Muro de Berlim só confirmou o que todos àquela altura já pressentiam. Foi quando se declarou o "fim da história" e surgiu a idéia de batizar este como o "século americano".
Mas havia muito mais em curso do que apenas o delírio de Reagan e Thatcher de encarnarem o Adão e a Eva de um novo mundo em versão "wasp". De fato, uma nova era estava surgindo. Tomando como base o ano de 1975, quando os circuitos integrados alcançaram o pico de 12 mil componentes, a revolução da microeletrônica assumiu uma aceleração explosiva. Segundo a lei de Moore, a tendência era que esse número duplicasse a cada 18 meses. Ou seja, atingido um limiar máximo de densidade para um circuito integrado, esse equipamento era então utilizado para produzir circuitos mais densos ainda, numa cadeia de transformações cumulativas alimentando umas às outras.
Segundo outra lei clássica da engenharia, cada decuplicação da capacidade de um sistema constitui uma mudança qualitativa de impacto revolucionário. O que significa que desde 75 passamos por algo como dez revoluções tecnológicas sucessivas no espaço de duas décadas e meia. Uma escala de mudança jamais vista na história da humanidade!
Foi esse contexto fortuito que proporcionou os meios para que Reagan-Thatcher consolidassem a agenda conservadora, retraindo a ação do Estado em favor das grandes corporações e do livre fluxo de capitais, abalando os sindicatos, disseminando desemprego, rebaixando a massa salarial e concentrando a renda. Foi a grande epidemia das privatizações, das reengenharias e das flexibilizações. Apoiada na dramática mudança tecnológica, essa onda foi tão poderosa que acabou forçando a mudança do discurso das oposições.
Surfando na onda surgiu o jovem Tony Blair, que derrotou os conservadores brandindo um programa resumido em três palavras: "Educação, educação, educação". Era uma proposta clara que tocava a todos. A nova realidade só oferece oportunidades para o trabalho qualificado, portanto o melhor meio de suscitar a promoção social deve ser necessariamente a educação. Ademais, na vertiginosa corrida tecnológica que sucedeu à Guerra Fria, só quem tiver autonomia tecnológica poderá garantir sua soberania. Logo, educação, ciência e tecnologia são as três chaves da nova era.
Mas o veneno da maçã proibida já se infiltrara nas veias dos novos líderes. A idéia não era mais garantir um bom emprego para todos conforme a tradição socialista, mas disseminar o espírito da concorrência agressiva por meio de uma nova agenda educacional, de modo que, num mercado cada vez mais concentrado, os mais aguerridos, os mais individualistas e os mais expedientes prevalecessem, em detrimento dos desfavorecidos em todos os quadrantes do planeta. E aqui se insere o conceito ampliado do destino manifesto, traduzido num novo dogma chamado eficiência.
Nas universidades, o que prevalece é o modelo da administração eficiente, capaz de gerar seus próprios recursos estabelecendo nexos cada vez mais profundos com o mercado e com a corrida tecnológica.
A eficácia de desempenho é medida em termos de sucessos estatísticos, de capitais, produtividade e visibilidade, todos conversíveis em valores de marketing para atrair novas parcerias, dotações e investimentos.

Migalhas e vagas
Nesse sentido convém que os vários institutos e departamentos concorram ferozmente entre si, pelo sucesso e pelas verbas, incrementando o desempenho coletivo. O que força as equipes a rivalizar entre si, os professores a competir uns com os outros e, naturalmente, os alunos a disputarem as bolsas, migalhas e vagas nas salas superlotadas. Convém ao conjunto do sistema que todos sejam mal-aquinhoados, porque só assim sentirão o devido acicate para multiplicar as verbas escassas.
Um dos sintomas mais reveladores desse novo quadro é a insistência em que a avaliação dos professores requeira de cada um alguma forma de envolvimento em atividades administrativas. Claro que isso possibilita cortar o número de funcionários ao mínimo. Mas, mais que isso, acumplicia todos nesse novo espírito de racionalidade gerencial. O professor ideal agora é um híbrido de cientista e corretor de valores. Grande parte do seu tempo deve ser dedicado a preencher relatórios, alimentar estatísticas, levantar verbas e promover visibilidade para si e seu departamento. O campus vai se reconfigurando num gigantesco pregão. O gerenciamento de meio acabou se tornando fim na universidade. A idéia é que todos se empenhem, no limite de suas forças, para que também compartilhemos do inexorável destino manifesto. Ainda que esse destino tenha sido forjado na outra extremidade do oceano Atlântico.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura do departamento de história da USP, membro do Centro de Estudos de Cultura Latino-americana do King's College da Universidade de Londres e um dos editores do "The Journal of Latin American Cultural Studies". Publicou, entre outros, "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia. das Letras).


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