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Ponto de fuga
Trem fantasma
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
As bienais se assemelham cada vez
mais a parques de diversão. É assim também em Veneza, neste ano.
Provocações não abalam mais ninguém. Ironias, lições "críticas", deixaram
de ser levadas a sério. Resta a brincadeira,
em tom intelectual. Por exemplo: o visitante é convidado a se deitar num pedestal e
fingir de morto. Antes, escolheu um trecho
de música, dos milhões que existem na internet: aquele de sua preferência para ser
tocado em seu futuro e autêntico funeral.
Fica ali, exposto como obra, por alguns minutos, vivendo sua morte.
A invenção, de um grupo inglês, se chama
"Swansong (Schwanengesang)", ou seja, o
canto do cisne. "Formalmente, com "Swansong (Schwanengesang)" queremos inverter a dinâmica espectador/objeto de arte
(...). Público, artista, colaboração; vida e
morte, o visual, o aural, a performance são
quebrados e recombinados. (...) Com
"Swansong (Schwanengesang)", o centro de
atenção funciona como um pseudópode
chegando de modo incerto em Veneza,
com o lembrete que você deve morrer."
A palavra pseudópode tem uma definição esdrúxula para qualquer mortal comum: "Extensões fluidas do citoplasma de
seres unicelulares, especialmente daqueles
do filo protista dos rizópodes, utilizadas para a alimentação e a locomoção".
(Houaiss). Passa-se assim, naquela explicação oficial, de uma banalidade pretensiosa
e patética (a inversão da dinâmica, o esfacelamento e a reconstrução do "visual, aural,
performance") à erudição obscura e incompreensível. É o tom característico dos
textos-bula rituais, cabalísticos, sempre
anexados às obras de arte contemporâneas.
Abraxas
A bula de "Swansong" se aparenta à fórmula mágica: pressupõe-se que o público
se impressione com o que não compreende
(o que às vezes é verdadeiro) e que engula
trivialidades se vierem apresentadas em
tom profundo. Seria bem mais simples declarar: isto é apenas um jogo, um brinquedo sem grandes conseqüências. Mas significaria então renunciar à nobreza elevada
da arte, nobreza e arte que, de modo paradoxal, a modernidade quis tantas vezes assassinar.
Playground
Um crocodilo de pé, que assiste a uma televisão; dois barquinhos que piscam faróis,
um para o outro, num hangar; um hipopótamo escarrapachado, tamanho natural,
em lama; um atleta que faz ginástica diante
dos Rubens do Museu do Louvre: a Bienal
de Veneza deste ano mostra coisas bem divertidas. Está ainda por ser feita uma reflexão (assumida) sobre arte como brincadeira nas mostras de vanguarda. Essa é, provavelmente, a tendência mais forte dos artistas contemporâneos, pelo menos daqueles
que freqüentam as bienais.
As intenções conceituais, os motivos de
inspiração podem ser graves, sérios, profundos, angustiados e o que mais se queira.
Resulta, porém, no brinquedo. Que não é
antiarte, que não é subversivo, que não escandaliza nem abala ninguém, cujas ironias
e intenções críticas são irrisórias, porque
inevitavelmente superficiais e limitadas. Da
arte como um jogo (intelectual, sofisticado
que seja) pode brotar mais coisas do que
sonha nossa vã teoria. Nenhuma bienal se
assumiu até agora como parque de diversões. Já era tempo que o fizessem, plenamente e sem falsos pudores.
Matinê
As bienais têm trazido um número cada
vez maior de obras-vídeo; é assim, hoje, na
de Veneza. Precisam, quase sempre, de salinhas escuras. São projeções que entulham
bastante, pois cortam o ritmo da visita. Ver
uma obra exposta e ver um vídeo são práticas que demandam tempos de naturezas
muito diferentes. Há desconforto em passar da apreciação de objetos, instalações,
pinturas etc. para as pausas necessárias,
muitas vezes bastante longas dessas sessões. Sem contar que um visitante escrupuloso o bastante para vê-las todas por inteiro
teria que prolongar sua visita mais do que o
plausível, sofrendo muito nas saletas mal
adaptadas, em condições técnicas nem
sempre boas. Deixando qualquer argumentação teórica de lado, esses filminhos
seriam muito mais coerentes em seqüência, num cinema ou num único auditório,
como têm feito alguns festivais.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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