São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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UMA NAÇÃO DE INVEJOSOS

A política -e o PT no poder- reproduz o modelo de relação social vigente no Brasil, em que a classe média e os pobres fazem das elites objeto de desejo e padrão último da sociedade brasileira

JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ideal da República foi novamente para o brejo, como tem sempre ocorrido na moderna história brasileira. A descontinuidade virtuosa era a tarefa do PT, que escolheu não promovê-la. No entanto a história se repete aqui como farsa, pois a tragédia já aconteceu há muito tempo, no século 16, nos séculos 19 e 20, como se queira interpretar isso.
Concordo com Chico Buarque quando nos diz que "a alma do país está ferida", pois fomos todos enganados e relançados no triste enredo da brasilidade.
Qual é esse enredo? Os partidos são a reunião de interesses duvidosos, por isso mesmo a corrupção corre à solta. Mas não é um acaso que sejam legendas de aluguel, pelas quais os políticos se elegem e podem migrar depois para onde quiserem, se seus interesses não forem atendidos. O que importa para aqueles e estes é de que maneira podem melhor se aproveitar da "res-pública" para seus interesses privados. Ou seja, ser amigo do "príncipe" é a sua lógica, pois é por este viés que o capital político se transmuta infalivelmente em capital econômico.
Aqui está: essa estrutura da sociedade política é isomorfa ao que se passa na sociedade civil. Nesta, com efeito, certos segmentos das classes médias almejam ser íntimas das elites, não apenas para usufruírem de suas benesses e serem os seus cortesãos como também para se transformarem, quem sabe, em elites no futuro, se pintar uma boa "boca". Trata-se então de uma relação promíscua e até mesmo, às vezes, incestuosa. É esse o ethos de nossas classes médias, que não prezam a sua condição social e não podem assim acumular qualquer capital simbólico.
O mesmo se realiza também com certos segmentos das classes populares, em relação agora às classes médias, numa busca frenética pela ascensão social. É neste contexto que a "classe operária" vai ao paraíso, como no filme do italiano Elio Petri. Os fundos de pensão se tornaram uma nova fonte de acumulação de capital, de forma a transformarem a densidade ética e política das classes trabalhadoras, como nos disse o sociólogo Francisco de Oliveira na sua crítica do projeto do PT e do governo Lula.
Evidencia-se assim uma porosidade preocupante das classes e segmentos sociais no Brasil, no sentido sempre vertical -as elites se tornam o objeto de desejo e padrão último da sociedade brasileira. Não é um acaso que os signos do status, que se destacaram na nova temporada da corrupção, sejam os vinhos importados, os charutos Cohiba e o Land Rover.
Pode-se enunciar assim que o discurso radical e raivoso dirigido à elite por aqueles segmentos sociais não tem qualquer consistência ideológica, pois o seu movente é a inveja, no seu sentido mais brutal. Trata-se de mera mise-en-scène, pois o que esses grupos pretendem apenas é ser como as elites.
Todos querem possuir o que [o cineasta espanhol Luis] Buñuel [1900-1983] denominou ironicamente de charme discreto da burguesia. Para isso não é preciso trabalhar para valer, para conquistar efetivamente os signos de competência e de reconhecimento, pois basta conhecer e conviver com as pessoas poderosas, já que assim certamente algum troco vai sobrar para a vassalagem.
Em contrapartida, as elites brasileiras são também decepcionantes. Elas se distinguem claramente das européias e da norte-americana, para quem a ética do trabalho, do mérito e do reconhecimento sempre foram fundamentais. No Brasil, no entanto, a cultura das elites é mero verniz para inglês ver -e não é surpreendente que a televisão brasileira, e a TV Globo em particular, tenha mais importância para a constituição de nossa mentalidade do que qualquer universidade.
É nesses laboratórios de frivolidades que se forjam as versões nativas da "sociedade do espetáculo" (Debors) e da "cultura da performance", nas quais a moral do "como se" se desenvolve largamente. Não é sem razão, portanto, que o problema educacional brasileiro está sempre capenga, numa condição manca que nunca encontra o seu fio de prumo para poder efetivamente caminhar. Da mesma forma, as condições de saúde das populações pobres são sempre precárias, pois a vida destas não vale nada consideradas que são como peças da engrenagem social e, portanto, facilmente substituíveis e descartáveis, num país com excesso de mão-de-obra disponível.

Caso de polícia
A nossa longa tradição escravocrata habituou mal as elites a tratarem grosseiramente as classes populares e médias, com o desprezo de quem se acredita melhor do que os demais. Não é espantoso então que a violência, a delinqüência e a criminalidade, que assumem formas cada vez mais cruéis, constituam hoje a face mais ostensiva do mal-estar brasileiro.
A segurança pública e o medo se transformaram em questões cruciais das metrópoles brasileiras. As soluções dominantes que para isso se propõem são o aumento da repressão policial e a militarização da força pública, que conduzem ao aumento assustador das populações carcerárias. Soluções de chibata e de senzala, então.
Porém a violência, a delinqüência e a criminalidade constituem o positivo da fotografia revelada, cujo negativo é produto do amálgama existente entre a sociedade civil e a sociedade política brasileira. Vale dizer, aquelas nos fornecem as pistas e os rastros para que possamos apreender o que se cristaliza na anatomia terrorífica do enredo da brasilidade, nas suas vísceras. Enfim, o que se inscreve nas margens da sociedade brasileira é o que revela o seu fundamento, numa perspectiva simbólica e genealógica.
Clarice Lispector já não nos dizia, há muito tempo, aliás, que Brasília era uma cidade infestada por ratos? Não devemos nos espantar que os ratos estejam agora efetivamente à solta, nos grandes monumentos do poder político. Assim, quais são os personagens emblemáticos no turbilhão da tragicomédia atual? Sem falar em Roberto Jefferson, Marcos Valério e Delúbio Soares, canastrões já bem conhecidos da cena brasileira, destacam-se agora as figuras de Toninho da Barcelona e de Jeany Mary Corner. O primeiro, um delinqüente condenado a 25 anos de prisão, a segunda, uma cafetina que organizava em hotéis cinco estrelas festins inesquecíveis de Sodoma e Gomorra para os representantes da nação no Congresso Nacional.
São tais ratazanas que vão depor agora nas CPIs, em troca, quem sabe, de delação premiada, para esclarecer o que se passa nos porões malcheirosos da República. Este o enredo tragicômico do mal-estar brasileiro, no qual o mensalão se conjuga no tempo verbal do surubão.


Joel Birman é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


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