São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ ensaio

Ao atingirem as torres do World Trade Center, terroristas souberam se ajustar à sociedade do espetáculo e encurralaram os EUA em uma contradição

A estratégia das imagens

Stella Senra
especial para a Folha


TODA IMAGEM DESSES HOMENS, MULHERES E CRIANÇAS É UM LIBELO CONTRA A "VONTADE DE FERRO" NORTE-AMERICANA: O MENINO MONTADO NO BURRINHO, O CHÃO DE TERRA SECA, OS TANQUES OBSOLETOS AO FUNDO DEIXAM À MOSTRA O CARÁTER INGLÓRIO DA INVASÃO MILITAR; A DESPROPORÇÃO ENTRE O TAMANHO DO MÍSSIL E O DO HOMEM A SEU LADO ATESTA A REDUÇÃO DA DIMENSÃO HUMANA DIANTE DO APARATO BÉLICO


Se as imagens foram um componente fundamental dos atos terroristas de 11 de setembro, se, tanto quanto os aviões, elas constituíram uma arma decisiva na estratégia de disseminação do horror, no campo oposto a convicção de que elas potencializariam a força do inimigo vem dando lugar a uma espécie de horror das imagens, ao controle, não menos inquietante, da sua produção e circulação.
Sabemos que as fotos das vítimas dos ataques foram banidas e que é impossível mostrar as vítimas dos bombardeios no Afeganistão; quando Bin Laden surgiu na TV Al Jazeera, foram barradas as imagens geradas fora da esfera de controle americano, cerco mais fechado com a compra, pelo Exército dos Estados Unidos, dos direitos exclusivos sobre as imagens comerciais feitas por satélites no território afegão.
Os americanos sempre mostraram grande facilidade em lidar com as imagens -Hollywood é a maior prova disso-, donde sua destreza em incorporá-las ao seu aparato bélico e em brandi-las na propaganda de guerra; basta lembrar a Guerra do Golfo, quando o país elevou sua política de gestão das imagens a um novo patamar. Se, no conflito atual, há um recrudescimento da luta no campo das imagens, é porque o inimigo mostra agora, sem limites, igual perícia no seu manejo. Ele não dispõe de alta tecnologia nem de mídia, mas foi certeiro no seu golpe publicitário e acabou acuando o adversário num terreno que parecia, até então, lhe pertencer. Não por acaso o comentário mais comum aos atentados se referia justamente às imagens, de Hollywood. "Parecia um filme", dizia-se, como se a melhor maneira de apreender o caráter monstruoso da realidade passasse pela experiência que a ficção cinematográfica propiciou. Se graças aos sonhos de Hollywood tínhamos a sensação de já ter "provado" tamanho horror, a ação terrorista tinha tornado o sonho dos americanos realidade. Se para Paul Virilio o cinema previu a estética da nova guerra, não podemos ignorar a diabólica ironia dos idealizadores do atentado, ao devolverem aos EUA, no plano da realidade, a sua mais prestigiada ficção. Vivemos superexpostos às imagens, e a estratégia dos atentados disso se valeu ao propor uma ação eloquente, mas passível de ser captada numa única imagem, simples, quase gráfica: duas torres verticais; dois aviões em vôo horizontal; dois choques; duas explosões; dois desabamentos. Uma imagem tão perfeita para a disseminação midiática que se tornaria uma espécie de vinheta da ação terrorista. Quem concebeu esse dispositivo sabia como adequar sua ação à sociedade do espetáculo e como encurralar a reação americana numa contradição: o país que mais ardentemente contribuiu para a fundação do império das imagens era relegado a uma nova espécie de fundamentalismo, que põe sob suspeita as imagens que ele mesmo não fabricou. Essa habilidade em acuar o inimigo no terreno onde ele se sentia à vontade se vale de um paradoxo que permeia o Ocidente, mas tem na sociedade norte-americana o lugar privilegiado da sua manifestação: se há cada vez menos limites para a exposição do horror nas imagens da ficção, o mesmo não acontece com a difusão do horror "real" pelo sistema de informação de massa. Há uma distância considerável entre o horror que pode ser mostrado pela ficção e o que o sistema midiático se permite exibir.

Corpos censurados
A partir da Guerra do Golfo desenhou-se no Ocidente uma verdadeira estratégia do horror, uma dinâmica entre sua revelação e seu ocultamento que teve nas imagens o lugar privilegiado do seu exercício. Foi essa guerra que estabeleceu um novo padrão de controle das imagens por meio do qual se criava a impressão de uma guerra "limpa", "cirúrgica", sem horror. Segundo John Taylor ("Body Horror -Photojournalism, Catastrophe and War", New York University Press), foi na busca desse novo padrão que se operou um deslocamento da atenção dos corpos das vítimas para as armas e os equipamentos. Tal revogação do horror das imagens da guerra foi facilitada pela natureza virtual dos artefatos desenvolvidos pelos países mais ricos, principalmente os EUA -"transferência metonímica" acentuada no Afeganistão, na medida em que as tecnologias agora separaram ainda mais vítimas e algozes. Ausência de inimigo visível e de responsabilidade pessoal das unidades militares, este binômio corresponde à perda de poder político pelas populações para se manifestar sobre as decisões de seus governos. Em oposição aos terroristas que engajaram seus corpos e vidas na ação, matar -segundo a tecnologia "clean" ocidental- é, cada vez mais, uma ação "impessoal", desprovida de horror. Como se os corpos do inimigo não fossem mais o alvo, suas mortes são consideradas um "excesso", "efeito colateral", produto "acidental" da destruição dos alvos "reais": redes de comunicação, campos de pouso, depósitos de munição, armas. Com o agravante de que o Afeganistão, pobre e já destruído por guerras anteriores, nem sequer comporta mais os alvos que, no Iraque, mascararam a morte de 100 mil vítimas. Nesta guerra não há mais nada a ser destruído, não há mais "alvos", "apenas" restam os homens. A simples representação dessa população no limite da vida já constitui um problema para a propaganda dos EUA. Toda imagem desses homens, mulheres e crianças é um libelo contra a "vontade de ferro" norte-americana: o menino montado no burrinho, o chão de terra seca, os tanques obsoletos ao fundo deixam à mostra o caráter inglório da invasão militar; a desproporção entre o tamanho do míssil e o do homem a seu lado atesta a redução da dimensão humana diante do aparato bélico. Atentos à repercussão de tal "assimetria", os americanos buscam compensá-la... com novas imagens: do céu, junto com as bombas, caem alimentos. Pão e bombas, perverso binômio que subtrai aos terroristas o monopólio das ações diabólicas. A censura que atinge os corpos das vítimas dos bombardeios fora acionada antes, para as vítimas dos atentados. John Taylor observou que a imprensa americana recalca a morte de seus cidadãos, esconde seus corpos, porque o público não aceita ver compatriotas sofrendo; são raras, também, fotos de cadáveres de países de maioria branca (e cristã), com noções de morte, decência e escrúpulos semelhantes às dos americanos. Donde pode-se concluir que há uma espécie de dinâmica do horror, segundo a qual nem todos os corpos têm de ser escondidos.

Ordem ocidental
Taylor notou que a imprensa britânica -e a americana a acompanha- não trata do mesmo modo mortes estrangeiras e locais: massacres, fome, epidemias na África não ofendem os mesmos leitores que se recusam a ver o sofrimento de seus compatriotas. Na representação ocidental, diz ele, a África é uma região pavorosa e excessiva, de enchentes, secas, imundície, fome e doença, e cada um desses eventos dá a impressão de que crueldade, pobreza e incompreensão dos valores humanos são próprias do continente -aliás, do Terceiro Mundo em geral. Fotos de corpos estrangeiros feridos, especialmente se forem negros, são exemplos de culturas repulsivas, enquanto a doença, fome, superstição ou costumes "bárbaros" dos estrangeiros reafirmam a fé do público na ordem ocidental.
As representações dos afegãos na mídia ocidental têm buscado distanciá-los do Ocidente não só no espaço mas também no tempo: em geral são mostrados de corpo inteiro, evidenciando vestimentas e pés descalços; se destacam os panos nas cabeças, as barbas, enfim, tudo o que pode conotar como atraso e arcaísmo o que suas vidas guardam de ancestral. Ora, se tais traços podem ser tão explorados, é porque uma uma terceira modalidade de horror, menos explícita, se encontra em ação. Ela não diz mais respeito ao que é mostrado, mas é o próprio ato de mostrar, de poder mostrar tudo, de roubar a imagem do outro descarada e impunemente.
Não é preciso autorização para captar imagens dos refugiados, dos pobres, dos velhos, doentes e crianças de Cabul (nem do Terceiro Mundo). A violência contra os que não têm poder é tão banal que nem nos damos mais conta do seu caráter agressivo e predatório: quando, também entre nós, as câmeras de TV entram nas casas da periferia e expõem a dor dos miseráveis. Horror da superexposição, da expropriação final dos que não têm mais nada, a não ser a imagem, para ser apropriado.


Stella Senra é ensaísta e doutora em ciências da informação pela Universidade de Paris 2, autora de "O Último Jornalista" (Estação Liberdade).



Texto Anterior: Evento discute a vida e a obra da poeta
Próximo Texto: + livros: Alumbramento brutal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.