São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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Vocação interrompida

por Ricardo Musse

Qual o futuro da profissão de pesquisador no Brasil? Como pensar a atual crise da universidade? Talvez o melhor a fazer seja distanciar-se um pouco das contingências do presente e reincorporar ao debate perspectivas abertas por um texto que completou recentemente 80 anos. Em "A Ciência como Vocação", originalmente uma conferência, Max Weber pressupõe como interlocutores jovens subjetivamente vocacionados, que pretendem se devotar à pesquisa por amor à ciência. O diálogo implícito compõe o texto como uma recorrente desmitificação dessa visão idealizada (e também da presunção juvenil e da pose irracionalista então em voga). Nesse movimento, mesclado com o patos nietzschiano e sua plataforma de "combate a todas as ilusões", é possível identificar o propósito construtivo dos pais fundadores da sociologia, preocupados em comprovar a eficácia da explicação sociológica nos vários campos da vida social, em especial a que dá conta de fenômenos considerados próprios da subjetividade. A novidade da compreensão sociológica weberiana assenta-se numa espécie de giro que transplanta a reflexão da mera detecção de objetividades sociais para uma determinação de sua gênese e significado. A vocação para a ciência decorre de um processo de "desencantamento do mundo", de uma racionalização que na sociedade moderna, caracterizada pelo politeísmo de valores, opõe religião, ciência, arte, religião e ética como potências ou "vocações" antagônicas. A força explicativa e a originalidade desse modelo, exposto de maneira didática e condensada em "A Ciência como Vocação", deixou na sombra as páginas iniciais desse texto em que Weber examina -de forma convencional, um pouco à maneira como o primeiro Durkheim pensa os fatos sociais, mas nem por isso com menor acuidade- as condições materiais que enquadram a vocação universitária.

Dilemas do estudioso
Contrapondo as ilusões subjetivas à objetividade da prática social, Weber destaca uma série de dilemas da ocupação científica universitária (que para ele não se restringe ao âmbito das ciências naturais), numa descrição espantosamente atual: a dificuldade de conciliar duas capacidades distintas, a de professor e a de pesquisador; a necessidade de conjugar a inspiração, mais afeita ao diletante, com o rigor disciplinado do especialista; o anseio de criar algo duradouro num terreno sujeito, por definição, às leis do progresso; a distinção pelo mérito numa atividade em que o ingresso e a ascensão profissional se encontram sujeitos às injustiças do acaso. À lista de Weber, a situação da universidade brasileira impõe acrescentar dois outros obstáculos ao exercício da vocação científica. Primeiro, a remuneração de um professor que também seja pesquisador, além de impossibilitar que ele se mantenha atualizado em sua área de conhecimento, não corresponde ao mínimo necessário para que sustente dignamente sua família. Ainda mais angustiante é o fato de que o jovem que dedica anos de vida à preparação exigida pela carreira universitária corre o risco de estar investindo numa profissão que, no Brasil, como tudo indica, tende a desaparecer. O paradoxo é que o desmonte da universidade brasileira ocorre no exato momento em que no núcleo central do sistema capitalista, a universidade, em crise desde os anos 60, recupera sua importância histórica e social. O último fator dinâmico de uma economia cada dia mais autonomizada na esfera financeira parece ser o aumento de produtividade gerado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, proporcionado direta ou indiretamente (por meio da atuação nos departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas de cientistas formados na universidade) pela pesquisa científica universitária. Como entender isso? Voltemos a "A Ciência como Vocação". Segundo Weber, o futuro da universidade (nosso presente) deriva de uma lógica burocrática que aponta para a substituição do padrão europeu, aristocratizante (seja pela dificuldade de ingresso na carreira de quem não dispõe de fortuna pessoal, seja pelo prestígio inerente à cátedra), pelo modelo americano de assalariamento, mais adequado à lógica capitalista. O abandono das origens medievais, do modelo de corporações de ofícios, aproxima os professores da condição proletária, em três de suas acepções mais fortes: como trabalhador destituído dos meios de produção, como funcionário em permanente conflito com os administradores e como categoria socialmente fragilizada. Acrescente-se a isso o fato de o empreendimento universitário envolver grandes montantes de dinheiro. Com isso, preenchem-se as condições para conceber a universidade como uma empresa capitalista.


O desmonte da universidade brasileira ocorre no exato momento em que, no núcleo central do sistema capitalista, a universidade, em crise desde os anos 60, recupera sua importância histórica e social


Destino conhecido
Max Weber nomeia literalmente a universidade como uma empresa capitalista estatal. O destino dessas empresas no modelo econômico vigente no Brasil é sobejamente conhecido: desmonte, privatização e desnacionalização.
Uma das lições de "A Ciência como Vocação" é que a ciência, apesar de todas as suas aplicações práticas, mostra-se incapaz de explicar seu significado ou mesmo justificar sua própria existência. A decisão acerca da necessidade ou não de produzir ciência no país (e manter universidades que combinam ensino e pesquisa) compete, portanto, à sociedade. O que cabe esclarecer são as consequências dessa opção.
Muito se informou sobre as implicações para a soberania política e a independência econômica de um país que parece querer abdicar de sua vocação para a ciência. Julgo que convém também ressaltar o impacto que terá essa decisão sobre uma sociabilidade moldada pela violência. Como disse certa feita Adorno:
"O patos da escola hoje, sua seriedade moral, está em que no âmbito do existente somente ela pode apontar para a desbarbarização do existente, na medida em que conscientiza disso. Com barbárie me refiro ao preconceito delirante, à opressão, ao genocídio e à tortura. Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-se à barbárie principalmente na escola".


Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e professor associado junto ao departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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