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É ISTO UM PAÍS?
O jornalista português João Pereira Coutinho defende que a
afirmação de identidade dos ricos no Brasil funda-se na humilhação dos pobres
A ANTIELITE BRASILEIRA
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É
impossível aterrar em São
Paulo e não visitar a Daslu, esse "shopping-bunker", nas
palavras do jornalista Alcino
Leite Neto. Não fujo à regra e, em
plena Vila Olímpia, o "bunker" se
ergue para mim. Imponente. Prepotente. E tão vulgar que até dói: 20 mil
metros de luxo exclusivo, rodeados
por miséria e desolação.
Entendam: nada tenho contra o
luxo. Contra? Por Deus: uma tarde
em Savile Row [tradicional rua do
centro de Londres que reúne as
principais lojas de roupas masculinas] é a minha ideia de Disneylândia. Gosto do luxo como Carmen
Miranda gostava de sua salada de
frutas. Cometo as minhas loucuras
como qualquer burguês indecente,
decadente, indolente. E Marx que vá
para o inferno: nem só de pão vive o
homem. A matéria sempre foi terrivelmente desinteressante.
Mas a Daslu é diferente. Não é apenas chocante pela sua grotesca vulgaridade. É também a expressão
material de um espírito e de uma atitude: a atitude das "elites" brasileiras
na cara do povo ignaro que as rodeia. Uma atitude de ostentação e,
em certos casos, de humilhação como forma de identidade social.
Compro, logo me afirmo. Humilho,
logo sou.
O fenômeno não se limita a um
shopping. Abrange as relações sociais mais mundanas. Comportamento em restaurantes. Em supermercados. Em pequenas lojas do
centro. No trânsito da cidade, em
trânsito pela cidade. Oscila entre a
náusea e a humilhação perante os
mais pobres. Uma náusea e uma humilhação que aumentam à medida
que a cor da pele escurece. Só falta
mesmo o chicote -em sentido físico, claro, porque psicologicamente,
verbalmente, socialmente, ele já está
lá. Resquícios do colonialismo e da
escravatura? Talvez. Darcy Ribeiro,
por exemplo, explica.
Aliás, não apenas Darcy Ribeiro:
comento minhas impressões com
amigos paulistanos, colegas de ofício
nesse mundo das rotativas, e a idéia
é reforçada. Sim, as "elites" são ostentatórias, prepotentes, grosseiras.
Profundamente racistas. Herdeiras
da mentalidade casa-grande e dispostas a subjugar as senzalas modernas com os vícios dos velhos colonizadores. Entendo. Mas, se me permitem, discordo de um ponto essencial: é um erro olhar para as "elites"
brasileiras como se elas fossem verdadeiras elites. Pelo contrário: as
chamadas "elites" são, na verdade,
antielites. Elas encarnam valores e
perversidades que uma elite, em
sentido clássico, manifestamente repudia e despreza. Convém começar
pelo princípio.
O papel das elites
E começar pelo princípio é começar por Platão, provavelmente o primeiro grande pensador a refletir sobre o papel das elites numa comunidade política. Sim, sei: leituras várias
de Karl Popper acabam por pintar
Platão com cores demoníacas. Um
tirano que, profundamente seduzido por Esparta, sobretudo depois da
derrota de Atenas no Peloponeso,
ergueu um projeto de sociedade utópica, totalitária, onde o rei-filósofo
comanda as massas.
Um pouco de calma. A interpretação de Popper em "A Sociedade
Aberta e seus Inimigos" (Itatiaia) é
apenas uma entre várias. Na verdade, a "República" platônica pode ser
lida, e deve ser lida, em sentido metafórico. "O que é uma comunidade
justa?", perguntava Platão pela boca
de Sócrates, seu mestre. Resposta:
uma comunidade justa é aquela onde os melhores governam com sabedoria. O argumento não é quantitativo. Não existe aqui qualquer conspiração dos poucos para dominar os
muitos.
O primeiro critério é qualitativo:
são os melhores que governam, não
os poucos. E os melhores são aqueles
que, prescindindo de seus interesses
particulares, contribuem para o todo social depois de uma educação
longa e virtuosa. Uma educação que
permite olhar para a Cidade como
realidade coletiva, não como possibilidade de enriquecimento, ou engrandecimento, pessoal.
É preciso limpar as teias de aranha
marxistas: tradicionalmente, falar de
elites pressupõe falar desta particular virtude, ou sentido de virtude,
que tende a dar prioridade ao público sobre o privado. E de onde vem
essa virtude? A virtude nasce de um
sentido de dever para com os outros:
esse "afeto natural" de que falava
Shaftesbury e, depois dele, todos os
herdeiros do Iluminismo escocês.
Somos humanos; logo, tratamos
os outros como humanos. Partilhamos uma natureza comum e essa essencial humanidade é o primeiro
dos nossos deveres. Só isto permite
alimentar virtudes sociais -virtudes de civilidade social que garantem a necessária confiança para que
as gerações presentes possam passar
o seu testemunho às gerações vindouras. Sem essas virtudes, sem essa
confiança, a comunidade política está condenada à desagregação mais
violenta.
Não pensem que essa idéia de virtude "platônica", ou "aristocrática",
decisiva na formação da cultura ocidental, se limitou, apenas, ao período pré-revolucionário, ou seja, anterior à Revolução Francesa de 1789.
Desde logo porque os acontecimentos da Bastilha, contrariamente ao
que afirmam as ortodoxias de esquerda ou de direita, não se fizeram
contra as "elites": fizeram-se contra
uma falsa elite que Luís 14, um século antes, destruíra para sempre.
Em meados do século 17, Luís 14,
ao resolver concentrar o poder em
Versalhes, sobretudo numa máquina burocrática mais moderna (e
mais burguesa), retirava à velha aristocracia o seu papel tradicional, embora mantendo os seus privilégios
fiscais. Na essência, Luís 14 produzia
uma nobreza odiosa e inútil, ou seja,
começava a cavar a sepultura de Luís
16. Em 1789, a França, em rigor, já
não tinha uma elite; tinha uma falsa
elite, tinha uma antielite, que se tornara dispensável.
As virtudes aristocráticas
Alexis de Tocqueville [1805-1859]
percebeu o drama essencial do seu
país: como a ausência de elites credíveis arrastara a França para o abismo. Mas Tocqueville percebeu mais:
percebeu que a nova era democrática, que ele via nascer nos Estados
Unidos e que descreveu em obra célebre, não podia dispensar as velhas
virtudes "aristocráticas" capazes de
fortalecer qualquer ideal republicano. Para que a nova era igualitária
não devorasse a liberdade essencial
dos seres humanos, seria necessário
que os melhores soubessem governar para todos, com sabedoria, humildade e compaixão.
É preciso refazer a tese: o problema do Brasil não está nas suas elites
porque, ironicamente, o Brasil não
tem elites. Tem antielites, incapazes
de pensar o país como espaço comum. Ou, adaptando a linguagem
teórica para a realidade prática, o
Brasil tem uma falsa elite que, em
matéria política, prefere colocar os
interesses particulares e partidários
à frente dos interesses do país. O
preço a pagar é inevitável: quando o
dever cívico se destrói, destrói-se a
confiança e o futuro do Brasil.
Em "O Afeto que se Encerra" (Civilização Brasileira), livro de memórias que Paulo Francis publicou em
1980, o jornalista conta a certa altura
uma viagem de automóvel com Samuel Wainer pela manhã carioca,
depois de uma noite de intenso trabalho. O carro pára no sinal, e ambos contemplam alguns populares
que chutam uma bola de meia. Samuel Wainer, provavelmente dominado pelo cansaço, comenta, em
melancólico suspiro: "Eles querem
tão pouco, e lhes negamos". Mais
importante do que construir "esquemas" ou "paradigmas" de "engenharia social", é necessário começar pelo pouco que é negado. Respeito. Sim, essa palavra antiquada
sem a qual nada existe ou resiste.
João Pereira Coutinho é jornalista português, colunista do jornal "Expresso" e da Folha Online.
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