São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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O FUTURO DA MORTE

Associated Press
John Rodriguez, presidente da empresa de criônica Trans Time Inc. (Califórnia), num dos tanques utilizados para congelar pessoas após a morte





A tecnologia de congelamento de corpos e outros avanços da pesquisa sobre a vida e sua suspensão impõem um debate ético e jurídico em que a morte pode deixar de ser concebida como um evento para se tornar um processo de reversão indefinida


James J. Hughes
especial para o "Journal of Evolution and Technology"

A tecnologia está problematizando a morte. A tecnologia oferece condições de congelamento entre a vida e a morte que antes só haviam sido consideradas na mitologia, na fantasia ou na filosofia. Até o advento do respirador artificial, a cessação da respiração espontânea levava imediatamente à cessação da circulação e a dano cerebral irreversível. Desde os anos 60, expandimos constantemente as áreas cinzentas entre a vida e a morte, estabilizando uma série de processos no até então inexorável trajeto da vida ao pó. A tecnologia realmente não criou essa área cinzenta, mas a ampliou e a tornou evidente. A morte sempre foi um processo, mais que uma situação binária. Na visão budista ou parfitiana (de Derek Parfit, professor de filosofia da Universidade de Nova York), que eu adoto, não há uma identidade essencial ou real nas coisas. Os limites que traçamos ao redor da "vida" e do "self" são arbitrários, motivados por interesses e objetivos específicos. A vida e o "self" não têm uma realidade essencial que possa ser claramente discernida ou limites que possam ser marcados definitivamente. Há sobretudo uma variedade de processos envolvidos em nascer ou morrer, processos envolvidos na ilusão da identidade contínua do "self". As linhas traçadas têm a ver principalmente com a política, a economia, a cultura e a tecnologia dos que as desenham. Essa foi a posição adotada por Robert Ettinger, em seu manifesto de 1965 do movimento criônico, "The Prospect of Immortality" (A Perspectiva de Imortalidade). Embora ele tenha alegado a natureza ilusória do "self", também sentiu o desejo apaixonado de persistir na ilusão da existência pessoal contínua. Em consequência, propôs congelar o corpo e, mais especificamente, o cérebro das pessoas logo após a morte. Se o congelamento preservasse informações neurológicas críticas da identidade, uma futura tecnologia poderia reparar os tecidos danificados e fazer o congelado reviver. Ettinger e crionistas posteriores afirmaram que os congelados devem ser considerados pacientes vivos à espera de tratamento. Atualmente, cerca de cem "pacientes" estão "suspensos crionicamente" nos EUA, e organizações criônicas estão crescendo na América do Norte e na Europa. Cerca de mil americanos se inscreveram em organizações criônicas para serem suspensos quando morrerem. Angariou-se dinheiro para a construção de uma instalação criônica capaz de conter 900 corpos e/ou cabeças congelados. Os crionistas enfrentam muitos desafios. Governos estaduais e médicos os tratam com desprezo e ironia. O público rejeita o aspecto mórbido dos "mortos-vivos", enquanto muitos cientistas e médicos concluíram que os danos aos tecidos causados pela formação dos cristais de gelo destruiriam células demais, tornando irrecuperáveis o corpo ou o cérebro. Pesquisadores de criônica vêm aperfeiçoando lentamente métodos menos destrutivos de congelamento e substâncias crioprotetoras para preservar o tecido cerebral. Um grande progresso para a aceitação da criônica ocorreu com a publicação em 1986 do plano de nanotecnologia de Eric Drexler, "Engines of Creation" (Motores de Criação). Drexler, que é um crionista, incluiu no texto uma discussão sobre a viabilidade de reparar por meio de nanotecnologia um tecido danificado pelo gelo. Posteriormente, ele e outros destacados defensores da nanotecnologia do Instituto Foresight forneceram sólidas bases científicas para a afirmação de que os congelados por meio das técnicas atuais poderão ser revividos dentro de 30 a 70 anos. A definição de morte está mudando rapidamente com o avanço da tecnologia de manutenção e reparo dos pacientes com lesão cerebral. Os principais teóricos da morte cerebral recentemente concluíram que a iniciativa para definir um padrão final de morte deve ser abandonada em favor de um conjunto de perguntas mais pragmáticas: quando alguém está "suficientemente morto" para interromper o suporte à vida, transplantar órgãos, efetivar testamentos e enterrar o corpo? O avanço da tecnologia de cuidados essenciais também está desafiando a irreversibilidade. As atuais definições de morte cerebral têm como predicado a suposição de que esses pacientes não podem se manter em vida física, mas hoje está demonstrado que isso não é verdade. As tecnologias emergentes para tratamento de danos cerebrais aprofundarão o dilema das atuais leis e práticas sobre a declaração de morte cerebral. As condições antes consideradas como morte passarão a ser reversíveis, exigindo a elaboração de novas leis, definições e práticas relativas à morte.

A erosão da morte
Logo depois da proposta do padrão de morte cerebral (Beecher, 1968), formaram-se grupos para debater quanto o cérebro precisa estar destruído para que um paciente seja declarado morto. Veatch (1975) abriu a discussão dizendo que seres humanos deveriam ser declarados mortos quando tiverem perdido a capacidade de interagir significativamente com os outros humanos. Veatch recebeu o apoio de um pequeno grupo de "neocorticalistas". Esses afirmaram que o limite legal da morte deveria ser o estado de inconsciência permanente, que marca a morte da pessoa.
Em resposta, partidários do "cérebro inteiro" defenderam um padrão que exige a completa morte cerebral. Esse padrão foi posteriormente endossado pela Comissão Presidencial para o Estudo de Problemas Éticos na Medicina e Pesquisa Biomédica e Comportamental, em seu relatório "Defining Death" (Definindo a Morte), de 1981, e inscrito no Decreto de Declaração de Morte, que foi aprovado em 36 Estados norte-americanos.
O debate nas décadas de 70 e 80 deixou claro que a vantagem do padrão do cérebro inteiro não é a coerência ética, mas o pragmatismo. O padrão do cérebro inteiro era mais fácil de operacionalizar, tendia conservadoramente para o lado da vida e foi considerado a mudança mais radical que o público poderia tolerar. A definição de cérebro inteiro foi desde o princípio um compromisso entre os que preferiam uma definição neocortical e os que preferiam a definição somática de morte.
O padrão de cérebro inteiro foi adotado como um compromisso entre os três campos: morte corporal, morte do cérebro inteiro e morte neocortical. O padrão de morte do cérebro inteiro foi apresentado para os neocorticalistas como uma versão conservadora de seu padrão: se o cérebro inteiro estivesse morto, não haveria possibilidade de recuperação da consciência. Para os defensores da morte corporal, afirmou-se que a morte do cérebro inteiro destrói processos autônomos e conduz inexoravelmente à cessação da respiração e da circulação: a morte do cérebro inteiro seria simplesmente uma extensão do padrão anterior.
Na década de 90, porém, houve uma erosão da posição do cérebro inteiro, ao menos nos círculos em que é debatida. A erosão derivou de uma variedade de problemas crescentes. Um desafio foi o conceito de reversibilidade como critério para a morte. Durante décadas ficou claro que alguns pacientes foram declarados mortos porque eles, seus responsáveis e seus médicos não queriam revivê-los, mesmo quando poderiam ter sido ressuscitados. Essa admissão foi codificada na "Ordem de Não Ressuscitar" (DNR, na abreviação em inglês).
Os cirurgiões da Universidade de Pittsburgh deram o próximo passo lógico. Em 1992, o centro médico dessa universidade aprovou uma diretriz permitindo que os pacientes com doenças terminais ou lesões cerebrais fossem inscritos para se tornar "doadores sem batimento cardíaco" (NHBDs, na sigla em inglês), caso suas doenças permitissem o uso de seus órgãos. Os pacientes não preenchem o critério de morte cerebral, mas têm danos cerebrais que os tornam dependentes de ventilação. O procedimento é colocá-los num ambiente cirúrgico, desligar o respirador, esperar dois minutos e então iniciar os procedimentos para preservar e remover seus órgãos. Assim como na DNR, a morte não é declarada porque é tecnicamente irreversível, mas porque se decide não revertê-la.


O desenvolvimento de dispositivos de informática que empregam materiais biológicos e de programas de software desenvolvidos sobre modelos biológicos sugere futuras convergências entre computação orgânica, software de redes neurais e interfaces entre o sistema nervoso humano e o computador


O procedimento NHBD se disseminou por dezenas de outros hospitais, e houve grande debate sobre sua aceitabilidade ética. Em resposta, alguns céticos importantes mudaram para a posição de que a morte se tornara irrelevante. Notadamente os bioéticos Robert Arnold e Stuart Youngner (1993) afirmaram que a regra do doador morto deveria ser abandonada. Wikler (1988), por exemplo, indica a circularidade de definir esses corpos como "mortos" cujo tratamento desejamos suspender, e então suspender o tratamento dos "mortos". O protocolo de Pittsburgh amplia a atual definição de morte porque os órgãos vitais só são retirados de doadores mortos com permissão, e não temos autorização para "matar" um paciente para salvar outro. Linda Emanuel (1995), da Associação Médica Americana, propôs que a lei seja redefinida para reconhecer uma "zona de morte" entre a inconsciência permanente e a cessação da respiração. Dentro dessa zona seria permitido que as pessoas estabelecessem suas próprias definições de morte, admitindo a suspensão do tratamento e a remoção de órgãos até a inconsciência permanente. Ninguém deve sofrer eutanásia se estiver acima dessa zona, e ninguém deve ser enterrado ou cremado antes de parar de respirar. Outra linha desafiadora para a posição do cérebro inteiro veio dos defensores do padrão de morte da circulação e da respiração. Por exemplo, Alan Shewmon (1998), neurologista na Universidade da Califórnia em Los Angeles, demonstrou que alguns pacientes sobrevivem mais de dez anos depois de ter diagnosticada a "morte cerebral". A pesquisa de Shewmon demonstra que não há nada essencial no cérebro para a regulação e a manutenção do corpo. Os defensores do cérebro inteiro afirmam que esse padrão estaria intimamente ligado à morte somática, já que a morte do cérebro inteiro levaria inevitavelmente à morte somática. Já se revelou que essa ligação é enganosa. Se a separação do cérebro de sua função na integridade somática fosse equivalente à morte, diz Shewmon, condições como "transecção da junção cérvico-medular mais vagotomia", com a completa separação do cérebro da coluna vertebral, também seria equivalente à morte, embora o paciente permaneça consciente e o corpo continue funcionando. Tecnologias emergentes de tratamento neurológico logo provocarão uma crise total do infeliz padrão de morte do cérebro inteiro. Pesquisas com células-tronco demonstraram que o cérebro tem a capacidade de gerar novas células pluripotentes para reparar danos cerebrais, e que essas células migram para as áreas danificadas, assumindo as funções necessárias. Vetores adenovirais têm sido usados com sucesso para introduzir fatores de crescimento de nervos e estimular esse crescimento em áreas lesionadas. Pesquisas conseguiram bloquear cadeias químicas que em geral suprimem a regeneração de neurônios no sistema nervoso central. Dentro de uma década, deveremos ver próteses neurais capazes de assumir as funções de tecidos neurais danificados. O desenvolvimento de dispositivos de informática usando materiais biológicos e de software desenvolvido sobre modelos biológicos sugere futuras convergências entre computação orgânica, software de redes neurais e interfaces entre o sistema nervoso e o computador. No futuro, vítimas de lesões neurológicas devastadoras, que antes seriam declaradas sem esperança ou mortas, serão vistas como pacientes potencialmente vivos que merecem uma tentativa de terapia reparadora, a menos que partes do cérebro com estruturas críticas de identidade estejam comprovadamente destruídas. Se a restauração fracassar, o paciente poderá então ser deixado para morrer.

Além do antropocentrismo
Em junho de 1999, o Escritório de Patentes dos EUA recusou uma patente para um híbrido de humano e animal, ou "quimera", que havia sido apresentada pelo ativista antibiotecnologia Jeremy Rifkin. Ao recusar a patente, o departamento admitiu que, embora tenha permitido extenso patenteamento de formas de vida criadas pela biotecnologia e de DNA humano, a 13ª emenda constitucional proíbe a propriedade de seres humanos e, portanto, seu patenteamento. Como a Suprema Corte, o Congresso e o Escritório de Patentes nunca definiram o que é um ser humano, rejeitaram a patente de um meio-humano/meio-animal transgênico, que consideraram estar próximo demais dessa fronteira.
Na próxima década, os transgênicos obrigarão os EUA e o mundo a definirem o que é humano. Se não na primeira tentativa, e trabalhando a partir de princípios democráticos e liberais, a definição de humano deverá enfocar as capacidades cognitivas, a subjetividade e a autoconsciência como base da cidadania, em vez dos limites das espécies, enganosos e em via de desaparecer.
Por exemplo, o filósofo bioético Peter Singer e um grupo internacional de ativistas organizaram o Projeto Primata Superior. Sua proposta é que devemos ampliar os limites dos direitos primeiramente e de forma extensiva aos primatas superiores, já que há fortes evidências de que eles compartilham nossas capacidades de autoconsciência. Eles afirmam que esses macacos devem ter os mesmos direitos que as crianças humanas: não devemos permitir que crianças e macacos sejam mortos, torturados ou presos. A pedido do projeto, a Nova Zelândia proibiu experimentos médicos com esses animais. Singer (1990) estendeu o argumento a uma crítica da pecuária industrial, afirmando que bebês humanos e gado doméstico têm mais ou menos as mesmas capacidades mentais e, portanto, deveriam ser tratados igualmente, de acordo com a lei.
Parece improvável que o consumo de carne seja proibido num futuro próximo, ou que tenhamos permissão para comer bebês. Mas parece provável que a tendência a aumentar a proteção dos interesses dos animais continue. De modo similar, a biotecnologia continuará criando vários tipos de quimera e fazendo experimentos com o aperfeiçoamento da inteligência dos animais, forçando a concepção de uma ética centrada na consciência a suplantar o antropocentrismo. Os primeiros animais de cognição aperfeiçoada que se expressarem de maneira clara causarão mudança drástica no pensamento sobre os direitos das coisas vivas.
Essas mudanças não ocorrerão facilmente e serão uma das divisões políticas fundamentais nos próximos anos, entre biofundamentalismo e transumanismo. De um lado, os biofundamentalistas insistirão nos direitos de todos os seres humanos, conscientes ou não, e tentarão banir as tecnologias reprodutivas, a eliminação, pela transgênese, dos limites entre as espécies e a relativização da definição de morte. Por outro lado, a emergente visão de mundo transumanista abrangerá a transgressão tecnológica e manterá o foco nas capacidades cognitivas de várias formas de vida. Em outras palavras, os transumanistas serão os agentes dessa elucidação final da lei e da ética liberal-democráticas. A controvérsia que hoje gira em torno da coerente ética utilitária da vida de Peter Singer é uma amostra das futuras lutas. A aplicação liberal de um padrão de direitos com base na consciência poderá permitir certas consequências que muitos consideram "repulsivas", como a criação de clones sem cabeça para transplantes, a eutanásia de recém-nascidos e dos gravemente dementes e mais direitos para alguns animais do que para alguns humanos, como propõe Singer. Mas os benefícios tangíveis do novo padrão, ainda mais do que sua coerência com o pensamento ocidental, oferecerão enormes incentivos para sua adoção. Poucos dentre nós estarão dispostos a recusar os potenciais benefícios da ciência médica com base em um terreno "moral" incoerente, com base na repulsa.

Mortos cerebrais e congelados
Se um padrão ético com base na consciência fosse institucionalizado nas próximas décadas, é improvável que tivesse um impacto imediato sobre as pessoas preservadas crionicamente. Em 1965, Ettinger argumentou que os congelados devem ser classificados como cidadãos vivos: "Os congelados serão proprietários e contribuintes". De modo similar, a maior organização criônica do mundo, Alcor, afirma que os pacientes criônicos devem ser considerados vivos por seu potencial de renascimento.
Stephen Bridge e a Alcor resumiram as vantagens e desvantagens jurídicas de o paciente criônico ser considerado morto ou vivo. Se o crionauta está morto, pode legalmente doar seu corpo à Alcor para armazenamento sob leis que regem as doações anatômicas. Mas poderia decidir ser "tratado" na Alcor se fosse considerado vivo. Se o crionauta estiver morto, pode usar apólices de seguro de vida para custear a suspensão e mecanismos estatais para deixar dinheiro para se manter em criostase e se sustentar após a reanimação. Se estivesse "vivo", também poderia deixar seu dinheiro num fundo.



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