São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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O apocalipse da memória

Fernando Báez fala sobre sua "História Universal da Destruição dos Livros", que está saindo no Brasil

FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

História Universal da Destruição dos Livros", do pesquisador venezuelano Fernando Báez, é um extensivo inventário dos impedimentos, proibições, incêndios e catástrofes naturais de que os livros foram objeto desde o surgimento dos primeiros escritos, há mais de 5.000 anos, na Suméria. Báez discorre sobre a censura no Egito Antigo, os "biblioclastas" da Grécia, os censores de Roma, as condenações do Santo Ofício e conduz a exposição até as queimas de livros durante o Holocausto e a preservação das obras na era do e-book e das bibliotecas virtuais. "Não são os ignorantes que destroem livros. São quase sempre intelectuais", diz o autor. Há exemplos eloqüentes em sua pesquisa, como a queima de um exemplar do "Dom Quixote" encenada diante de 600 alunos por Vladimir Nabokov ou ainda a sugestão do filósofo David Hume de que se suprimissem todos os livros sobre metafísica. Assessor da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Báez esteve no Iraque para avaliar as perdas no país depois da invasão americana. Mais de 10 milhões de documentos e 1 milhão de livros foram destruídos desde 2003, entre os quais tratados de Avicena e Averróis e manuscritos de Omar Khayam. São relativos a essa experiência os trechos mais expressivos de seu estudo. O levantamento desce a pormenores exaustivos, como os tipos de ácidos que corroem o papel ou os efeitos deletérios causados pela traça cinza-prateada sobre as lombadas dos livros. Mas é pesquisa criteriosa, apoiada em documentação primária e a primeira a reunir material tão farto sobre o tema. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Báez dá mais detalhes sobre o trabalho.

 

Folha - O que significa dizer que os livros não são destruídos como objetos físicos, mas como "vínculos de memória"?
Fernando Báez -
O livro não é apenas um suporte. Na Antigüidade, os livros foram tabletas de argila, cascos de tartaruga, tábuas de madeira, papiros, pergaminhos etc. Hoje um livro pode ser um CD ou uma informação virtual. A destruição ocorre contra o que contém o livro, ou seja, contra a memória que armazena e o que essa memória representa.

Folha - Quanto mais culto o meio, diz o sr., maior o ímpeto para a destruição de livros. O que, em sua opinião, explica isso? Báez - Uma das grandes surpresas da minha pesquisa foi a descoberta de que não são os ignorantes os que destroem livros. São quase sempre intelectuais. Isso porque são os que melhor conhecem os perigos do livro. Shi Huan Di, o imperador chinês que ordenou a queima de livros em 213 a.C., o fez porque um filósofo lhe propôs queimar os volumes que punham em risco suas reformas. Isso ainda acontece. Em Sarajevo, vimos como, no final do século 20, se destruíam livros a partir de instruções de intelectuais que apoiavam os sérvios.

Folha - Na Alemanha, os nazistas pareciam criteriosos na escolha de quais obras deveriam queimar, entre as quais havia textos de Freud, Brecht e Thomas Mann. Como conciliar erudição e gesto obscurantista?
Báez -
Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, era filólogo. Os homens que queimaram livros em 10 de maio de 1933 e durante os anos seguintes, até 1945, na Alemanha, eram acadêmicos e estudantes notáveis. Isso confirma o que digo no livro: os nazistas tinham suas próprias obras, que consideravam irrefutáveis, e acreditavam que tudo o que não ia ao encontro de suas teses era falso e indigno.

Folha - Seu livro se propõe a fazer uma "crônica" da destruição dos livros. Mas, depois de 12 anos às voltas com o assunto, o sr. considera possível formulá-la?
Báez -
Sim. Em quase todos os casos, o fenômeno responde a dois mitos: o da Fênix, segundo o qual as sociedades e grupos renascem das cinzas; e o de Erostrato, segundo o qual quem destrói pode perdurar no tempo, já que pode impor sua tese. Outro fator é o uso do fogo na destruição: é um ritual purificatório. E não custa lembrar que, na história da destruição de livros, 60% das obras foram perdidas pela ação do homem, e, o resto, devido a acidentes e catástrofes naturais.

Folha - O sr. cita Descartes, Hume, Nabokov e até mesmo Platão como exemplos de pensadores que destruíram livros. A atitude deles pode, a seu ver, ser posta no mesmo plano dos demais destruidores de livros?
Báez -
A atitude dos grandes intelectuais que queimam livros ou pedem a queima de livros implica intolerância, que é um dos signos dos inquisidores. O que separa Platão de Torquemada é sutil, mas óbvio: a capacidade de execução. Se a utopia de Platão tivesse funcionado, nenhuma biblioteca teria podido incluir a maior parte dos poetas, e eles possivelmente teriam sido relegados ao exílio e à morte. Os intelectuais não podem ser julgados diferentemente do resto dos homens. Sua obra os compromete ainda mais com a justiça.

Folha - Borges, no conto "O Congresso", afirmava que a cada tantos séculos é preciso destruir a biblioteca de Alexandria. Como o sr. vê essa afirmação?
Báez -
Borges se referia ao mito da Fênix: sugeria que a destruição dos livros serviria para preparar uma nova humanidade. Foi o que também propôs Nathaniel Hawthorne em "O Holocausto do Mundo". Em "Farenheit 451", Ray Bradbury descreve uma geração que guarda na memória os livros queimados para salvar a humanidade ao voltar a escrevê-los.

Folha - O sr. se mostra cético em relação à web e à digitalização como forma de armazenamento dos livros. Por quê? Não se trata de um avanço em termos de preservação?
Báez -
Acabo de conversar com os responsáveis pela digitalização de livros na França e na Espanha e posso assegurar que a internet não evita sua destruição. Agora, as formas dessa destruição são mais silenciosas e engenhosas, mas se mantêm e afetam os servidores que abrigam as obras digitalizadas. A atitude não desaparece porque é sustentada pela intolerância, que se provou persistente.

Folha - Como o sr. vê a atitude dos fundamentalistas americanos que queimaram exemplares de "Harry Potter"? É possível ver o gesto como liberdade de expressão, ou, como disse V.S. Naipaul a respeito da fatwa sobre Salman Rushdie, uma forma extrema de crítica literária?
Báez -
A queima de livros de Harry Potter é surpreendente: os livros foram queimados por seitas religiosas que reivindicam nos EUA a liberdade de culto. Há nisso algo paradoxal.

Folha - Em uma época de encolhimento da cultura erudita e da expressão escrita, a destruição de livros pode significar um atestado de sua importância?
Báez -
A destruição de um livro é garantia de que está em jogo um tema que ameaça os repressores ou censores. E devo dizer que não vejo um descrédito da cultura escrita: nunca se escreveu tanto como hoje. Creio que os americanos disseram os dois maiores disparates do mundo. MacLuhan predisse o fim do livro, e Fukuyama predisse o fim da história: suas crenças hoje em dia são seus epitáfios. Não sei como alguém pode levá-los a sério.

Folha - Há livros que merecem ser destruídos?
Báez -
Nenhum livro merece ser destruído. Nem "Minha Luta", de Hitler, nem as cartas de Stálin. Mesmo se existissem as memórias de Calígula ou de Bush, seria preciso permitir que fossem lidas: que outra maneira haveria de mostrar que estavam equivocados?


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