São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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+ brasil 503 d.C.

Evaldo Cabral de Mello

Entre a república e a monarquia


Tutela da Inglaterra, e não de Portugal, sobre a maçonaria pernambucana se revelou fator crucial para compreender a revolução de 1817


A revolução de 1817 foi um movimento que fugiu ao controle da maçonaria portuguesa e fluminense. A Grande Loja Portuguesa ou Grande Oriente Maçônico compunha-se majoritariamente de elementos da nobreza, das Forças Armadas e do clero. Tendo sobrevivido, após a ocupação francesa de Lisboa, à repressão desencadeada pela regência, a maçonaria lusitana recuperara-se a partir de 1813, na esteira do regresso do Exército português que lutara sob Wellington na Península Ibérica, fundando-se novas lojas e reorganizando-se a instituição de cúpula. À reorganização em Portugal, seguiu-se a do Rio, cujas lojas, fechadas em 1806 no governo do conde dos Arcos, reabriram-se após a chegada do príncipe regente, graças à tolerância e à cumplicidade de altos funcionários do regime, como d. Rodrigo de Sousa Coutinho, que, como tantos outros, era tido e havido na conta de pedreiro-livre ou, ao menos, de simpático a eles. Criou-se então o Grande Oriente Brasileiro, que teve um futuro protagonista de Dezessete, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, como seu primeiro grão-mestre. Ao contrário da maçonaria fluminense, a pernambucana escapou à tutela do Grande Oriente Lusitano. Seu aparecimento datava também dos primeiros anos do século, sob o estímulo do naturalista Manuel Arruda da Câmara e do seu discípulo, padre João Ribeiro, mas então ela foi reorganizada não de Lisboa ou do Rio, mas de Londres, por Domingos José Martins, emissário de pedreiros-livres ingleses. Desde então as lojas pernambucanas tornaram-se exclusivamente brasileiras, excluindo os portugueses residentes na terra, os quais por isso mesmo fizeram a sua loja à parte.

Estratégia complexa
Que a maçonaria pernambucana recebesse seu impulso da Inglaterra, e não de Portugal, é relevante para compreender Dezessete. Embora houvesse sido uma criação da maçonaria inglesa, a Grande Loja Portuguesa caíra progressivamente sob a influência do Grande Oriente de França, com quem assinara o tratado de cooperação de 1804, ao passo que a congênere britânica cindira-se em lojas rivais devido a divergências em matéria de ritual, cisão só superada em 1813. Como acentuou A.H. de Oliveira Marques, "a intervenção britânica neste campo deve entender-se também como uma estratégia complexa onde imperialismo maçônico e imperialismo político andavam de mãos dadas".
É provável, por conseguinte, que a missão de Domingos José Martins em Pernambuco tivesse visado precisamente a criar uma alternativa pró-britânica à preeminência francesa sobre o Grande Oriente de Lisboa como também de revidar à intenção declarada dos pedreiros-livres do reino de liquidarem a posição privilegiada da Inglaterra no império luso-brasileiro, intenção que se manifestará com vigor na frustrada conspiração maçônica de Gomes Freire de Andrade, também em 1817.
A contenda entre pedreiros-livres fluminenses e pernambucanos veio à tona desde os primeiros dias de Dezessete, quando ficou claro que os adeptos da monarquia constitucional haviam sido cuidadosamente mantidos à margem da conspiração. Vitoriosa a insurreição, cumpria definir o programa do novo regime. Quando a junta governativa debateu o assunto, o representante dos letrados, José Luís de Mendonça, que combinara a manobra com Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, propôs que se abrissem negociações com a corte do Rio. A proposta foi repudiada por Domingos José Martins, que dispunha do apoio dos oficiais da terra. Mendonça ficou a partir daí em posição isolada no governo, onde os republicanos dispunham da maioria.
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, cuja nomeação para ouvidor de Olinda teria sido planejada pelos mações fluminenses para colocar a maçonaria local sob a tutela do Rio, ainda tentou salvar a proposta de negociação com a coroa. Dissuadido por Domingos José Martins e pelo padre João Ribeiro, contactou outro dos pró-homens que haviam permanecido na ignorância da insurreição, o coronel Suassuna. Antônio Carlos sondou-o sobre os rumos do movimento, concordando ambos em que "os homens de qualidade estavam arruinados se não ajuntarem os seus esforços para destruir uma cabala de malfeitores".
Suas manobras deviam estar associadas a um projeto de contra-revolução que solicitasse a d. João 6º que desse Constituição, à maneira dos "rebeldes constitucionais" espanhóis, projeto que a alçada encontrará entre os papéis de outro maçom, o deão da Sé de Olinda, o dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal.
A Ribeiro de Andrada, Suassuna teria prometido aliciar apoios no sul da capitania, ficando a cargo do Andrada contactar um setor da tropa de linha. Enviado pela junta para barrar a marcha do exército realista da Bahia, Suassuna procurou entabular negociações com o general Congominho, que comandava o exército realista, contando seguramente com a adesão de oficiais maçons de tendência constitucionalista que compunham o estado-maior.
É plausível que tais contactos tenham chegado ao conhecimento do governo provisório, incitando-o a despachar para o sul outra tropa sob o comando de Domingos José Martins, o que significava que este, como membro da junta, chamaria a si o comando. Suassuna aparentemente resistiu à subordinação, com o que se adotou a fórmula de manter separadas as duas forças, que puderam ser assim mais facilmente vencidas.
Ao proclamar a forma republicana, Dezessete redundava numa derrota das maçonarias portuguesa e fluminense. A insurreição não foi um fenômeno isolado, pois no Rio, na Bahia e em Lisboa as conspirações maçônicas estavam na ordem do dia: em maio de 1817, o governo do reino descobria a conjura de Gomes Freire de Andrade, a ser deflagrada em agosto, a qual hesitava entre manter o Bragança no trono ou substituí-lo pelo ramo Cadaval. Em Salvador, chegou-se a cogitar da criação de cinco reinos no Brasil, segundo a alegação do padre João Ribeiro, autor da proclamação aos baianos feita pelo governo do Recife, que envolveu inclusive o conde dos Arcos, governador da Bahia, acusado de "pretender trair d. João 6º", destruindo "um trono odiado para substituir-lhe milhares de tronos ainda mais aborrecíveis". Segundo Carlos de Alvear, emissário de Buenos Aires no Rio, o plano da maçonaria consistira em compelir d. João 6º a convocar as cortes portuguesas e jurar uma Constituição, na linha, como se vê, do que Gomes Freire de Andrade planejava no reino e do que as lojas do Porto executarão com êxito em 1820. Ocorrera que em Pernambuco os mações republicanos "não só se haviam antecipado, mas não haviam feito a revolução conforme o combinado": "Os mações americanos trataram de enganar os europeus com a idéia de constituição (monárquica), mas seu verdadeiro plano foi e é de constituir-se em república".

Legitimidade do poder
O informante de Alvear, visivelmente português, aduzia que, "se os pernambucanos houvessem seguido debaixo destes princípios, a coisa (o levante no Rio) se levaria a cabo". Diante do fato consumado no Recife, a maçonaria fluminense se havia dividido, "uns a favor, que são geralmente brasileiros, e outros em contra, que são os europeus e muitos brasileiros". O cônsul francês em Lisboa oferecia a mesma versão: a república fora proclamada, mas "diferentes pessoas pretendem aqui que o objetivo deste movimento era de forçar a família reinante a conceder uma nova Constituição e a adotar o sistema representativo".
Os relatos de informantes da coroa precisam os contornos da conjura fluminense em prol da reforma das instituições monárquicas. Sob a chefia do barão de São Lourenço, alvo de graves acusações de peculato, um daqueles "plebeus enricados" a que se refere Oliveira Lima, nobilitado após ser promovido de arrecadador de rendas no Ceará a tesoureiro-mor do reino, da conspiração participariam, entre outros, "três (comerciantes) ingleses dos mais poderosos desta cidade", certo frade pernambucano, pregador da capela real, o pernambucano José Fernandes Gama, tio de Bernardo José da Gama, ouvidor de Sabará (ambos destinados a desempenhar papel de relevo na política da Província), o contador da fazenda no Recife, dois mercadores portugueses da corte e o correspondente de Bento José da Costa, importante homem de negócios daquela praça.
Que se trata do grupo contactado por Alvear, deduz-se da referência ao projeto constitucionalista segundo qual el-rei teria seus poderes reduzidos e da referência a que os sectários "têm dado urros por ver não terem conseguido o seu plano" na esteira da insurreição pernambucana. Bernardo José da Gama será um dos cabeças da deposição da junta de Gervásio Pires Ferreira em 1822, composta de ex-revolucionários de Dezessete e suspeita assim de segundas intenções republicanas.
Sob as influências inglesa ou francesa, a maçonaria lusitana nunca tivera veleidades republicanas ou democráticas, para o que contribuíra incisivamente sua composição, caracterizada pela predominância de militares e sacerdotes. Como escreveu Oliveira Marques, "muitos desses oficiais do Exército e da Marinha -já que era mínimo o número de sargentos e outros inferiores-pertenciam à nobreza, até mesmo à alta nobreza, ainda o núcleo social de base da instituição militar". Se o comércio, a magistratura, o funcionalismo público, as profissões liberais também se faziam representar, sua participação agregada não ia a mais de 30%. Daí que, "ao contrário do que se passava em França, a maçonaria portuguesa discriminava em termos sociais, surgindo como uma união entre nobreza, clero e burguesia, e não como uma sociedade 100% democrática, a todos aberta".
Mesmo durante a ocupação francesa, ela continuara fiel aos Braganças, embora começasse "a insistir-se cada vez mais na legitimidade do poder político, única a que o maçon era obrigado, e a contestar-se, cada vez mais também, a legitimidade do poder político dos Estados absolutistas despóticos". "Sem nunca atingir a instituição monárquica nem a figura do príncipe governante -pelo menos até 1820-, grande número de maçons passou a defender uma fórmula de governo representativo que "restabelecesse" a legitimidade política", tendência que, aliás, se acentuará a partir do fracasso da conjura de Gomes Freire.
Abalada pelo fim do monopólio colonial, a burguesia mercantil convertia-se à idéia de constitucionalizar a monarquia como única maneira de garantir a defesa dos seus interesses diante do predomínio comercial e militar da Grã-Bretanha e à indiferença da corte do Rio pelas dificuldades domésticas de Portugal. O objetivo da Revolução do Porto (1820) e do nacionalismo antibritânico e antibrasileiro que a inspirou será exatamente o de regenerar a monarquia, opção que para Valentim Alexandre "tinha menores custos políticos, indo ao encontro dos mais importantes interesses em jogo".
O dissenso original de Dezessete insinuou-se na sua própria justificação política. Por um lado, o governo provisório invocou o descumprimento pelos Braganças do pretendido pacto com a capitania, segundo o mito constitucional para quem a restauração do domínio português no século 17 tivera a contrapartida de isenções de natureza fiscal e administrativa por parte da coroa. "A idéia (escreverá o desembargador da Alçada) que os rebeldes fizeram ter aos seus chamados patrícios, ignorantes da história, (foi a) de que esta terra, sendo conquistada pelos seus (ante) passados aos holandeses, ficou sendo propriedade sua e que a doaram a El Rei Nosso Senhor, debaixo de condições que ele não tem cumprido". Daí a autoproclamação de Dezessete como "segunda restauração de Pernambuco", fórmula consagrada nos impressos oficiais.
Semelhante noção pressupunha que enquanto os colonos pernambucanos eram "vassalos políticos", os das demais regiões brasileiras eram apenas "vassalos naturais". Por outro lado, a carta pastoral do deão da Sé de Olinda, o dr. Portugal, que resume o alegado estatuto na linguagem do "contrato social", aduzia ao argumento da ruptura do pacto entre Pernambuco e a coroa o argumento da ruptura do próprio pacto constitutivo da nação portuguesa, vale dizer, as pretendidas leis das cortes de Lamego, o que detona uma concepção que, ao invés do regionalismo da anterior, era coextensiva ao Brasil e ao Reino Unido.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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