São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Jogos do discurso

"Sem Nome", do português Helder Macedo, investiga a realidade e o ato criativo

ESPECIAL PARA A FOLHA

Sem Nome", o mais recente romance do português Helder Macedo, mostra as suas armas logo de cara, com o título, que desdiz dizendo, e com as primeiras linhas de seu capítulo inicial, nas quais lemos que "muitas vezes não estaria a mentir mas simplesmente a ajustar a verdade à verossimilhança" e que "desde há muito se havia habituado a considerar as aparências como o único modo inteligível de viver". Ou seja, nós estamos diante de um livro que lida com realidades ajustadas e que propõe ao leitor uma série de jogos ficcionais. Diga-se desde já que a obra cumpre sem decepcionar o que prometera, a começar por seus dois primeiros capítulos, primorosos na apresentação de fatos que o restante do relato tratará de desmontar. José Viana, um advogado português exilado em Londres, recebe um chamado para ajudar uma passageira de seu país que desembarcara na cidade com documentos que informavam ter ela uma idade obviamente errada (era jovem, mas, de acordo com os papéis, seria uma velha) e que, por isso, estava detida. O problema é que essa moça supostamente se chamava Marta Bernardo, nome da antiga namorada de Viana, que fora abandonada por ele quando tivera que sair às pressas de Lisboa décadas antes. Mais que isso: ela também era idêntica à lembrança que ele possuía da moça e morava no endereço que ambos chegaram a dividir.

Graça e coerência
É desnecessário dizer que nada disso, com o desenrolar da trama, se sustentará e que, como se estivessem extraindo pouco a pouco camadas do visível, os diferentes narradores que assumem o comando do enredo vão complicando e perturbando o conhecimento de cada personagem que é facultado ao leitor bem como o conhecimento deles mesmos, já que aqui a escrita assume um caráter de investigação do mundo, e o conhecimento do próprio ato criativo, das dificuldades e perigos da invenção ficcional. Orquestradas com graça e muita coerência, essas vozes vão aos poucos compondo uma daquelas obras que surgem de vez em quando a nos lembrar (algo evidente, mas um tanto desprezado) de que, dentre as várias características possíveis de um texto literário, talvez seja a inteligência uma das mais importantes. Como há em "Sem Nome" uma referência (no título de um dos capítulos) às "capelas imperfeitas", vale a pena registrar aqui um senão: o "discurso" político panfletário proferido pelo protagonista em uma carta no terço final do livro destoa de sua caracterização e da própria sutileza irônica de tudo que o cerca. (ADRIANO SCHWARTZ)


SEM NOME
Autor: Helder Macedo
Editora: Record
Quanto: R$ 32,90 (240 págs.)



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