São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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Em "Errâncias" o poeta e crítico Décio Pignatari embaralha memória, ficção e imagem para evocar figuras como Oswald de Andrade, Borges e Volpi
Almanaque de fragmentos

José Geraldo Couto
da Equipe de Articulistas

Seria impossível definir o livro "Errâncias", do poeta, romancista, tradutor e pensador da comunicação Décio Pignatari. A própria definição sugerida pelo autor -"colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias"- é insuficiente e imprecisa, mas tem o mérito de assinalar uma marca central desse volume de textos e fotos: ao falar dos outros, Pignatari está falando essencialmente de si próprio, não num sentido memorialístico restrito (não se trata de um "Amarcord" erudito), mas no de revelar, por interpostas personagens, a visão do autor sobre um sem-número de assuntos (para não usar a expressão vaga e pomposa "sobre a vida e a arte"). Os seres e lugares evocados -do pintor Volpi ao pugilista Paulo de Jesus, de Peirce a João Cabral, de Osasco a Delfos, de Jorge Luis Borges a Rogério Duprat- funcionam como catalisadores de lembranças e reflexões. Em alguns casos, embora nomeiem capítulos do livro, são pouco mais que mero pretexto. Em "Oswald", por exemplo, o escritor paulista serve de trampolim (ou estopim) a uma vertiginosa panorâmica sobre a literatura brasileira, pensada do ponto de vista das conquistas de linguagem. A "Rua da Estação", evocada em outro capítulo, desencadeia uma fina dissertação sobre tempo, arquitetura e paisagem.

Método diabólico
Não que as memórias da experiência vivida não tenham um lugar importante no livro: espalham-se por suas páginas cacos da infância em Osasco, da primeira viagem iniciática à Europa, da aventura da poesia concreta, dos projetos e entreveros políticos, das amizades domésticas e internacionais etc. Mas são quase, dir-se-ia, cenas criadas a posteriori, num terreno entre a memória pessoal e a ficção, para ilustrar (ou antes "concretizar") idéias desenvolvidas pelo autor. Se, segundo o próprio Pignatari (a partir de Peirce), é no cérebro humano que o universo se expande sem cessar, o mesmo se pode dizer do passado vivido e relembrado. Por sua mistura de gêneros e linguagens (ensaio, memória, poesia, ficção, fotografia, artes gráficas), esse almanaque fragmentário faz lembrar, mais até do que os livros de variedades de Valéry e Benjamin, os volumes-miscelânea de Cortázar, como "Último Round" e "A Volta ao Dia em 80 Mundos". Embora o mecanismo básico do livro seja o da digressão que leva a outra digressão, num método diabólico de desdobrar um assunto ao sair dele, há diferenças notáveis de natureza e estrutura entre os textos, bem como de sua relação com as fotos. No caso do capítulo "Curitiba", por exemplo, a foto de um cartaz publicitário violado de modo consciente e significante por um artista/ativista urbano sofre uma leitura político-semiótica original, numa virtual arqueologia da cidade contemporânea. As fotos de Tarsila, tiradas clandestinamente durante uma visita à camada pintora, servem de suporte a um microensaio sobre a enviesada inserção do casal Oswald/ Tarsila no panorama da moderna cultura brasileira.

Lirismo e densidade
Já a foto posada de Paulo de Jesus, clichê (nos dois sentidos) do boxeador arruinado cedo e entregue à bebida, suscita um dos relatos mais enxutos e pungentes do livro, em que ela mesma, a fotografia, entra de forma decisiva: "À despedida, dedicou-me a foto, enganou-se de copo, bebeu um pouco do meu vinho". A prosa límpida e lírica do capítulo sobre o pugilista, isenta de referências eruditas, contrasta com a alta densidade de alusões que caracteriza, por exemplo, os textos sobre Jakobson e Peirce, em que o ímpeto intertextual de Pignatari chega a prejudicar a fluência da leitura, criando verdadeiros nós de congestionamento sígnico. Vale a pena, entretanto, ler de novo, tentando deslindar com calma os nexos que parecem ter surgido aos borbotões, ao sabor do livre-pensar do autor.
Outra coisa que pode assustar o leitor ainda não familiarizado com a estratégia ensaística de Pignatari -na qual o pensamento se produz em movimento e como processo, não como sistema acabado e definitivo- é a impressão de um discurso excessivamente sentencioso. Na verdade, quem já teve a oportunidade de ver e ouvir Décio Pignatari pessoalmente sabe que há muito de tentativo e experimental nas frases que lança, como provocação, a seus interlocutores. Para usar uma analogia com o futebol -atividade curiosamente ausente do livro, apesar de tão cara ao autor-, Pignatari faz muitos gols porque arrisca o tempo todo. Mesmo suas eventuais bolas fora -quem sou eu para julgar quais entraram, quais bateram na trave e quais se perderam na linha de fundo?- são em geral fecundas, incitando a novos modos de pensar antigas questões.

Rui Barbosa sertanejo
Às vezes Pignatari parece sacrificar o fundo à forma, o rigor da análise à expressão poética, o "vero" ao "ben trovato". Um exemplo possível: no capítulo sobre Oswald, lê-se que "(...) Rosa passou de um Rui Barbosa sertanejo a um James Joyce brasílico". A idéia de que Guimarães Rosa tenha começado como (ou esboçado tendência a) "um Rui Barbosa sertanejo" parece não encontrar respaldo nos fatos, mas a frase continua sendo deliciosa.
As fórmulas brilhantes, fortes ou simplesmente "de efeito" proliferam em todo o livro. O gosto do autor por elas é tamanho que ele se permite até reciclar algumas, como a que abre o texto sobre Volpi -"Um Mondrian trecentesco"-, que o próprio Pignatari se apressa em dizer que tirou de um texto seu de quatro décadas atrás. Tal procedimento, de resto, intensifica o prazer do texto, deixando ao leitor a tarefa de aceitar o que é aceitável e discutir o que é discutível.
Em meio à miríade de assuntos abordados no livro, há alguns que se repetem, perpassando, direta ou indiretamente, grande parte dos textos.
É o caso da semiótica de Peirce, um dos vetores principais do pensamento de Pignatari, que a contrapõe à semiologia européia ("druidismo galo-búlgaro"). Da filosofia de Peirce, Pignatari aproveita sobretudo a idéia de abdução como "um novo procedimento lógico", "a lógica genésica das teorias". De sua semiótica, recupera a riqueza da sugestão latente do ícone, ali onde as palavras não chegam ou falham.
Outro subtema recorrente é o dos artistas que o autor chama de "pós-primitivos", situados "no meio-fio do domínio do código": Volpi, Ronaldo Azeredo, Valêncio Xavier.
"São amadores -não diletantes comuns, porém. Unem marginalidade e experimentação; não desdenham a cultura, mas são avessos a discussões teóricas. Mais curioso e importante: a diacronia artístico-cultural -histórias da arte, música, literatura, fotografia, cinema- é-lhes de uma ausência dolorosa, que linda com pecado oculto/proibido, falta e lacuna misteriosamente impreenchíveis. Não lhes agrada o passado, não têm força de futuro, são metonímicos do tempo, que é sempre presente, um presente estendido em que não distinguem, classificável e axiologicamente, fases, valores, evoluções."
É assim que, dos cumes vertiginosos de seu "alto repertório", Décio Pignatari define e saúda essa estranha raça de artistas, tão distinta da dos criadores-críticos-pensadores, à qual ele próprio se filia.

trecho

"Gordalhufo (botões gemendo nas casas), filho único e rico de mamãe, católico de roxas decadências, foi à Europa aos vinte anos, não percebeu nada, voltou para os não-braços-e-beijos de Dona Inês já morta e enterrada, ficou mais roxo e balofo e acadêmico ainda, quando fatores do primeiro pós-guerra -a elite do café, e o seu dinheiro, às vésperas do centenário da independência, tentando retomar a industrialização do país, após a derrocada de Mauá- obrigam-no a sacudir o sono e arregalar os olhos ante a exposição de Anita Malfatti e a "Paulicéia" de Mário de Andrade." Aristocraticamente anacrônico e debochado, acaba por despertar na mesma cama de Tarsila, e com ela. Casal não houve (tudo aconteceu em sete anos) como esse, no Brasil, ou muitos, fora."
Trecho de "Oswald", de "Errâncias".


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