São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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Ponto de fuga

Pietro Maria Bardi

Jorge Coli
especial para a Folha

Francesco Tentori escreveu um estudo sobre Bardi, publicado por Mazzotta, na Itália. Ele sai agora na ótima tradução brasileira de Eugênia Gorini Esmeraldo. Bardi foi um homem de ação, de intervenção, de debate. Dirigindo revistas e galerias, batalhou pela arquitetura racionalista na Itália, sob Mussolini, antes que o grupo de arquitetos mais conservadores prevalecesse. Discutiu, sem cessar, o sentido da modernidade em todas as artes. Seus artigos virulentos, suas colagens ácidas e irônicas, muitas vezes de curioso tom surrealista, são largamente transcritos e reproduzidos no livro. Por eles, esclarecem-se não apenas os vínculos de Bardi com o fascismo, mas ilumina-se muito a história complexa dos movimentos modernos na Itália totalitária. Emerge também o momento efervescente de criação do Masp (Museu de Arte de São Paulo).
Não se trata, portanto, de uma biografia jornalística e pitoresca. É antes uma análise estrita e acerada, que expõe, por minuciosa pesquisa, os efeitos produzidos por Bardi nas culturas italiana e brasileira do nosso século. Ficam de fora, ou quase, as questões voltadas para o colecionismo, para a atuação do marchand e para a própria formação de Bardi, um autodidata que terminou sendo chamado de "professor". Seria demasiado tratar de todas essas facetas. Tentori concentrou-se num aspecto essencial. Seu livro -cuja edição brasileira foi feita pelo Instituto Bardi e pela Imprensa Oficial do Estado- fixa um parâmetro muito alto para estudos futuros que tentem aquelas direções.

Eterno retorno - "Se em São Paulo o anseio da farolagem através da arte, meio fácil enxergado pelos agitados à procura de um fácil trampolim para penetrar no "society", não tivesse reunido tanto dinheiro (público) nas maquinações da dita farolagem, e o tivessem subordinado a uma única direção, a situação seria diferente (...)." Havia em Bardi um sentido elevado da idéia de cultura. Frases como essa, que escreveu para defender o princípio de museus e acervos significativos, mostram desprezo e ódio pelo emprego das artes e das instituições como alavancas de vaidade pessoal e social.
Em parceria com Chateaubriand, ele pôde legar ao Brasil uma coleção excepcional de obras, constituída em tempo brevíssimo. A dupla soube manipular ricaços, ordenhá-los, extraindo dinheiro para esse formidável projeto. Chateaubriand e Bardi morreram, mas os ricaços se sucedem. Hoje, o Masp é um edifício festivo, faroleiro, onde o acervo, enfiado nas reservas, fora do olho do público, parece antes estorvo do que medula essencial.

Forza indomita - "Il Guarany", de Carlos Gomes, foi apresentado no teatro Alfa, em São Paulo. Os cenários bonitos, inteligentes, sucumbiam, porém, diante dos costumes horrendos, da mise-en-scène a um tempo pretensiosa e simplória. A batuta de Karabtchevsky esteve bem frágil diante das imprecisões da orquestra. Os cantores faziam o que podiam -e o que podiam não era muito. Tudo isso se revelou, no entanto, como uma prova dos nove. "Il Guarany" é uma obra inspirada de início ao fim, sem altos nem baixos, num contínuo surpreender. Flui como uma rapsódia, passando dos devaneios mais poéticos -a maravilhosa "ballata", que renova as baladas postas em moda pela ópera francesa- à solenidade das invocações místicas, ao heroísmo exaltado e, às vezes, a uma sensualidade turva. A música se impôs, triunfando sobre a mediocridade da récita.

Elipse - O balé de "Il Guarany" inova sobre o modelo de Meyerbeer e anuncia claramente "Aida". Além disso, pitoresco, repleto de ritmos deliciosos, é ponto central da cerimônia antropofágica. Na produção que contou com Plácido Domingo (Bonn e Washington), gravada em CD, alguém teve a péssima idéia de cortá-lo. Esse mau exemplo fez caminho e, infelizmente, foi seguido nas apresentações do teatro Alfa.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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