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Em "Errâncias" o poeta e crítico Décio Pignatari embaralha memória, ficção
e imagem para evocar figuras como Oswald de Andrade, Borges e Volpi
Almanaque de fragmentos
José Geraldo Couto
da Equipe de Articulistas
Seria impossível definir o livro "Errâncias", do poeta, romancista, tradutor e pensador da comunicação Décio
Pignatari. A própria definição sugerida
pelo autor -"colagem autobiográfica de
pedaços de biografias alheias"- é insuficiente e imprecisa, mas tem o mérito de
assinalar uma marca central desse volume de textos e fotos: ao falar dos outros,
Pignatari está falando essencialmente de
si próprio, não num sentido memorialístico restrito (não se trata de um "Amarcord" erudito), mas no de revelar, por interpostas personagens, a visão do autor
sobre um sem-número de assuntos (para não usar a expressão vaga e pomposa
"sobre a vida e a arte").
Os seres e lugares evocados -do pintor Volpi ao pugilista Paulo de Jesus, de
Peirce a João Cabral, de Osasco a Delfos,
de Jorge Luis Borges a Rogério Duprat-
funcionam como catalisadores de lembranças e reflexões. Em alguns casos,
embora nomeiem capítulos do livro, são
pouco mais que mero pretexto. Em "Oswald", por exemplo, o escritor paulista
serve de trampolim (ou estopim) a uma
vertiginosa panorâmica sobre a literatura brasileira, pensada do ponto de vista
das conquistas de linguagem. A "Rua da
Estação", evocada em outro capítulo, desencadeia uma fina dissertação sobre
tempo, arquitetura e paisagem.
Método diabólico
Não que as memórias da experiência vivida não tenham um lugar importante no livro: espalham-se por suas páginas cacos da infância em Osasco, da primeira viagem
iniciática à Europa, da aventura da poesia concreta, dos projetos e entreveros
políticos, das amizades domésticas e internacionais etc.
Mas são quase, dir-se-ia, cenas criadas
a posteriori, num terreno entre a memória pessoal e a ficção, para ilustrar (ou antes "concretizar") idéias desenvolvidas pelo autor. Se, segundo o próprio Pignatari (a partir de Peirce), é
no cérebro humano que
o universo se expande sem cessar, o mesmo se pode dizer do passado vivido e relembrado.
Por sua mistura de gêneros e linguagens (ensaio, memória, poesia, ficção, fotografia, artes gráficas), esse almanaque
fragmentário faz lembrar, mais até do
que os livros de variedades de Valéry e
Benjamin, os volumes-miscelânea de
Cortázar, como "Último Round" e "A
Volta ao Dia em 80 Mundos".
Embora o mecanismo básico do livro
seja o da digressão que leva a outra digressão, num método diabólico de desdobrar um assunto ao sair dele, há diferenças notáveis de natureza e estrutura
entre os textos, bem como de sua relação
com as fotos.
No caso do capítulo "Curitiba", por
exemplo, a foto de um cartaz publicitário violado de
modo consciente e significante por um artista/ativista urbano sofre uma leitura
político-semiótica original,
numa virtual arqueologia
da cidade contemporânea.
As fotos de Tarsila, tiradas clandestinamente durante uma visita à camada pintora, servem de suporte a
um microensaio sobre a enviesada inserção do casal Oswald/ Tarsila no panorama da moderna cultura brasileira.
Lirismo e densidade
Já a foto posada de Paulo de Jesus, clichê (nos dois
sentidos) do boxeador arruinado cedo e
entregue à bebida, suscita um dos relatos
mais enxutos e pungentes do livro, em
que ela mesma, a fotografia, entra de forma decisiva: "À despedida, dedicou-me
a foto, enganou-se de copo, bebeu um
pouco do meu vinho". A prosa límpida e
lírica do capítulo sobre o pugilista, isenta
de referências eruditas, contrasta com a
alta densidade de alusões que caracteriza, por exemplo, os textos sobre Jakobson e Peirce, em que o ímpeto intertextual de Pignatari chega a prejudicar a
fluência da leitura, criando verdadeiros
nós de congestionamento sígnico. Vale a
pena, entretanto, ler de novo, tentando
deslindar com calma os nexos que parecem ter surgido aos borbotões, ao sabor
do livre-pensar do autor.
Outra coisa que pode assustar o leitor
ainda não familiarizado com a estratégia ensaística de Pignatari -na qual o
pensamento se produz em movimento
e como processo, não como sistema
acabado e definitivo- é a impressão
de um discurso excessivamente sentencioso. Na verdade, quem já teve a oportunidade de ver e ouvir Décio Pignatari
pessoalmente sabe que há muito de
tentativo e experimental nas frases que
lança, como provocação, a seus interlocutores. Para usar uma analogia com o
futebol -atividade curiosamente ausente do livro, apesar de tão cara ao autor-, Pignatari faz muitos gols porque
arrisca o tempo todo.
Mesmo suas eventuais bolas fora
-quem sou eu para julgar quais entraram, quais bateram na trave e quais se
perderam na linha de fundo?- são em
geral fecundas, incitando a novos modos de pensar antigas questões.
Rui Barbosa sertanejo
Às vezes
Pignatari parece sacrificar o fundo à
forma, o rigor da análise à expressão
poética, o "vero" ao "ben trovato". Um
exemplo possível: no capítulo sobre
Oswald, lê-se que "(...) Rosa passou de
um Rui Barbosa sertanejo a um James
Joyce brasílico". A idéia de que Guimarães Rosa tenha começado como (ou
esboçado tendência a) "um Rui Barbosa sertanejo" parece não encontrar respaldo nos fatos, mas a frase continua
sendo deliciosa.
As fórmulas brilhantes, fortes ou simplesmente "de efeito" proliferam em
todo o livro. O gosto do autor por elas é
tamanho que ele se permite até reciclar
algumas, como a que abre o texto sobre
Volpi -"Um Mondrian trecentesco"-, que o próprio Pignatari se
apressa em dizer que tirou de um texto
seu de quatro décadas atrás. Tal procedimento, de resto, intensifica o prazer
do texto, deixando ao leitor a tarefa de
aceitar o que é aceitável e discutir o que
é discutível.
Em meio à miríade de assuntos abordados no livro, há alguns que se repetem, perpassando, direta ou indiretamente, grande parte dos textos.
É o caso da semiótica de Peirce, um
dos vetores principais do pensamento
de Pignatari, que a contrapõe à semiologia européia ("druidismo galo-búlgaro"). Da filosofia de Peirce, Pignatari
aproveita sobretudo a idéia de abdução
como "um novo procedimento lógico",
"a lógica genésica das teorias". De sua
semiótica, recupera a riqueza da sugestão latente do ícone, ali onde as palavras não chegam ou falham.
Outro subtema recorrente é o dos artistas que o autor chama de "pós-primitivos", situados "no meio-fio do domínio do código": Volpi, Ronaldo Azeredo, Valêncio Xavier.
"São amadores -não diletantes comuns, porém. Unem marginalidade e
experimentação; não desdenham a cultura, mas são avessos a discussões teóricas. Mais curioso e importante: a diacronia artístico-cultural -histórias da
arte, música, literatura, fotografia, cinema- é-lhes de uma ausência dolorosa,
que linda com pecado oculto/proibido,
falta e lacuna misteriosamente impreenchíveis. Não lhes agrada o passado, não têm força de futuro, são metonímicos do tempo, que é sempre presente, um presente estendido em que
não distinguem, classificável e axiologicamente, fases, valores, evoluções."
É assim que, dos cumes vertiginosos
de seu "alto repertório", Décio Pignatari define e saúda essa estranha raça de
artistas, tão distinta da dos criadores-críticos-pensadores, à qual ele próprio
se filia.
trecho
"Gordalhufo (botões gemendo nas casas), filho único e rico de mamãe, católico
de roxas decadências, foi à Europa aos vinte anos, não percebeu nada, voltou para
os não-braços-e-beijos de Dona Inês já morta e enterrada, ficou mais roxo e balofo
e acadêmico ainda, quando fatores do primeiro pós-guerra -a elite do café, e o
seu dinheiro, às vésperas do centenário da independência, tentando retomar a industrialização do país, após a derrocada de Mauá- obrigam-no a sacudir o sono
e arregalar os olhos ante a exposição de Anita Malfatti e a "Paulicéia" de Mário de
Andrade." Aristocraticamente anacrônico e debochado, acaba por despertar na
mesma cama de Tarsila, e com ela. Casal não houve (tudo aconteceu em sete
anos) como esse, no Brasil, ou muitos, fora."
Trecho de "Oswald", de "Errâncias".
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