São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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É ISTO UM PAÍS?

O jornalista português João Pereira Coutinho defende que a afirmação de identidade dos ricos no Brasil funda-se na humilhação dos pobres

A ANTIELITE BRASILEIRA

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É impossível aterrar em São Paulo e não visitar a Daslu, esse "shopping-bunker", nas palavras do jornalista Alcino Leite Neto. Não fujo à regra e, em plena Vila Olímpia, o "bunker" se ergue para mim. Imponente. Prepotente. E tão vulgar que até dói: 20 mil metros de luxo exclusivo, rodeados por miséria e desolação.
Entendam: nada tenho contra o luxo. Contra? Por Deus: uma tarde em Savile Row [tradicional rua do centro de Londres que reúne as principais lojas de roupas masculinas] é a minha ideia de Disneylândia. Gosto do luxo como Carmen Miranda gostava de sua salada de frutas. Cometo as minhas loucuras como qualquer burguês indecente, decadente, indolente. E Marx que vá para o inferno: nem só de pão vive o homem. A matéria sempre foi terrivelmente desinteressante.
Mas a Daslu é diferente. Não é apenas chocante pela sua grotesca vulgaridade. É também a expressão material de um espírito e de uma atitude: a atitude das "elites" brasileiras na cara do povo ignaro que as rodeia. Uma atitude de ostentação e, em certos casos, de humilhação como forma de identidade social. Compro, logo me afirmo. Humilho, logo sou.
O fenômeno não se limita a um shopping. Abrange as relações sociais mais mundanas. Comportamento em restaurantes. Em supermercados. Em pequenas lojas do centro. No trânsito da cidade, em trânsito pela cidade. Oscila entre a náusea e a humilhação perante os mais pobres. Uma náusea e uma humilhação que aumentam à medida que a cor da pele escurece. Só falta mesmo o chicote -em sentido físico, claro, porque psicologicamente, verbalmente, socialmente, ele já está lá. Resquícios do colonialismo e da escravatura? Talvez. Darcy Ribeiro, por exemplo, explica.
Aliás, não apenas Darcy Ribeiro: comento minhas impressões com amigos paulistanos, colegas de ofício nesse mundo das rotativas, e a idéia é reforçada. Sim, as "elites" são ostentatórias, prepotentes, grosseiras. Profundamente racistas. Herdeiras da mentalidade casa-grande e dispostas a subjugar as senzalas modernas com os vícios dos velhos colonizadores. Entendo. Mas, se me permitem, discordo de um ponto essencial: é um erro olhar para as "elites" brasileiras como se elas fossem verdadeiras elites. Pelo contrário: as chamadas "elites" são, na verdade, antielites. Elas encarnam valores e perversidades que uma elite, em sentido clássico, manifestamente repudia e despreza. Convém começar pelo princípio.

O papel das elites
E começar pelo princípio é começar por Platão, provavelmente o primeiro grande pensador a refletir sobre o papel das elites numa comunidade política. Sim, sei: leituras várias de Karl Popper acabam por pintar Platão com cores demoníacas. Um tirano que, profundamente seduzido por Esparta, sobretudo depois da derrota de Atenas no Peloponeso, ergueu um projeto de sociedade utópica, totalitária, onde o rei-filósofo comanda as massas.
Um pouco de calma. A interpretação de Popper em "A Sociedade Aberta e seus Inimigos" (Itatiaia) é apenas uma entre várias. Na verdade, a "República" platônica pode ser lida, e deve ser lida, em sentido metafórico. "O que é uma comunidade justa?", perguntava Platão pela boca de Sócrates, seu mestre. Resposta: uma comunidade justa é aquela onde os melhores governam com sabedoria. O argumento não é quantitativo. Não existe aqui qualquer conspiração dos poucos para dominar os muitos.
O primeiro critério é qualitativo: são os melhores que governam, não os poucos. E os melhores são aqueles que, prescindindo de seus interesses particulares, contribuem para o todo social depois de uma educação longa e virtuosa. Uma educação que permite olhar para a Cidade como realidade coletiva, não como possibilidade de enriquecimento, ou engrandecimento, pessoal.
É preciso limpar as teias de aranha marxistas: tradicionalmente, falar de elites pressupõe falar desta particular virtude, ou sentido de virtude, que tende a dar prioridade ao público sobre o privado. E de onde vem essa virtude? A virtude nasce de um sentido de dever para com os outros: esse "afeto natural" de que falava Shaftesbury e, depois dele, todos os herdeiros do Iluminismo escocês.
Somos humanos; logo, tratamos os outros como humanos. Partilhamos uma natureza comum e essa essencial humanidade é o primeiro dos nossos deveres. Só isto permite alimentar virtudes sociais -virtudes de civilidade social que garantem a necessária confiança para que as gerações presentes possam passar o seu testemunho às gerações vindouras. Sem essas virtudes, sem essa confiança, a comunidade política está condenada à desagregação mais violenta.
Não pensem que essa idéia de virtude "platônica", ou "aristocrática", decisiva na formação da cultura ocidental, se limitou, apenas, ao período pré-revolucionário, ou seja, anterior à Revolução Francesa de 1789. Desde logo porque os acontecimentos da Bastilha, contrariamente ao que afirmam as ortodoxias de esquerda ou de direita, não se fizeram contra as "elites": fizeram-se contra uma falsa elite que Luís 14, um século antes, destruíra para sempre.
Em meados do século 17, Luís 14, ao resolver concentrar o poder em Versalhes, sobretudo numa máquina burocrática mais moderna (e mais burguesa), retirava à velha aristocracia o seu papel tradicional, embora mantendo os seus privilégios fiscais. Na essência, Luís 14 produzia uma nobreza odiosa e inútil, ou seja, começava a cavar a sepultura de Luís 16. Em 1789, a França, em rigor, já não tinha uma elite; tinha uma falsa elite, tinha uma antielite, que se tornara dispensável.

As virtudes aristocráticas
Alexis de Tocqueville [1805-1859] percebeu o drama essencial do seu país: como a ausência de elites credíveis arrastara a França para o abismo. Mas Tocqueville percebeu mais: percebeu que a nova era democrática, que ele via nascer nos Estados Unidos e que descreveu em obra célebre, não podia dispensar as velhas virtudes "aristocráticas" capazes de fortalecer qualquer ideal republicano. Para que a nova era igualitária não devorasse a liberdade essencial dos seres humanos, seria necessário que os melhores soubessem governar para todos, com sabedoria, humildade e compaixão.
É preciso refazer a tese: o problema do Brasil não está nas suas elites porque, ironicamente, o Brasil não tem elites. Tem antielites, incapazes de pensar o país como espaço comum. Ou, adaptando a linguagem teórica para a realidade prática, o Brasil tem uma falsa elite que, em matéria política, prefere colocar os interesses particulares e partidários à frente dos interesses do país. O preço a pagar é inevitável: quando o dever cívico se destrói, destrói-se a confiança e o futuro do Brasil.
Em "O Afeto que se Encerra" (Civilização Brasileira), livro de memórias que Paulo Francis publicou em 1980, o jornalista conta a certa altura uma viagem de automóvel com Samuel Wainer pela manhã carioca, depois de uma noite de intenso trabalho. O carro pára no sinal, e ambos contemplam alguns populares que chutam uma bola de meia. Samuel Wainer, provavelmente dominado pelo cansaço, comenta, em melancólico suspiro: "Eles querem tão pouco, e lhes negamos". Mais importante do que construir "esquemas" ou "paradigmas" de "engenharia social", é necessário começar pelo pouco que é negado. Respeito. Sim, essa palavra antiquada sem a qual nada existe ou resiste.


João Pereira Coutinho é jornalista português, colunista do jornal "Expresso" e da Folha Online.


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