São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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"A Cadeia Secreta", de Franklin de Mattos, discute o romance filosófico na obra do iluminista Diderot

Os truques do ilusionismo

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Não seria o fim do mundo pedir a um estudante universitário que resumisse em alguns parágrafos as idéias, as preocupações, a personalidade intelectual de Rousseau ou de Voltaire. Mas Diderot... O terceiro grande nome do Iluminismo francês, responsável pela edição da "Enciclopédia", parece esquivar-se a um perfil mais definido. Ultimamente, contam-se iniciativas editoriais importantes para divulgar melhor sua obra no Brasil. A editora Perspectiva lançou dois volumes de suas obras, com organização, tradução e notas de Jacó Guinsburg; pela Discurso Editorial, saiu no ano passado "O Ateu Virtuoso - Materialismo e Moral em Diderot", de Paulo Jonas de Lima Piva. E Franklin de Mattos, que em 2001 lançara "O Filósofo e o Comediante -Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração" (ed. UFMG), agora assina "A Cadeia Secreta - Diderot e o Romance Filosófico", um volume mais curto, embora integralmente dedicado ao autor de "O Sobrinho de Rameau". É um comentário de Goethe sobre essa obra de Diderot, aliás, que explica o título da coletânea de ensaios de Franklin de Mattos. Para Goethe, "O Sobrinho de Rameau" seria uma rigorosa cadeia de argumentações, oculta sob guirlandas de flores. A mistura de improvisação imaginativa e argumentação filosófica cerrada pode ser identificada, diz Franklin de Mattos, também em outros textos de Diderot, como "Jacques, o Fatalista" -romance que tem um de seus episódios analisado em detalhe no último ensaio de "A Cadeia Secreta".

A parte e o todo
Será que a comparação feita por Goethe poderia valer para a obra de Diderot em seu conjunto? Esse é o desafio de muitos de seus comentadores, que procuram reconstituir num todo filosófico coerente os diversos escritos desse autor. Nascido em 1713, Diderot foi autor de peças teatrais hoje pouco encenadas ("O Pai de Família", 1758), crítico de pintura ("Salão de 1759"), romancista ("A Religiosa", 1760) e filósofo ("Carta sobre os Cegos", que lhe valeu a prisão em 1749). Muitas de suas obras, como "O Paradoxo sobre o Comediante", o "Suplemento à Viagem de Bougainville" e o "Sonho de D'Alembert" só seriam publicadas depois de sua morte, ocorrida em 1784. Num dos primeiros ensaios de "A Cadeia Secreta", o duplo tema do "materialismo" e da "conversação" é utilizado por Franklin de Mattos para apresentar de modo acessível e sucinto a obra de Diderot. Da matéria aparentemente inerte à energia e desta à natureza humana e à linguagem artística, não haveria nenhuma ruptura para Diderot; tal concepção orientaria não apenas a sua filosofia da natureza, mas também suas idéias estéticas. É assim, diz Franklin de Mattos, que o teatro será "restituído à sua materialidade" em Diderot. "Contra aqueles que o pensam como "poesia dramática", Diderot enfatiza -segundo Jean Starobinski- as dimensões "pré" e "extraverbal" do teatro, entendendo-o como uma arte das inflexões e da pantomima, única linguagem capaz de resgatar a energia da natureza." O jogo da mistificação e do ilusionismo -presente nas reflexões de Diderot sobre a pintura e o teatro- seria também posto em prática na sua obra de ficção; aparentar o desalinho da conversa, convencer o leitor, por meio de um detalhe casual, da veracidade da história que se conta seriam fundamentais na arte do romancista. Franklin de Mattos analisa com minúcia de que modo, no posfácio que Diderot anexou ao romance "A Religiosa", estariam em ação diversos artifícios de mascaramento e truques de perspectiva. As explicações de detalhe dedicam-se a buscar coerência em textos que parecem, muitas vezes, provocadoramente arredios à leitura mais detida e sistemática. Para o paciente filósofo universitário de hoje, trata-se sem dúvida de testar a hipótese da "máxima coerência possível" na obra de um "philosophe" atravessado pelos tumultos, pelas descobertas e pelos prazeres de seu século. A questão da verossimilhança, crucial na estética setecentista, não deixa de impor seus critérios sobre a própria atividade do intérprete contemporâneo.

Gênero frouxo
Nesse sentido, é interessante que "A Cadeia Secreta" enfrente, já no primeiro ensaio, a questão da "respeitabilidade" do romance no século 18. Em oposição ao teatro -em que o problema da verossimilhança estava evidentemente "em cena", diante de um público atilado e crítico-, recaíam sobre o romance as acusações de sentimentalismo, barateamento estético, incoerência e frouxidão intelectual. Rousseau, Voltaire, Montesquieu e Diderot respondem, cada qual a seu modo, ao gênero literário que surgia.
Na capa desta bela e um tanto luxuosa edição da Cosac & Naify contrasta-se um negrume de carvão à luminosidade tensa de uma pequena área do canto inferior, como a produzida por uma porta se abrindo num quarto escuro. O gênero romanesco talvez fosse o espaço, se não da incoerência, pelo menos daquilo que está a meio caminho entre a indiscrição e o segredo, entre a desmistificação e o ocultamento. "Caminhamos na escuridão", escreve o autor de "Jacques, o Fatalista", em pleno século das Luzes. Talvez mais um paradoxo, entre os vários na obra desse autor ainda mal conhecido entre nós, e que o livro de Franklin de Mattos ajuda a iluminar.


A Cadeia Secreta
160 págs., R$ 39,00 de Franklin de Mattos. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/ xx/ 11/3218-1444).



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