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PONTO DE FUGA
Coração sem intermitências
JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York
Bertolucci e Visconti compartilham um certo romantismo. O conde d. Luchino, porém, que foi o mais aristocrático dos marxistas, descende de
um fim-de-século requintado,
proustiano, e não se entrega,
sem recuos ambíguos, à tirania
das paixões. Bertolucci, ao contrário, sente como os primeiros
românticos. Cada vez mais
seus filmes revelam essa afinidade, concentrando-se na bela
força do amor, unívoca e íntegra. Nestes nossos tempos desconfiados, trata-se de um modo de ser que pode tomar, talvez, as cores de uma certa ingenuidade. É fato que Bertolucci
não se serve de uma consciência analítica, como aquela que
acompanha a violência sentimental de "Senso" ou de "Morte em Veneza". Seu mundo é o
de uma outra verdade, revelada
plenamente em "Besieged", o
último filme que realizou. Poucos personagens, quase nenhum diálogo, música que se
cruza com ruídos e com ações
sem melodrama: usar o aspirador numa sala, passar roupa,
lavar louça. Werther apaixonou-se por Lotte vendo-a cortar fatias de pão: gestos banais
que contêm em si afetos obstinados e silenciosos. Com meios
que são apenas os do mais puro
cinema, cada instante, sem
queda de intensidade, torna-se,
em "Besieged", contaminado
pelos poderes do amor.
Não é a história, muito simples, o importante. O que conta
é essa aventura interna de dois
seres, que o espectador vive, ele
também, como se fosse por
dentro.
Branco - Para combater o calor infernal de NY no verão, o
Brooklin Museum of Art apresenta a mostra "Impressionists
in Winter Effets de Neige". É um
conjunto de pinturas impressionistas sobre o tema da neve, em
paisagens francesas. Assim, está
ausente a estupenda sequência
dos quadros que Monet pintou
na Noruega, embora ele seja o
artista mais presente em número de obras. Todas possuem um
nível elevado, e o tema do inverno, de efeitos picturais tão concentrados -vibrações de superfícies, brancos quebrados por
cinzas, por azuis, com aqui e ali
uma nota mais viva-, induz a
uma reflexão sobre os limites do
impressionismo. O princípio repetido das pinceladas que dissolvem o mundo "sólido" em
efeitos atmosféricos, em reflexos, em tons, em puras cores,
tende à repetição, evocando às
vezes a idéia de fórmula. Ela está
presente de um pintor ao outro,
e as diferenças estilísticas individuais são insuficientes para ir
buscar dificuldades fora do campo "ortodoxo" que os impressionistas definiram por volta de
1874. Sobressai, assim, a forte
originalidade construtiva de
Caillebote, em dois quadros, e
um Cézanne muito raro, no qual
silhuetas escuras de árvores tramam uma arquitetura sem falha.
Doce - "Besieged" está lá no
alto, e não há comparação
possível. Mas, ao mesmo tempo, em outros cinemas, duas
comédias românticas falam
de amor. "The Love Letter"
revela, para o Ocidente, o diretor Peter Ho-Sum, que veio
de Hong-Kong. O filme, feito
em Hollywood, é delicado,
discreto e estranho: as palavras de uma carta anônima,
apaixonadas e sinceras, despertam vários afetos adormecidos numa pequena cidade.
O outro filme, "Notting Hill",
com Julia Roberts e Hugh
Grant, não tem jeito: é inverossímil, sem encanto e sem
graça.
Legado - Na espera de "Eyes
Wide Shut", que estreará no
dia 16 de julho, as retrospectivas Kubrick começaram. Seu
cinema é da espessura e não
da leveza. Rever esses filmes
assim em bloco é como entrar
num furacão e ser levado sem
saber onde se vai cair. Nada ali
é "natural" ou discursivo;
uma constante interrogação
sobre o mundo se faz por mistérios alusivos, por emoções
aterradoras ou pelo absurdo
cômico.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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