São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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+ brasil 503 d.C.

José Arthur Giannotti

Negociando com a norma


Confusão entre moralidades subjetiva e objetiva pode colocar em xeque as instituições judiciárias, que necessitam de reformas constantes para não se debilitarem


Fui apresentado ao comissário Brunetti por uma grande amiga que, cuidando para que não me aborrecesse numa longa viagem aérea, me emprestou "Morte no Teatro La Fenice" (Companhia das Letras), escrito por Donna Leon. Há anos não lia um romance policial, mas já o fato de a intriga passar-se em Veneza prometia o prazer de uma leitura descomprometida e nostálgica. O livro colocou-me, porém, diante de um problema moral clássico, embora apresentando uma solução nada convencional. Vale a pena examiná-lo, mas para isso sou obrigado a resumir o cerne da intriga e contar seu fim. Que o leitor me perdoe, mas, se anulo com isso seu prazer de seguir passo a passo os meandros da investigação policial até desvendar o mistério, consolo-me lembrando que pode ler outros romances da mesma autora e do mesmo teor e vivacidade. O crime ocorre no famoso teatro La Fenice, obviamente antes de seu incêndio: o célebre maestro Wellauer é encontrado envenenado no intervalo de uma ópera por ele dirigida. Seguem-se as peripécias tradicionais da investigação policial, que vai desenhando, conforme avança, o perfil de um personagem tenebroso, colecionando todos os pecados, de nazista a perversões sexuais. Finalmente o mistério se desvenda. É a própria esposa, médica, que lhe aplica doses cavalares de antibióticos, provocando a perda considerável e irreversível da audição do maestro. Assim ela se vinga, visto que o surpreendera com sua filha adolescente numa prática de pedofilia a que o maestro, padrasto, costumava se entregar com requintes perversos. Ao perceber a situação, Wellauer se envenena -sua vida perdera o sentido-, mas prepara o cenário para aparecer a culpa de sua esposa. Vingança contra a vingança. É nessa altura que o dilema se coloca. O comissário Brunetti avalia que nenhuma corte italiana a condenaria, desde que a criança depusesse contra o padrasto. Mas isso não traumatizaria ainda mais a menina? Por sua vez, a mãe preferiria ser condenada a levar a filha a testemunhar. Assim sendo, em nome de uma justiça maior, o comissário termina seu inquérito informando seus superiores de que o maestro havia se suicidado.

Desmesura
Ele mentiu. Afora esse gesto ser um bom sintoma da descrença em que caem nossas instituições judiciárias, ele ainda coloca a questão: até que ponto deve-se dizer a verdade, quando se percebe que isso vai causar um mal maior? No plano da simples mentira, é conhecida a solução kantiana: nunca se deve mentir, uma vez que jamais se pode ter o controle total dos resultados desse ato de fala. Não pode resultar num prejuízo maior ainda a tentativa de minorar o mal? Mas o dilema de Brunetti não é somente mentir ou não. Para quem ele mente? Dada sua participação num processo de investigação institucionalizado, que desencadeia, por sua vez, outros procedimentos -a acusação do promotor público e a sentença do juiz-, sua mentira, feita em nome da justiça, bloqueia o curso normal da Justiça institucionalizada. Seguem-se duas perguntas. Até que ponto é possível negociar com a norma que define uma instituição a que uma pessoa presta serviços? É possível uma justiça não-institucionalizada? Nada mais comum que o sentimento de injustiça. Reconhecemos que tal pessoa foi injustamente condenada e até mesmo que amigos íntimos podem cometer injustiça uns com os outros. No fundo reside a sensação de que houve uma desmesura, de que se avaliou seja uma conduta, seja uma pessoa, além ou aquém dos limites esperados. Como se medem, entretanto, tais limites? Qual é o sentido dessa desmesura? Ninguém avalia sozinho. Posso perceber certa desmesura dos comportamentos -e é disso que se trata, de meu próprio ponto de vista-, mas, para julgar se ela existiu ou não, devo recorrer a um padrão de medida que, embora muitas vezes apenas aludido, deve ser aceito e aplicável por vários indivíduos. Nada me impede de eleger meu palmo para medir um vão que tento tapar com um objeto que há de se encaixar justamente no lugar devido. Mas, para dizer "esta distância tem três palmos", é preciso pressupor, além da língua portuguesa, com seu vocabulário e suas regras, que um outro qualquer, ao medir o mesmo vão por meio do mesmo estalão, chegará ao mesmo resultado. Todas essas regularidades estão, para a comunidade dos falantes da língua portuguesa, pressupostas na afirmação da existência, mas a mesmidade do palmo-padrão foi estabelecida por mim sob o pressuposto de que todos poderiam admiti-lo. No entanto a desmesura nas relações sociais não segue o estalão desse juízo individual. São nossos juízos que precisam ser ajustados para produzir o mesmo resultado intersubjetivo, que só pode nascer do próprio inter-relacionamento, a não ser que se pressuponha uma medida incrustada num céu platônico ou num mecanismo oculto interno ao eu, isto é, uma medida sem a atividade de medir. No entanto, já a partir do momento em que enuncio o juízo, altera-se o sentido do "justamente". A percepção do encaixe possível se refaz nesse momento da enunciação que transforma meu palmo em regra, sob a condição de que indivíduos de um determinado universo sejam capazes de discernir o mesmo palmo como regra. No processo, meu palmo se transformou em estalão, o objeto empírico é posto como regra pelo processo de medir, o que equivale a pressupor que qualquer pessoa, ao medir com ele, chegue aos mesmos resultados. Ora, esses pressupostos necessitam de condições de vigilância. Meu palmo pressuposto não poderia ter diminuído ou aumentado? Por isso essa regra de medida coexiste com os procedimentos de vigilância tanto de seu padrão quanto da justeza de sua aplicação. Trata-se de uma regra que só é aceita se forem dadas as condições para vigiar seus procedimentos, ela existe como regra para mim e para outrem, sendo que sua existência, além do enunciado dela, pressupõe, para o seu exercício, a existência de mecanismos capazes de assegurar seu bom funcionamento. Uma regra que nunca pode ser bem seguida não é uma regra. Convém notar que a avaliação do "bom" funcionamento da regra pode ser feita de várias perspectivas: tanto do lado quantitativo, se o padrão-palmo dá resultados com a precisão devida, como do lado qualitativo, se a flexibilidade do palmo serve para selecionar, por exemplo, objetos mais bonitos. Mas, para a questão posta, interessa apenas examinar sob que condições se mede a justeza das ações. Ela varia de sentido conforme ficam estabelecidas as condições de sua vigilância. Suponhamos dois amigos lutando boxe; eles medem seus golpes de modo a não ferir o outro. Mas, se um deles exagera e sangra o nariz de seu companheiro, pode pedir-lhe desculpas ou aguentar calado um soco mais forte de revide. No primeiro caso, a linguagem serviu tanto para reconhecer a desmedida como para saná-la, reforçando a justeza da boa intenção, uma vez reconhecido o erro. No segundo, o primeiro excesso foi compensado pelo outro, cada parte julgando justo intercambiar o exagero pelo revide.

Atores e juízes
Cria-se assim uma escala de referência em que as duas desmedidas poderiam ser comparadas. Importa, porém, salientar que os parceiros, nas situações mencionadas, não abrem mão de avaliar eles mesmos a justeza dos procedimentos compensatórios; são eles atores e juízes, embora não haja de antemão, nesse caso, uma medida precisa a distinguir a ação adequada da ação exagerada. Por isso eles se colocam no nível de uma moralidade, digamos assim, subjetiva, eles mesmos mantendo sob controle os procedimentos de vigilância necessários para o ajuizamento.
Em situações mais complexas, em que o outro pode ser qualquer ou anônimo, vale dizer, nas relações sociais em que o outro é vicário, não há como manter essa proximidade entre o exercício da regra e os procedimentos de sua vigilância.
Nesse plano, que chamaremos de moralidade objetiva, a justeza da aplicação da regra e, como veremos, a justiça de sua vigilância dependem da existência de instituições, vale dizer, normas estipuladas a que os atos se reportam, assim como de hábitos regulados. Nessas condições, o exercício de uma regra pela qual os indivíduos pautam suas condutas, ou melhor, o exercício da norma, depende da existência de procedimentos institucionalizados, hábitos que, embora procedam de juízos anteriores, estão congelados. Os indivíduos agem reguladamente, mas sem pensar. No plano da moralidade subjetiva, para pedir desculpas, por exemplo, é necessário saber falar uma língua ou escolher gestos adequados; para aceitar o soco de compensação sem brigar é preciso saber tacitamente avaliar tanto a adequação do revide quanto as consequências de uma ruptura. No fundo importa aqui os atores procederem e quererem por seus atos sobretudo manter a existência de uma relação face a face, em vez de simplesmente ter assegurada a validade da regra. Particularmente é a inversão desse querer quando, em vez de precisar da existência do outro, precisa-se da regra pela qual esse outro se define como parceiro que caracteriza a situação mais complexa da moralidade objetiva, em que o outro se torna um indivíduo qualquer, simples candidato que pode vir a ser parceiro. A manutenção da regra se torna, desse modo, condição de uma relação social possível. Nessas condições só se torna viável seguir uma regra, porém, se existe um terceiro cuidando de sua vigilância. A despeito de uma depender da outra, a normatividade da regra parece isolada da normatividade da vigilância, pois dois tipos de institucionalidade se constroem. O primeiro diz respeito à criação de uma terceira instância em que um indivíduo (ou um conjunto de indivíduos) acresce a seus comportamentos interpessoais a tarefa de vigiar o bom funcionamento de uma regra ou um sistema de regras. Como essa dupla função confere à instância julgadora a possibilidade de confundir seus padrões particulares com os padrões de vigilância de regras coletivas, é natural que tais regras sejam codificadas e enunciadas como limites das ações a serem medidas. Do mesmo modo, porém, o exercício da norma de vigilância necessita de procedimentos que venham ajustá-la, capazes de controlar sua desmesura. Como evitar, porém, a reincidência ao infinito? Graças à existência de algo sui generis que indica que qualquer um dos seguidores da primeira norma será igualmente tratado segundo sua existência social.

Ajuste das diferenças
Até agora evitei o uso do vocabulário dos juristas, pois suas práticas são acompanhadas, em geral, de uma prosa eivada de pressupostos filosóficos. Mas convém distinguir a norma positiva, a regra existente a que as pessoas se reportam, da norma de justiça, guardiã de um dado sistema positivo. Essa norma de justiça diz respeito à maneira pela qual a norma positiva deve ser instituída a fim de que tanto ela seja válida quanto seja capaz de ajustar as inevitáveis diferenças de sua aplicação. Por isso é vazia, porquanto assegura que o conteúdo da norma positiva, ao ser aplicado, pode ser ajustado, mas não informa o estalão a ser usado. Fórmulas como "a cada um o que é seu", "não faças aos outros o que não queres que façam a ti" e assim por diante não dizem como há que distinguir o meu e o teu, o que não quero para mim etc. Por isso a norma de justiça nunca pode ser um princípio, fundamento moral que legitima uma norma positiva, porquanto nada se constrói sobre uma regra que não possui conteúdo, que não diz o que é e como se discrimina o meu e o teu. É por isso que a norma de justiça depende do direito positivo que lhe dá o critério regulador. Numa sociedade estamental, por exemplo, aceita-se uma distribuição de riqueza diferenciada segundo o status social; numa sociedade democrática, essa diferença é admitida se um aumento dessa riqueza for distribuído de modo a favorecer os menos ricos e assim por diante. Se há uma determinação recíproca, portanto, entre norma positiva e norma de justiça, o desafio é entender o sentido dessa determinação. O que significa dizer que é injusto um dado sistema de normas, a partir do qual sentenças válidas são pronunciadas? Antes de tudo é preciso compreender que a legitimidade, embora condição necessária, não é fundamento, como se as normas estivessem ligadas por um elo lógico dedutivo que remetesse a uma pedra de toque irremovível. Sobre o vazio nada se constrói. Mas existem outras espécies de necessidade. Para jogar xadrez, não são necessárias peças ou sinais perduráveis? Por isso me voltei para o modo pelo qual uma regra, ao ser aplicada, deixa uma zona de indefinição cujos limites, em certos casos, precisam ser vigiados. Toda vez que os comportamentos se ajustam como se os agentes fossem vicários, indivíduos quaisquer de uma dada sociedade, a norma que seguem necessita de outra norma de vigilância, uma não existe sem a outra. É o que acontece, por exemplo, numa situação de mercado, que não se instala se não há um tribunal para julgar os casos litigiosos. Isso não acontece com o escambo, mas nessa situação os objetos trocáveis não são quaisquer. A norma de vigilância, porém, também precisaria de outra para compensar os desvios de sua aplicação, de sorte que só se evita o regresso ao infinito quando uma norma passa a existir como idéia reguladora, presente como representação coletiva de todos os membros de uma sociedade. Essa norma formula apenas um saber apreendido da necessidade de um sistema de normas positivo e seu bom funcionamento. É como se cada um de nós fosse ao mesmo tempo um tribunal, sabendo tacitamente distinguir o justo do injusto. Mas esse saber só se exerce se emprestar de outra norma positiva os conteúdos que desenham o perfil do justo e do injusto.

Sistema de equivalências
A norma de justiça formula esse saber, essa faculdade coletiva de julgar, mas somente funciona movimentando normas positivas, vigiando o funcionamento delas, guardando seus limites imprecisos, quer confirmando, quer infirmando a validade delas e, por isso, colaborando para que existam como tais ou sejam reformadas. Em outras palavras, a norma de justiça formula um saber regular que resulta do funcionamento de um sistema jurídico positivo, mas que, graças a esse mesmo funcionamento, se transforma em sua condição necessária.
Se admito, por exemplo, que é justo executar um assassino, é porque estou reafirmando a validade da lei que o condena, assim como a lisura do processo de seu julgamento; se condeno essa medida, estou prestes a reformá-la. Mas, em ambos os casos, estou admitindo como necessária minha faculdade de julgar, vale dizer, de formular leis e chegar a resultados que, dentro de certos limites, confirmam essas leis, faculdade que só existe, aliás, como traço deixado pelo percurso da aplicação das regras. O sentimento de justiça é a presença dessa capacidade que somente se exerce associada a uma norma positiva.
E, quando essa norma se exerce entre indivíduos quaisquer, um terceiro ajusta a desmesura de suas aplicações, indivíduo cujas atividades são ao mesmo tempo conduta e norma, ato e sentença.
Ele se torna necessário nessa dualidade porque, em funcionamento sempre ajustado e desajustado, existe um sistema de equivalência das ações. Compreende-se agora o engano do comissário Brunetti: ele confunde moralidade subjetiva e objetiva, assume o controle de uma vigilância que somente vem a ser no quadro de um sistema de normas institucionalizado, movido por funcionários como ele próprio, capazes de agir segundo sua própria consciência e segundo o cargo. Confunde a justiça, somente alcançável pelo funcionamento de instituições judiciárias, com a justeza de ações face a face. Pretende corretamente proteger a menina abusada, mas, ao retirá-la do processo, deixa de cumprir regras da instituição a que ele pertence e, assim, destrói o próprio sentido de sua investigação.

Um quebra-galho
Não haveria meios mais sutis de a menina prestar depoimento? Além do mais, o ato vingador da mulher, ao administrar grandes doses de antibióticos como se fossem vitamina, viola artigos do Código Penal, que o promotor deveria consultar e o juiz aplicar. Em vez de agir na qualidade de comissário, Brunetti age como um amigo a quebrar galhos, terminando por sugerir álibis para que a mulher se torne convincente seu depoimento.
Convenhamos, as instituições da justiça são defeituosas, muitas vezes, ineficazes, se não corruptas. Mas sem elas não há justiça, a não ser um sentimento, um saber ajuizar que só pode valer entre pessoas conhecidas. Por isso é preciso, como sempre, redesenhar os limites entre os quais os resultados da aplicação da norma se encaixam: o preço da justiça é a constante reforma das instituições judiciárias.

Nota:
Agradeço a Alberto Alonso Muñoz o cuidado com que discutiu este texto.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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