São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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Livro defende tese de que Antônio Conselheiro teria criado um novo modo de produção em Canudos

A Reinvenção do Sertão
276 págs., R$ 39,00
de Paulo Emílio Matos Martins. Ed. Fundação Getulio Vargas (praia de Botafogo, 190, 14º andar, CEP 22253-900, RJ, tel. 0/ xx/21/2559-5542).

O administrador dos sertões

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Acontecimento terrível, sempre recorrente no imaginário brasileiro, foi o massacre de Canudos -tanto que agora, diante da guerra norte-americana ao Afeganistão, o que nos vem à cabeça é o espectro de Canudos, o arraial sertanejo criminosamente destruído por um aparato militar com canhões Witworth e Krupp, em contraste com as armas rudimentares (bacamarte, garrucha e facão) da jagunçada de Belo Monte.
À lembrança acodem-nos as páginas de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e as imagens do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha; todavia confesso que não poderia jamais imaginar que o arraial de Canudos fosse submetido à análise organizacional e de administração, em que Antônio Conselheiro -esse Jesus Cristo brasileiro- seria concebido como um "líder empreendedor" que implantou na Bahia um "projeto comunitário alternativo para o sertão". Essa interpretação ousada e, de resto, rigorosamente fundamentada em dez anos de pesquisa, mostra que o espírito da descolonização sopra também na área da ciência da administração.
E com um precioso detalhe: tese de doutorado defendida na Fundação Getulio Vargas de São Paulo, "A Reinvenção do Sertão" é muito bem escrito, o autor tem estilo, escreve como um -"believe it or not"- autor nacional, tendo por divisa o "jeito brasileiro de administrar", diferentemente dos acadêmicos administradores de empresa, macaqueadores profissionais dos padrões metropolitanos, que na maioria das vezes produzem textos requentados, em que o português aparece como primo paupérrimo de um inglês mal traduzido. Textos sem graça, nenhum charme, sem auto-estima linguística, enfim, chatíssimos.
Eis aqui o roteiro seguido pelo livro: "Por que estudar Canudos dentro da disciplina administração? Teria sido o Belo Monte de Antônio Conselheiro verdadeiramente um fenômeno organizacional? E seu idealizador e implementador poderia ser incluído na galeria dos grandes empreendedores da história, lado a lado com Ford, Watson, Rathenau, Sloan e, mais recentemente, Morita, Iacocca e Gates?".
A tese, defendida pelo autor, de que Canudos possuía um "sistema autogestionário de produção", ancorado no "adjunto sertanejo", espécie de um grande mutirão norteado pelo ideário do cristianismo primitivo, leva-o a denunciar (não obstante a admiração pelo escritor) os deslizes de Euclides da Cunha e de outros estudiosos que estigmatizaram Antônio Conselheiro de psicótico, de "gnóstico bronco", em vez de lançarem luz no "modo de produção sertanejo", no qual avulta "uma concepção de trabalho mutualista, cooperativo, solidário ou, numa única palavra, fraterno".
Não terá o menor cabimento considerar o arraial sertanejo um antro de "marginais e facínoras", perpetrando saques, butins e pilhagens. Matos Martins recusa peremptoriamente a identificação dos jagunços de Canudos com os bandoleiros de Virgulino Lampião. O que interessa pôr em destaque nesse projeto de reinventar a "pólis" do sertão como alternativa ao domínio oligárquico-coronelístico é, digamos assim, o lado Weber de Antônio Conselheiro -o gestor e administrador de tabaréus ágrafos que romperam com a ordem latifundiária-, "desacelerando o girar dos ponteiros de seu relógio em relação ao fluir do tempo costeiro, mais exposto e vulnerável ao progresso pelas velas e vapores oriundos do norte industrializado e vetores atualizadores da nascente cultura pátria".
O que preside esse conglomerado de gente é uma cidade estável, com tecnologia edificada pela "lei mosaica da caatinga", onde o inventor é homem de letras; trata-se de um literato beato sem diploma, mas sabedor de múltiplos ofícios, inclusive o de estrategista militar por ter desempenhado a nobre função de general do povo.
O autor a certa altura nos conta da sua própria infância em Belém, no Pará, aprendendo as primeiras letras ouvindo "Os Sertões" de Euclides da Cunha, acrescentando agora o propósito de sublinhar que a prática administradora da caboclada em Canudos é o resultado de um "interpretação tapuia da moral cristã ibérica".
Analisado como "fenômeno administrativo" -igrejas, capelas, açudes-, Canudos abrigava 24 mil pessoas, 5.200 habitações e hoje seria considerada uma cidade de porte médio. O que estava sendo experimentado lá era um tipo de poder sociomístico, religioso, assistencial, comunitário, o qual distava do que era então conhecido pela gente dos sertões: o coronel mandão, o padre moralista e o fiscal corrupto do governo.
O grande mérito deste livro é ter auscultado e registrado as vozes remanescentes de Canudos. Depoimento sobre o passadio, por exemplo, em que aparece a inexistência da fome. Ninguém passava fome. O autor chega a dizer que no sertão da Bahia foi materializada uma sociedade que se inspirou na "fraternidade igualitária do comunismo cristão primitivo".
O saudoso Edmundo Moniz, marxista e canudólogo de alta estirpe, já havia assinalado que Conselheiro foi leitor de Thomas Morus assim como chamou a atenção para as semelhanças das experiências dos socialistas utópicos Fourier e Owen. Citemos um dos depoimentos a Paulo Emílio Matos Martins: "Eles [os conselheiristas" trabalhavam em conjunto. Ninguém tinha nada. Todo mundo fazia roça, todo mundo trabalhava. Colheu... Toma o seu... Toma o seu. Ninguém ficava com menos ou com mais".
O livro, ainda que não esteja preocupado em predizer o futuro, oferece uma bela lição sobre os deserdados da terra, pois nele está inscrita a racionalidade organizacional de que são capazes as gentes brasileiras, além de acrescentar um componente administrativo na tradição mística rebelde inaugurada por um demiurgo do sertão chamado Antônio Conselheiro, cujo percurso sofreu a transformação de um "pacato e anônimo comerciante-caixeiro-professor-rábula de Quixeramobim em santo sertanejo", que usava indumentária de monge.
Morto em 1897, logo deceparam-lhe a cabeça. Será lembrado na cultura brasileira como exemplar de cabeça cortada.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (Senac).



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