São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Ponto de fuga

Trem fantasma

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

As bienais se assemelham cada vez mais a parques de diversão. É assim também em Veneza, neste ano. Provocações não abalam mais ninguém. Ironias, lições "críticas", deixaram de ser levadas a sério. Resta a brincadeira, em tom intelectual. Por exemplo: o visitante é convidado a se deitar num pedestal e fingir de morto. Antes, escolheu um trecho de música, dos milhões que existem na internet: aquele de sua preferência para ser tocado em seu futuro e autêntico funeral. Fica ali, exposto como obra, por alguns minutos, vivendo sua morte.
A invenção, de um grupo inglês, se chama "Swansong (Schwanengesang)", ou seja, o canto do cisne. "Formalmente, com "Swansong (Schwanengesang)" queremos inverter a dinâmica espectador/objeto de arte (...). Público, artista, colaboração; vida e morte, o visual, o aural, a performance são quebrados e recombinados. (...) Com "Swansong (Schwanengesang)", o centro de atenção funciona como um pseudópode chegando de modo incerto em Veneza, com o lembrete que você deve morrer."
A palavra pseudópode tem uma definição esdrúxula para qualquer mortal comum: "Extensões fluidas do citoplasma de seres unicelulares, especialmente daqueles do filo protista dos rizópodes, utilizadas para a alimentação e a locomoção". (Houaiss). Passa-se assim, naquela explicação oficial, de uma banalidade pretensiosa e patética (a inversão da dinâmica, o esfacelamento e a reconstrução do "visual, aural, performance") à erudição obscura e incompreensível. É o tom característico dos textos-bula rituais, cabalísticos, sempre anexados às obras de arte contemporâneas.

Abraxas
A bula de "Swansong" se aparenta à fórmula mágica: pressupõe-se que o público se impressione com o que não compreende (o que às vezes é verdadeiro) e que engula trivialidades se vierem apresentadas em tom profundo. Seria bem mais simples declarar: isto é apenas um jogo, um brinquedo sem grandes conseqüências. Mas significaria então renunciar à nobreza elevada da arte, nobreza e arte que, de modo paradoxal, a modernidade quis tantas vezes assassinar.

Playground
Um crocodilo de pé, que assiste a uma televisão; dois barquinhos que piscam faróis, um para o outro, num hangar; um hipopótamo escarrapachado, tamanho natural, em lama; um atleta que faz ginástica diante dos Rubens do Museu do Louvre: a Bienal de Veneza deste ano mostra coisas bem divertidas. Está ainda por ser feita uma reflexão (assumida) sobre arte como brincadeira nas mostras de vanguarda. Essa é, provavelmente, a tendência mais forte dos artistas contemporâneos, pelo menos daqueles que freqüentam as bienais.
As intenções conceituais, os motivos de inspiração podem ser graves, sérios, profundos, angustiados e o que mais se queira. Resulta, porém, no brinquedo. Que não é antiarte, que não é subversivo, que não escandaliza nem abala ninguém, cujas ironias e intenções críticas são irrisórias, porque inevitavelmente superficiais e limitadas. Da arte como um jogo (intelectual, sofisticado que seja) pode brotar mais coisas do que sonha nossa vã teoria. Nenhuma bienal se assumiu até agora como parque de diversões. Já era tempo que o fizessem, plenamente e sem falsos pudores.

Matinê
As bienais têm trazido um número cada vez maior de obras-vídeo; é assim, hoje, na de Veneza. Precisam, quase sempre, de salinhas escuras. São projeções que entulham bastante, pois cortam o ritmo da visita. Ver uma obra exposta e ver um vídeo são práticas que demandam tempos de naturezas muito diferentes. Há desconforto em passar da apreciação de objetos, instalações, pinturas etc. para as pausas necessárias, muitas vezes bastante longas dessas sessões. Sem contar que um visitante escrupuloso o bastante para vê-las todas por inteiro teria que prolongar sua visita mais do que o plausível, sofrendo muito nas saletas mal adaptadas, em condições técnicas nem sempre boas. Deixando qualquer argumentação teórica de lado, esses filminhos seriam muito mais coerentes em seqüência, num cinema ou num único auditório, como têm feito alguns festivais.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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