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Do quanto somos (im)perfeitos
Desconfiança generalizada em relação a
a outras pessoas contrasta com o elevado padrão
moral assumido individualmente pelos brasileiros
RENATO LESSA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Acrer em números,
parece ser mais seguro emprestar seu
carro a um amigo filiado ao PMDB do
que a outro pertencente às hostes petistas. Com efeito, 93%
dos respondentes simpáticos
ao PMDB acham moralmente
errado avançar um sinal de
trânsito (ou furar um semáforo, o que vem a ser mais ou menos a mesma coisa). O escore
petista limita-se tão somente a
magros e preocupantes 71%.
Já os apoiantes do PSDB são
os mais tolerantes no que diz
respeito a fornecer dados inverídicos para a Receita Federal.
Isso a despeito -ou a propósito, sabe-se lá- da fúria fiscalista que o consulado de seu partido impôs ao país, no século
passado.
Para além do pitoresco -inevitável em qualquer tentativa
de varredura de atitudes e opiniões em meio à população heteróclita-, há matéria para reflexão. Para já, gostaria de considerar os seguintes aspectos: a
definição conceitual de corrupção, os marcadores de ética e
moralidade, os perfis de admissibilidade quanto a práticas ilícitas e a distinção entre autopercepção e avaliação pública.
O que é corrupção
Para 43% dos respondentes,
o termo refere-se a um conjunto de práticas fixadas na esfera
pública. Para 21%, corrupção
está associada a comportamentos individuais -levar vantagem, traição, deslealdade etc.
Um terceiro conjunto, de 19%,
associa o conceito a "roubar
bens/dinheiro".
Quando questionados a respeito de que instituições concentram com maior ênfase práticas corruptas, os respondentes elegem os poderes Executivo e Legislativo, federal e estaduais. Há, contudo, alguma estratificação nessas respostas.
Quanto maior a escolaridade,
maior a desconfiança institucional: o Poder Executivo federal é mencionado negativamente por 83% dos que possuem educação fundamental;
aqueles com educação superior
marcam 92%. A mesma progressão pode ser encontrada de
acordo com variações da renda
familiar e de classificação econômica.
Variações à parte, é possível
dizer que a desconfiança é pesada e generalizada. Os campeões da pureza, tais como a
Igreja Católica, as Forças Armadas e a imprensa, são julgados como corruptos por, respectivamente, 53%, 54% e 61%
do total dos entrevistados.
Não é pouco. Ainda que algum viés de classe se manifeste
na avaliação dos poderes públicos, a concentração das desconfianças gerais nesse âmbito
parece reeditar o clássico juízo
de Louis-Antoine-Léon Saint-Just: "Qualquer povo tem apenas um inimigo poderoso, e este é o governo".
Marcadores de ética
Os entrevistados foram submetidos a uma bateria de 32
ações hipotéticas condenáveis
[genéricas, acrescidas de cinco
ações de políticos, policiais e
outros servidores] para revelar
a ordem de suas aversões éticas
e morais. O resultado agregado
da simulação é curioso: há um
padrão generalizado de repulsa
às ações hipotéticas, com algumas variações significativas.
Vejamos: os menos educados
e mais pobres demonstram
maior rigorismo moral em todos os quesitos. Trata-se de variação, contudo, que não agride
a sensação de certa homogeneidade.
Há, ainda, marcadores mais
finos. Dois deles podem ser licenciosamente designados como "kantianos". O resultado
não é de todo mau, mas um tanto desequilibrado: 74% concordam com a ideia de obediência
à lei como algo superior ao interesse privado (adeptos de um
imperativo categórico moral).
Já apenas 56% concordam
com o diagnóstico de que as
pessoas estão dispostas a "tirar
vantagens" umas das outras
(ou tomá-las como meios, e não
como fins). O desenho revela
assimetria entre autoavaliação
e avaliação dos outros como sujeitos morais. A destacar, ainda,
os mais velhos e a malta da classe D/E como antropologicamente mais otimistas.
Admissibilidade
Os entrevistados foram convidados a revelar admissibilidade -ou não- com relação a
"práticas ilegítimas". De forma
mais agregada, 83% dos respondentes admitem tê-las cometido, em diferentes escalas
de gravidade (leve, média e pesada).
Trata-se de aspecto importante, pois revela forte adesão
ao "ilegítimo", a despeito das
respostas anteriores dotadas
de maior rigorismo. Nada de
errado com isso: não somos
animais socráticos, para os
quais o conhecimento do bem
conduz necessariamente a seu
cumprimento.
No entanto, há distinções
importantes: quanto maiores
os níveis de educação e de renda familiar e mais elevada a
classificação econômica, maior
a admissibilidade. Para uma
imagem mais nítida, 93% dos
que possuem educação superior admitem envolvimento; o
escore cai para 74% para os que
têm educação fundamental.
E mais: se tomarmos o envolvimento com práticas ilegítimas pesadas, os mais educados
ganham dos menos educados
por uma razão de 2,5; os de
maior renda ganham dos de
menor renda com uma razão de
4 e os de classe A/B ganham dos
D/E por uma razão de 6,5.
Há algo aqui, ressalvada a insinceridade dos mais pobres.
Talvez uma pálida reedição de
velha máxima de San Tiago
Dantas, para horror dos demofóbicos: o povo enquanto povo
é melhor do que a elite enquanto elite.
Assimetrias do mundo
Não ficamos de todo "mal na
fita". Mas há coisas curiosas. O
alto padrão de admissibilidade
evapora-se quando os entrevistados são submetidos a 39 perguntas sobre diversos ilícitos. O
que emerge é uma população
ordeira que, no pior dos casos,
admite delitos leves: contrabando, compra de produtos piratas, colar em provas etc.
É espantoso ver que 94% dos
respondentes jamais ofereceram dinheiro para agentes públicos que, para 87%, jamais o
solicitaram. Assim como Nelson Rodrigues duvidava dos vídeos dos jogos, eu duvido desses números.
Mas, como disse, não ficamos
mal na fita. Há uma generalizada e consistente presença de
marcadores morais e éticos. A
variabilidade não elimina a evidência de que o piso é alto. Cremos saber o que é a corrupção e
onde e quando se apresenta. No
mais, desconfiamos dos outros.
Com efeito, 82% das pessoas
dizem não admitir mudar seu
voto por dinheiro, embora 79%
estejam certas de que os brasileiros em geral estão dispostos
a fazê-lo. É evidente a assimetria, já antes apontada, entre
autoavaliação ética e moral e
expectativa do comportamento
dos demais. Os "demais" -outras pessoas, o governo, os políticos etc.- parecem ser, afinal,
sempre piores. Enfim, somos
falíveis e desconfiados, pero no
assustadores.
RENATO LESSA é professor de teoria e filosofia
política no Iuperj e na Universidade Federal Fluminense e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.
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