São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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PONTO DE FUGA

Coração sem intermitências

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

Bertolucci e Visconti compartilham um certo romantismo. O conde d. Luchino, porém, que foi o mais aristocrático dos marxistas, descende de um fim-de-século requintado, proustiano, e não se entrega, sem recuos ambíguos, à tirania das paixões. Bertolucci, ao contrário, sente como os primeiros românticos. Cada vez mais seus filmes revelam essa afinidade, concentrando-se na bela força do amor, unívoca e íntegra. Nestes nossos tempos desconfiados, trata-se de um modo de ser que pode tomar, talvez, as cores de uma certa ingenuidade. É fato que Bertolucci não se serve de uma consciência analítica, como aquela que acompanha a violência sentimental de "Senso" ou de "Morte em Veneza". Seu mundo é o de uma outra verdade, revelada plenamente em "Besieged", o último filme que realizou. Poucos personagens, quase nenhum diálogo, música que se cruza com ruídos e com ações sem melodrama: usar o aspirador numa sala, passar roupa, lavar louça. Werther apaixonou-se por Lotte vendo-a cortar fatias de pão: gestos banais que contêm em si afetos obstinados e silenciosos. Com meios que são apenas os do mais puro cinema, cada instante, sem queda de intensidade, torna-se, em "Besieged", contaminado pelos poderes do amor.
Não é a história, muito simples, o importante. O que conta é essa aventura interna de dois seres, que o espectador vive, ele também, como se fosse por dentro.

Branco - Para combater o calor infernal de NY no verão, o Brooklin Museum of Art apresenta a mostra "Impressionists in Winter Effets de Neige". É um conjunto de pinturas impressionistas sobre o tema da neve, em paisagens francesas. Assim, está ausente a estupenda sequência dos quadros que Monet pintou na Noruega, embora ele seja o artista mais presente em número de obras. Todas possuem um nível elevado, e o tema do inverno, de efeitos picturais tão concentrados -vibrações de superfícies, brancos quebrados por cinzas, por azuis, com aqui e ali uma nota mais viva-, induz a uma reflexão sobre os limites do impressionismo. O princípio repetido das pinceladas que dissolvem o mundo "sólido" em efeitos atmosféricos, em reflexos, em tons, em puras cores, tende à repetição, evocando às vezes a idéia de fórmula. Ela está presente de um pintor ao outro, e as diferenças estilísticas individuais são insuficientes para ir buscar dificuldades fora do campo "ortodoxo" que os impressionistas definiram por volta de 1874. Sobressai, assim, a forte originalidade construtiva de Caillebote, em dois quadros, e um Cézanne muito raro, no qual silhuetas escuras de árvores tramam uma arquitetura sem falha.

Doce - "Besieged" está lá no alto, e não há comparação possível. Mas, ao mesmo tempo, em outros cinemas, duas comédias românticas falam de amor. "The Love Letter" revela, para o Ocidente, o diretor Peter Ho-Sum, que veio de Hong-Kong. O filme, feito em Hollywood, é delicado, discreto e estranho: as palavras de uma carta anônima, apaixonadas e sinceras, despertam vários afetos adormecidos numa pequena cidade. O outro filme, "Notting Hill", com Julia Roberts e Hugh Grant, não tem jeito: é inverossímil, sem encanto e sem graça.

Legado - Na espera de "Eyes Wide Shut", que estreará no dia 16 de julho, as retrospectivas Kubrick começaram. Seu cinema é da espessura e não da leveza. Rever esses filmes assim em bloco é como entrar num furacão e ser levado sem saber onde se vai cair. Nada ali é "natural" ou discursivo; uma constante interrogação sobre o mundo se faz por mistérios alusivos, por emoções aterradoras ou pelo absurdo cômico.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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