São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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A MÁQUINA DO MUNDO


"Newton - Textos, Antecedentes, Comentários", que está saindo no Brasil, reúne os principais estudos do físico inglês sobre temas como filosofia natural, alquimia e teologia


Caetano Ernesto Plastino
especial para a Folha

A revolução intelectual produzida pelas realizações de cientistas como Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Isaac Newton (1642-1727) representa uma das maiores conquistas do espírito humano. Dela resultou uma profunda transformação na maneira de conceber o mundo e também uma orientação totalmente diferente na busca da verdade científica. Mais do que isso, ela significou "a afirmação da razão por si mesma", como disse Ernst Cassirer.
Com o nascimento da ciência moderna, desintegrou-se a concepção geocêntrica do mundo, característica do pensamento antigo e medieval. Tornou-se possível reconhecer que a Terra gira em torno de seu próprio eixo e ao redor do Sol, que esses movimentos são compatíveis com os eventos que ocorrem na superfície da Terra, que as leis da mecânica aplicam-se igualmente aos fenômenos terrestres e celestes.
Mas, se no mundo das coisas materiais o homem deixou de ocupar um lugar central, no mundo dos conhecimentos ele se tornou a referência de tudo o que se pode saber. Tudo o que podemos conhecer tem como fundamento último a sabedoria humana, que -conforme Descartes- permanece una, idêntica e universal, por mais diferentes que possam parecer os objetos que ilumina. A ciência consiste por inteiro naquilo que o espírito humano conhece, sem depender de nenhuma autoridade exterior.
Assim, somente as nossas próprias faculdades cognitivas, quando corretamente utilizadas, podem conduzir à apreensão das leis fundamentais que governam todos os movimentos dos corpos. E os instrumentos forjados para essa investigação científica são a análise matemática e o método experimental. Nem os ensinamentos da tradição escolástica nem a revelação divina constituem uma via para chegar a essa nova ciência.
O longo e árduo processo de formação da ciência moderna nos séculos 16 e 17 culminou com as notáveis descobertas de Newton, que simbolizaram o triunfo de um paradigma científico capaz de revelar, de forma clara e exata, "a mais bela estrutura do sistema do mundo".
Partindo do estudo de diferentes tipos de movimento, Newton procurou determinar as forças da natureza exigidas para produzi-los. Nessa pesquisa, foi de fundamental importância sua argumentação para estabelecer a lei da gravitação universal, que permitiu explicar, com grande aproximação, fenômenos tão diversos como a queda livre dos corpos (com aceleração constante), as oscilações do pêndulo, as trajetórias dos projéteis, o movimento das marés (causado pela atração gravitacional da Lua e do Sol), as órbitas elípticas dos planetas e cometas etc.
Desse modo, questões que antes eram tratadas separadamente se mostraram intimamente relacionadas, dentro de um mesmo sistema físico. E o notável êxito desse empreendimento fortaleceu cada vez mais a convicção de que o Universo inteiro pode ser definitivamente compreendido nos termos dos princípios matemáticos formulados por Newton.
Devem-se também a Newton muitas contribuições no campo da óptica, como a teoria das cores, os experimentos com prismas e com os anéis, a invenção do telescópio de reflexão etc.
Na matemática, o brilhante talento de Newton manifestou-se com toda a sua intensidade. Destaca-se especialmente a construção do método das fluxões (ou cálculo infinitesimal), que lhe permitiu "lidar com corpos em movimento não uniforme de maneiras que eram impossíveis na geometria clássica".
Além de suas extraordinárias pesquisas nos campos da física e da matemática, Newton interessou-se profundamente por vários outros assuntos. Escreveu milhões de palavras sobre teologia, embora apenas uma pequena parte tenha sido publicada. Examinou a relação de Deus com o Universo físico, interpretou profecias bíblicas, aderiu ao arianismo e revisou cronologias antigas. Também sentiu-se atraído pela alquimia, em suas indagações sobre a unidade e a transmutabilidade da matéria.
Com o propósito de apresentar ao leitor uma visão compreensiva de diversos aspectos da imensa produção intelectual de Newton, "Newton - Textos, Antecedentes, Comentários" traz uma criteriosa seleção de seus escritos mais significativos, acompanhada de introduções e estudos críticos altamente esclarecedores, organizados por dois dos maiores especialistas no assunto. Os comentários são de autoria de consagrados historiadores da ciência como A. Koyré, A. Rupert Hall e D.T. Whiteside, entre outros.
As questões metodológicas também foram objeto de sua reflexão sobre a ciência. Segundo Newton, "devemos buscar as proposições inferidas por indução geral a partir dos fenômenos", e não por meio de especulações hipotéticas. É enfático seu pronunciamento a esse respeito: "Não invento hipóteses", sejam elas metafísicas ou físicas, de qualidades ocultas ou mecânicas.
A argumentação indutiva não é uma demonstração de conclusões gerais e está sujeita a exceções reveladas pelos fenômenos constatados, mas "ainda assim é o melhor caminho de argumentação que a natureza das coisas admite, e pode ser considerada tanto mais forte quanto mais geral é a indução". Em vez de presumir hipóteses sem nenhuma comprovação experimental, é preciso consultar a própria natureza, realizar experimentos bem planejados e a partir daí investigar as causas que engendram os efeitos.
Mas para Newton a tarefa da ciência não se resume a satisfazer nossa curiosidade ou gerar benefícios materiais. O aperfeiçoamento da ciência em virtude da utilização desse método permitirá também "alargar os limites da filosofia moral", pois, nessa busca das causas a partir dos efeitos, nos aproximamos da causa primeira, "que certamente não é mecânica".
Embora cada passo verdadeiro da ciência "não nos conduza imediatamente ao conhecimento da causa primeira, ele nos aproxima dela e por essa razão deve ser sumamente valorizado". E até onde podemos saber pela ciência o que é o Criador, "que poder Ele tem sobre nós e que benefícios recebemos d'Ele, ficará evidente para nós, pela luz da natureza, até onde vai o nosso dever para com Ele e o nosso dever uns para com os outros".
Em cada tema em que tocou, Newton imprimiu sua incomparável força criadora, digna da admiração de Einstein: "Numa só pessoa, ele combinou o experimentador, o teórico, o mecânico e, não menos importante, o artista que expõe sua obra. Forte, seguro e solitário, ergue-se ele diante de nós: sua alegria na criação e sua precisão minuciosa evidenciam-se em cada palavra e em cada figura". Com a publicação desta notável coletânea, dispomos agora de um guia seguro para explorar esse maravilhoso mundo de Newton.


Caetano Ernesto Plastino é professor do departamento de filosofia da USP.


Newton - Textos, Antecedentes, Comentários
524 págs., R$ 48,00 Richard Westfall e Bernard Cohen (orgs.).
Tradução de Vera Ribeiro.
Eduerj/Contraponto (caixa postal 56.066, RJ,
CEP 22292-970, tel. 0/xx/ 21/ 2544-0206).



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