São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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REVIVENDO OS VIVOS

Patrimônio Vladimir Nabokov/Reprodução
O escritor Vladimir Nabokov


FILÓSOFO NORTE-AMERICANO DISCUTE "FOGO PÁLIDO", DE VLADIMIR NABOKOV, REEDITADO AGORA NO BRASIL

por Richard Rorty

A imaginação, dizia Wallace Stevens, é a mente reagindo à pressão da realidade. Mas é do interesse da realidade -ou seja, da imaginação dos mortos- que nenhuma nova reação seja necessária: que a imaginação dos vivos não possa fazer nada senão reiterar lições previamente aprendidas e exemplificar verdades já sabidas. Resenhadores de bom senso devem pressupor que não se pode escrever nada de genuinamente novo, pois só assim estarão em condição de julgar o livro que estão resenhando sem o perigo de se verem julgados por este. À maneira do resenhador de bom senso, o leitor comum sente-se nervoso diante de livros que não são suficientemente semelhantes aos livros que ele leu no passado.
Vladimir Nabokov (1899-1977) escreveu livros nada parecidos aos demais e que raramente tiveram boas resenhas. A maior parte dos críticos fez eco ao dito de Samuel Johnson -nada de estranho pode durar- e cuidaram de diagnosticar as esquisitices de Nabokov como índices de seu desdém egoísta pela realidade, desdém que encobria sua incapacidade de imitar a realidade persuasivamente. Simon Raven, resenhando "Fogo Pálido" em 1962, ano de sua publicação, afirmou que não se tratava de "um romance, mas de um protótipo". A resenha de Saul Maloff explicava que, "desde sempre, a razão de ser do romancista" é "a criação de um mundo", ao passo que Nabokov criara apenas "uma constelação de bibelôs elegantes e maravilhosos -por definição, uma arte menor". Resenha atrás de resenha reconhecia o engenho de Nabokov e lamentava sua auto-suficiência, seu deleite com os próprios truques, truques que punham a nu a sua falta de respeito pela realidade e pelo leitor comum. Dwight Macdonald declarou o livro "ilegível", sublinhou que, mesmo em seus melhores momentos, Nabokov era "menor" e insistia que "os esmeros técnicos que Nabokov dedica ao projeto são tão ostensivos que acabam por destruir todo o prazer estético do leitor". Incomodado pelo fato de Mary McCarthy ter considerado ""Fogo Pálido" uma criação de perfeita beleza, simetria, estranheza, originalidade e verdade moral", Macdonald explicava que tanto o romance como a resenha de McCarthy eram "exercícios de engenho despropositado".
Nabokov não tinha nenhum interesse na criação de um mundo como aquele a que Raven, Maloff e Macdonald estavam acostumados. Certa vez, declarou que "dizemos que uma coisa é semelhante a tal outra coisa, quando o que realmente adoraríamos seria descrever algo que não tem par na terra". Era esse o anseio que tanto incomodava tantos resenhadores. Para aqueles que gostariam que a realidade fosse tratada com o devido respeito, esse anseio é um índice de auto-suficiência egoísta. "Egoísmo" é o nome que a realidade dá a tudo o que chama atenção para si mesmo -tudo o que é estranho, duro de entender, difícil de acompanhar. Quem respeita a realidade, quem tem certeza de que não há por que submetê-la a novas pressões, dirá que tudo o que é digno de nota já faz parte da realidade e precisa apenas ser representado com precisão. O que não faz parte da realidade é subjetivo, pessoal, idiossincrático, tolo, pueril, evanescente, indigno de nota. Pois, para olhos respeitadores, a realidade é a única autoridade legítima. O anseio do poeta em exercer pressão sobre a realidade parece não apenas fútil, mas ainda moralmente equívoco.
Agora, os críticos e historiadores da literatura começaram a reconhecer que o livro, afinal de contas, há de durar. Aos poucos, o romance vai adquirindo a aura de um clássico, obra de uma das imaginações mais poderosas que o século 20 criou. Essa espécie de reconhecimento é um dos expedientes de que a realidade lança mão para não ter que admitir o golpe que levou. Como se, na calada da noite, sem ninguém por perto, a realidade emitisse pseudópodos para incorporar o último corpo estranho. De manhã, a realidade estará tão fresca e rija quanto antes (mesmo que um pouquinho crescida). E algo que de fato não tinha par na terra se converte em mais um fato terrestre e objetivo, à espera de ser observado. Às vezes, porém, quando o corpo estranho é grande demais ou complexo demais, o processo de assimilação não estará concluído quando a manhã chegar. Nesses casos, podemos surpreender a realidade sugando a vida de uma metáfora ou convertendo um paradoxo numa platitude ou dando feições de clássico a um escândalo.
"Lolita" não se parecia a nada que Morris Bishop, bom leitor, bom homem e melhor amigo de Nabokov em Cornell, tivesse lido; seu asco diante da sordidez de Humbert impediu-o de ler o manuscrito até o fim. Trinta anos mais tarde, a neta de Bishop teve de ler "Lolita" na escola secundária. À medida que "Lolita" e "Fogo Pálido" se convertam em leitura curricular e tema de prova, Humbert Humbert e Charles Kinbote virão a ser personagens literários conhecidos, componentes familiares da realidade em que crescemos. Quanto mais isso aconteça, mais provável será que ambos se fundem à figura de seu criador, mais provável será que os leitores de Nabokov pensem que estão lendo sobre Nabokov, quando na verdade estão lendo sobre esses dois monstros encantadores. Quanto mais se faça essa identificação inconsciente, menos se recordarão as pessoas de que Humbert e Kinbote manipulam as famílias Haze e Shade e, em especial, seus membros mais jovens, Lolita Haze e Hazel Shade.
Brian Boyd, cuja esplêndida biografia serve bem à causa de Nabokov, ao tornar menos fácil a incorporação de seus livros, conta que, entre todos os personagens de seus romances que Nabokov admirava como seres humanos, Lolita só perdia para Pnin. Mas os leitores de Lolita muitas vezes têm dificuldade para conseguir focalizá-la. Parecem não lembrar de nada além da criatura de Humbert, sua invenção: a ninfeta, mais que a garotinha.
De modo que é difícil aceitar a idéia de que ela fosse um esplêndido ser humano. Mesmo assim, como os leitores de "Lolita" recordarão vagamente, a garota era valente: de algum modo, ela conseguiu se livrar de Quilty e encontrou um bom homem, capaz de lhe dar um filho. Constituiu um lar para ele e para a criança que devia nascer perto do Natal em Gray Star, "um povoado no noroeste mais remoto", onde faz muito frio. Pensando bem, Nabokov diz em alguma passagem que Gray Star é "a capital do livro". É então que nos damos conta novamente: Humbert era o único a pensar que havia inventado Lolita; nós não tínhamos por que achar o mesmo. Nós deveríamos lembrar que Humbert era dado a esquecer: os soluços de Lolita durante a noite, seu irmão morto, a criança que teria substituído o irmão. Como esquecemos?
Esquecemos porque Nabokov cuidou que esquecêssemos temporariamente. Ele programou tudo para que esquecêssemos primeiro e lembrássemos depois, confusos e culpados. Seu livro segue nos manipulando mesmo depois de fechado. A razão pela qual será relativamente difícil transformar "Lolita" em um clássico é que nós, guardiões da legitimidade, servos da realidade, só podemos fazer comentários abalizados sobre um romance e encontrar nele ilustrações admiráveis de verdades gerais se o tivermos sob controle. Temos que ganhar distância dele, a fim de observá-lo fixamente, por inteiro.
Mas Nabokov cuida que, justo quando pensávamos ter recuado alguns passos e encontrado o lugar correto para observar o livro em perspectiva, tenhamos a sensação fantasmagórica de que é o livro que está olhando para nós de uma distância considerável e às risadelas. O embaraço resultante costuma se manifestar na forma de exasperação renovada diante do egoísmo de Nabokov, de seu gosto infantil pelos truques e pela novidade tola.
O que vale para "Lolita" vale para "Fogo Pálido". Quando se lê o livro pela primeira vez, nós nos absorvemos numa boa história, narrada por um senhor meio esquisito, mas encantador, e isso antes mesmo de chegar ao fim da introdução. O que vem em seguida -os 999 versos rimados de "Fogo Pálido"- soa como uma interrupção ligeiramente infeliz. Talvez não seja justo forçar um amante de boas histórias a atravessar laboriosamente um poema longo antes de retornar à trama. Mas vamos lá, dizemos ponderadamente, o poema não é tão longo assim. Depois de nos perturbarmos um pouco com a história do suicídio de Hazel Shade no segundo canto e de nos entediarmos um pouquinho com as reflexões sobre a morte no terceiro canto e sobre o processo criativo no quarto canto, tornamos à história que o poema interrompeu. Voltamos à companhia de Kinbote, intrigante, mas dúbia também, e começamos a nos divertir com seu jeito de se intrometer alegremente no que, em teoria, é um comentário ao poema que já começamos a esquecer.
Cinqüenta páginas depois, esquecemos tudo a respeito de John Francis Shade (1898-1959, a introdução já dizia, vale lembrar, que ele morrera logo depois de escrever "Fogo Pálido", pobre homem!). Pois agora estamos imersos nas aventuras de uma figura bem mais interessante: Charles Xavier Vseslav, último rei de Zembla (reinante entre 1936-1958). Se o único grande acontecimento na vida de Shade parece ter sido o infeliz suicídio de sua jovem filha, a história da juventude de Xavier é repleta de incidentes. Mais ainda, ela possui aquele profundo interesse humano que sempre se prende às histórias da realeza, para não falar daquele fremitozinho extra que sentimos ao ler sobre a cópula de jovens faunos.
Cem páginas mais tarde, estamos convencidos de que Charles Kinbote e Charles Xavier são a mesma pessoa. Isso nos proporciona não somente a satisfação de saber que nosso interesse por Kinbote foi recompensado, mas ainda a sensação basbaque de que a realeza achou por bem nos tratar como confidentes. Um ex-rei, triste, mas bonito e bem lido, confia em nós a ponto de nos contar coisas que pouquíssimas pessoas poderiam adivinhar. Shade aparece de vez em quando, e suspeitamos de que ele também pode ter sido clarividente o bastante para perceber, como nós, quem Kinbote de fato é. Mas as aparições de Shade são sempre sucedidas e obliteradas pela revelação de algum fato novo e surpreendente sobre nosso notável anfitrião e comentador. É tão-somente nas páginas finais do romance que somos novamente forçados a pensar seriamente em Shade. Pois agora algo de fato acontece: ele é morto. Shade retorna à história de Kinbote no mesmo momento em que Gradus, o regicida enviado pelo governo revolucionário de Zembla, está a ponto de cumprir sua missão.
Tão logo Shade morre, o romance começa a cair em pedaços. Nossa atenção é subitamente puxada de volta ao poema que esquecemos por tanto tempo. Pois Gradus surge no momento em que Shade finalmente entrega a Kinbote o manuscrito de "Fogo Pálido". Enquanto Shade, caído no chão, se esvai em sangue, Kinbote corre para dentro da casa, a fim de buscar um copo d'água para o amigo moribundo e esconder o manuscrito sob uma pilha de galochas de ninfetas dentro de um armário. Após alguma demora desagradável (Kinbote tem que gastar algum tempo com a viúva de Shade, a polícia e coisas do gênero), ele pode enfim recuperar o manuscrito. Ele o lê rosnando, "como um jovem e furioso herdeiro que percorre o testamento deixado por um velho impostor", dando-se conta de que o poema não trata dele mesmo, mas de seu autor.
Nós, leitores, a essa altura completamente emaranhados às esperanças e aos temores de Kinbote, nos surpreendemos a compartilhar a decepção avassaladora de Kinbote, muito embora nós mesmos já tenhamos lido o poema e saibamos muito bem que tratava dos Shades, e não da derrocada da monarquia em Zembla. Nós também nos perguntamos como Shade pôde ser tão insensível e cruel a ponto de não fazer nenhum uso do material maravilhoso que seu amigo Kinbote lhe oferecia constantemente. Entretanto as dúvidas que nós, monarquistas leais, temos deixado impacientemente de lado ao longo de 200 páginas começam a refluir. Talvez (aliás, muito provavelmente) não sejamos os confidentes de um rei, mas as vítimas de um lunático.
Zembla, recordamos, não figura em nenhum mapa que se conheça. Os castelos ao pôr-do-sol começam a ruir diante de nossos olhos. Toda a história mirabolante talvez não tenha sido mais que a invenção de um acadêmico exilado e enlouquecido, um monstro de egoísmo que nos arrebatou com suas fantasias absurdas. A única pessoa sadia, mais ainda, a única pessoa decente à vista (seja no romance, seja na sala onde o lemos) vem a ser o sujeito que esquecemos há tempos, o homem que escreveu o poema cujo acontecimento central nós preferimos não lembrar: o doce e trapalhão John Shade, com seus valores familiares fora de moda.
Enquanto vemos ruir os castelos, lembramos que torres envoltas em nuvens são sujeitas a dissolução. E, enquanto procuramos desesperadamente por Nabokov, para lhe pedir que nos leve a seu próprio ponto de vista, que nos mostre de onde observar o romance com clareza, nós nos damos conta de que estamos precisamente onde ele queria que estivéssemos: ouvindo Kinbote dizer: "Muito bem, minha gente, acho que muitos dos presentes neste belo salão têm tanta fome e tanta sede quanto eu, e acho melhor, meus amigos, parar por aqui". É como se Próspero, após explicar que em breve mandará seu livro para o fundo do mar, viesse até a beira do palco para anunciar que haverá frutas e bebidas à venda no pátio logo depois do espetáculo, que os assinantes serão bem-vindos nos camarins, mas que, infelizmente, o autor da peça, que adoraria estar ali para encontrar seus muitos amigos, está fora da cidade.
Assim como é preciso muito esforço para lembrar que Lolita soluçava no meio da noite, é também preciso muito esforço para lembrar de Hazel Shade, a moça acima do peso cujo corpo foi retirado do lago Omega no segundo canto. Mas o lago é o traço topográfico central de "Fogo Pálido". A busca de um ponto de vista acabará por conduzir o leitor às margens pantanosas do lago e ao centro exato do poema: "Da margem destacou-se um indistinto/ Vulto que o pântano, voraz, sorveu".


Os "truques" de Nabokov eram os transbordamentos ebulientes de uma mente bem mais ágil do que a nossa; ele queria aprimorar a si e a seus leitores


Aos poucos percebemos que a morte mais importante em "Fogo Pálido" é a mesma que importa no poema "Fogo Pálido": não a de Shade, mas a de sua filha. Shade tinha 61 anos quando foi morto por acidente (por um regicida incompetente, se dermos crédito a Kinbote, ou, mais provavelmente, por um lunático à solta, Jack Grey, que confundiu Shade com o juiz que o recolheu a um asilo). Mas sua filha Hazel tinha apenas 23 anos quando sua infelicidade tornou-se insuportável, graças à crueldade de um estudante universitário, Pete Dean, desapontado com a sensaboria de um encontro às cegas. Ficamos sabendo muita coisa sobre o autocastrado Gradus, mas pouquíssimo sobre Pete. É provável que não fosse nenhum monstro, quem sabe até um rapaz decente, um tanto egoísta e afoito -alguém muito parecido conosco. Nós mesmos talvez tenhamos sido um pouco egoístas e afoitos ao esquecer a família Shade tão rapidamente, mas não foi correto da parte de Nabokov embrulhar-nos tanto tempo com aqueles moços floridos, aqueles paladinos da Rosa Negra, toda aquela conversa fabulosa sobre Zembla.

Crueldades
Seja como for, os Shade não são muito mais reais que Zembla. Afinal de contas, Hazel é um personagem de ficção. Por que a crueldade de Pete Dean deveria ser mais dolorida do que a crueldade de Charles, o Bem-Amado, para com a pálida rainha Disa? Pois, assim como Disa e, de resto, o próprio Charles Xavier, não eram mais que criações ficcionais do ensandecido professor Kinbote, do mesmo modo Hazel não é mais que a criação de um professor exilado de literatura russa e inglesa, sujeito esquisito, dado a truques e fantasias, de nome Nabokov, um professor cuja semelhança com Kinbote é patente no final do livro. Saímos ofuscados dali, fugindo ao som do pano de fundo sendo rasgado às nossas costas, tentando nos livrar da coisa toda como de um amontoado de truques impingidos a nós por um egomaníaco exilado. Foi o que a maioria dos resenhadores de "Fogo Pálido" tentou fazer. Mas tal estratégia não funciona. Pois agora o mundo real recebeu um pequeno golpe, bem ali onde nos esquecemos de Hazel. Mas esse esquecimento não foi uma fantasia. Foi tão real quanto nós. O golpe foi desferido pela imaginação de Nabokov, mas só foi possível com nossa participação entusiástica. Quando lemos pela primeira vez "Lolita" ou "Fogo Pálido" ou "Pnin", podemos rir do começo ao fim de cada uma dessas histórias prodigiosas. Mas saímos das páginas finais de cada um desses romances coçando a cabeça, perguntando-nos se estamos bem, se gostamos de nós mesmos. Nesses três romances, Nabokov dispõe as coisas de tal modo que façamos uma aliança com um determinado personagem (Humbert, Kinbote ou qualquer um dos colegas desdenhosos de Pnin) contra alguém que esse mesmo personagem trata cruelmente. Ele também cuida que pensemos estar ombro a ombro com o próprio Nabokov, com esse escritor tão brilhante, que nos está proporcionando tão bons momentos, cujo engenho nos é fonte de tanto deleite estético. Mas, em todos esses casos, percebemos no final do livro que seria melhor não nutrir sentimentos tão calorosos por esse personagem com quem estivemos perambulando e cuja companhia parecia tão agradável. E isso nos faz pensar se nossa relação com Nabokov é tão transparente quanto pensávamos. Começamos a ter a terrível sensação de que talvez Nabokov não goste tanto assim de nós assim como não gostava dos personagens a quem nos apresentou. Mas valeria ter-nos identificado a outra gente -Shade, Lolita, Pnin- antes que fosse tarde demais.

Palhaço anônimo
Nosso arrependimento só faz crescer quando ouvimos Nabokov dizer a um entrevistador: "Faz pouco tempo, um palhaço anônimo, escrevendo sobre "Fogo Pálido" numa revista de Nova York, tomou por minhas as declarações do comentador que inventei no livro...". Talvez não nos tenhamos saído melhor que esse palhaço anônimo? Será isso o que Nabokov queria que sentíssemos? Sendo assim, ele é de fato tão insidiosamente cruel, tão egoísta e indiferente quanto seus personagens mais sedutores, não? Não. Nabokov é um autor tão gentil e generoso quanto foi na vida real. Muito embora não tenha a menor vontade de se reunir a nós para comes e bebes depois de tirar sua maquiagem de Próspero, ele tampouco está interessado em nos passar uma rasteira. Ele sabe muito bem que, daqui a alguns dias, estaremos mais felizes e seremos mais sábios por termos sofrido um pequeno golpe. Massageando esse golpe com mais tranqüilidade, perceberemos que, como ele e como todos mais, nós também temos nosso lado Shade e nosso lado Kinbote. O lado que sente compaixão por Hazel e Lolita e o lado que as esquece, o lado que sente pena das dificuldades de Pnin com a língua inglesa e o lado que as acha divertidas às pampas. Quem tiver esses dois lados em si mesmo pode muito bem se tornar mais gentil e generoso ao reconhecer sua própria duplicidade. Quanto mais vezes lemos "Fogo Pálido" e quanto mais vezes o lemos no contexto dos demais livros de Nabokov, mais claramente percebemos que cada um desses lados só emerge à luz do outro: Shade não seria plenamente visível sem Kinbote, nem Kinbote sem Shade. No final da entrevista citada acima, o jornalista comenta que "às vezes me parece que nos seus romances, em "Riso no Escuro", por exemplo , há um traço de perversidade que chega às raias da crueldade". Ele respondeu: "Não sei. Talvez. É claro que alguns de meus personagens são bem bestiais, mas não me importo muito, estão fora de meu íntimo, feito monstros arrependidos na fachada de uma catedral -demônios colocados ali apenas para mostrar que tomaram uma sova. Na verdade, eu sou um senhor afável que abomina a crueldade".

Beleza e compaixão
Nabokov tornou-se mais afável à medida que envelhecia, escrevia mais romances e dava sovas em mais e mais demônios. Escreveu "Fogo Pálido" quando tinha a idade de Shade, 61, e conferiu a Shade uma espécie de generosidade que não soubera dar, 25 anos antes, a Fiódor Godunov-Tcherdintsev (em "O Dom"). Quando Kinbote pede uma senha a Shade, este lhe diz "compaixão". Nesse caso, podemos ter certeza de que Shade fala por seu criador, que, nas suas "Conferências de Literatura", escrevera: "Beleza e compaixão é o mais perto que chegaremos de uma definição da arte". É tentador afirmar que Kinbote dava-se bem com a beleza, e Shade, com a compaixão, e ainda que vincular a obra dos dois homens produziu o que McCarthy declarou ser "uma das grandes obras de arte do século 20". Mas isso seria simplista demais. Shade saía-se muito bem com a beleza: há versos maravilhosos espalhados em "Fogo Pálido". Kinbote comiserava-se ferozmente por Disa, ainda que apenas em seus sonhos, e estava certo ao dizer que "Hazel Shade parecia-se comigo sob certos aspectos" (e não apenas pela tendência suicida).
As relações entre Kinbote e Shade e entre suas contrapartidas dentro de nós não são de mera oposição. São dialéticas, tão dialéticas quanto as relações entre as nossas primeira, segunda e terceira leituras de "Fogo Pálido". Nabokov não estava interessado em imitar a realidade; queria transformá-la, transformando a si mesmo e a seus leitores em pessoas capazes de sentir e fazer coisas que não saberiam sentir e fazer antes. Também não estava interessado em nos trapacear. Os seus "truques" eram os transbordamentos ebulientes de uma mente bem mais ágil e bem mais armada do que a nossa. Nabokov não tinha interesse ou necessidade de admiração. Queria aprimorar a si e a seus leitores, aumentando a intensidade das trocas dialéticas entre os dois lados da sua e da nossa natureza: o lado que se exalta diante da beleza e das fantasias que a beleza gera e o lado que se dilacera diante do sofrimento dos indefesos.
Aqueles que julgam a fantasia irrelevante para o senso moral não poderão aceitar a definição nabokoviana de arte. Talvez cheguem a duvidar de que Nabokov acreditasse em sua própria definição, pois dificilmente conseguirão vê-lo como mais do que um egoísta enamorado de seu próprio brilho estilístico. Pensarão ainda que, a fim de inspirar compaixão, não precisamos nem queremos estilo, engenho e perfeição formal: o estético só pode nos distanciar do moral. Dirão ainda que precisamos ser tão realistas quanto for possível; não queremos fazer pressão contra a realidade, mas sim respeitá-la, na forma que a moralidade prescreve que respeitemos os sentimentos alheios -devemos observar as pessoas tais como elas são, e não imaginá-las.
Mas Nabokov recorda-nos de que só podemos respeitar o que somos capazes de notar, e muitas vezes é difícil notar o sofrimento alheio. E ele ainda aponta a razão dessa dificuldade: passamos boa parte do tempo inventando pessoas, em vez de notá-las, metamorfoseando pessoas reais em personagens de histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, sobre nossa beleza e singularidade. Quanto mais dotes poéticos tivermos, melhores fabuladores seremos e menor será nossa capacidade de notar o sofrimento dos outros.
No caso extremo de pessoas fabulosamente dotadas e capazes de jamais deixar que o sofrimento alheio se intrometa nas histórias que contam, tais histórias podem se tornar verdadeiramente prodigiosas. Serão histórias à feição da que Kinbote conta sobre Charles Xavier ou da que Humbert conta sobre aqueles raros espíritos capazes de detectar uma ninfeta -"demônio imortal em forma de criança"- à primeira vista; histórias que tornam impossível ao leitor enredado recordar que John Shade tem outros assuntos para seus poemas além de Zembla ou que Lolita é uma criança.
Nabokov era o espírito mais singular que se possa imaginar: um poeta de dons fabulosos, cuja capacidade de notar o sofrimento alheio crescia à medida que fazia uso de seus dons. Ele percebeu que a melhor forma de fazer seus leitores notarem o sofrimento alheio consistia em exibi-lo por um momento, depois forçá-los a esquecer tudo por um bom tempo, para enfim trazê-lo novamente à tona justo quando o leitor estava perfeitamente enredado pela pura beleza da fantasia, pela pura alegria da prosa. Nabokov sabia muito bem que a arte pode ser uma distração dos imperativos da moralidade, mas também sabia que ela pode ser, ao menos para alguns de nós, o melhor meio de aprimoramento moral.
Pois, mesmo que a beleza possa afastar a compaixão, ela também pode suscitar uma compaixão de intensidade previamente inimaginável: quanto mais bela a história que nos fez esquecer, maior será a compaixão que por fim recordamos. A imagem de um garoto que tenta salvar o irmão das pedras que os demais colegas de escola lhe atiram será sempre uma imagem familiar em muitos países, mas menos freqüente naqueles onde se lêem romances.

Richard Rorty é filósofo e professor na Universidade Stanford (EUA). É autor de "Para Realizar a América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará). Uma versão ampliada deste artigo foi publicada como introdução à edição da Everyman's Library (EUA) de "Fogo Pálido" .
Tradução de Samuel Titan Jr.


Fogo Pálido
304 págs., R$ 42,50 de Vladimir Nabokov. Trad. Jorio Dauster e S. Duarte. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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