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+ livros
Crônicas e contos de "Ô, Copacabana!" e "Abraçado ao Meu Rancor", de João
Antonio, expõem de modo sarcástico o avesso do processo de modernização
Ô, Copacabana!
144 págs., R$ 22,00
de João Antonio. Cosac & Naify
(r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/
xx/11/ 3218-1444).
Abraçado ao Meu Rancor
206 págs., R$ 24,00
de João Antonio. Cosac & Naify.
Buracos na rua e uísque falsificado
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Merdunchos, babaquaras, lesados, mondrongos: não há
página escrita por João Antonio em que palavras como
estas não venham em sequência, a indicar a familiaridade do autor com as gírias
da malandragem e da miséria, carioca e
paulistana.
Desde seu primeiro livro de contos,
"Malagueta, Perus e Bacanaço", de 1963,
o autor se inscreveu naquilo que poderíamos chamar de "linha suja" da literatura urbana brasileira -a que, sob a égide de Lima Barreto, interessou-se mais
pelo destino dos marginalizados e excluídos do que pelos refinamentos, falsos
ou verdadeiros, advindos da modernização do país.
"Modernização", entretanto, é o tema
presente nos dois livros com que a editora Cosac & Naify inicia a republicação
das obras de João Antonio: "Abraçado
ao Meu Rancor", de 1986, e "Ô, Copacabana!", de 1978.
Este último é um misto de crônica e reportagem sobre o bairro em que o autor,
nascido num subúrbio paulistano, morou a partir da década de 70. O tom de
"Ô, Copacabana!" é muito amargo e carregado, refletindo o estado de espírito da
esquerda sob o regime autoritário. Desde as primeiras páginas, João Antonio
explode em invectivas contra a famosa
"princesinha do mar": "Vontade de brigar contigo, te chutar a barriga, sua marafona engalicada! Vontade, não: gana.
Urrar e vomitar sobre você (...) e eu te bato porque te amo".
Trata-se de contestar o clichê turístico,
a imagem do cartão-postal, mostrando
uma realidade sórdida, de boates decadentes, de poluição atmosférica, de apartamentinhos pavorosos. Talvez, na época em que o livro foi escrito, ainda fosse
importante desmascarar os folhetos das
companhias de aviação, o otimismo dos
governantes, as pretensões da classe média. Hoje o sarcasmo de João Antonio
parece um tanto embotado: "Não há o
menor sintoma de desespero, apertura
ou estertor em nossas lojas. Só detratores
e derrotistas veriam as coisas por essa
ótica malsã". Pois um "atento administrador já nos explicou (...) que morar
nesta princesinha do mar, Copacabana,
primor dos primores e exemplo de planificação de bairro moderno, é destacadamente um prêmio".
A realidade, diz João Antonio, é bem
outra. Os preços sobem, há buracos nas
ruas. Pior: acabaram os fogos de artifício
no Réveillon, não se toca mais samba legítimo, não há mais escritores, ninguém
mais toma suco de fruta, só Coca-Cola. E
o uísque é falsificado.
Círculo vicioso
O autor se debate
contra a falsidade geral: há o falso malandro, não tão bom quanto o malandro dos
velhos tempos, e há também a "falsa classe média" (pág. 71), para não falar das
"falsas madames" (pág.
75) -como se, nos velhos
tempos, as verdadeiras
madames fossem melhores. Temos a impressão de
que a nostalgia incorre
numa espécie de círculo
vicioso; se o autor lamenta o desaparecimento dos
velhos botequins e reclama do aparecimento de
uma lanchonete limpa e
moderninha, irá também
notar que essa limpeza e
modernice é pura fachada, pois ali do lado resiste
um botequim nojento e
horrível como sempre.
A escala de valores de
"Ô, Copacabana!" serve
para medir -o que é típico do pensamento conservador mas também do
modo de vida do malandro- o grau de autenticidade ou de falsidade em
cada coisa. Num mundo
de enganos, onde só
"quem conhece a vida" é
digno de colher os louros
da derrota, o "outro" do
discurso não é o policial
ou o burguês, mas sim o
otário.
É numa espécie de desespero, assim, que o autor faz uso de todo o jargão da malandragem: como não é o malandro
quem dá o recado, mas sim o intelectual
oposicionista, se perdem a malícia e o
deboche, e o vocabulário se engessa em
sinônimos, repetições, museologia verbal. Só que esta não se sustenta por muito tempo.
O estilo do livro fica desequilibrado;
hesita entre o intelectualês e o pitoresco,
mas mantendo sempre o desacerto de
uma ironia com o dedo em riste. Lemos
numa página que "um mapa dos buracos do Rio de Janeiro poderia se prestar
como uma espécie de cartografia carrancuda de nossa civilização"; e, em outra,
que "o povo da umbanda não chegou
mais à praia por falta de bango, gaita, surucutaco, grana, cacau".
E o escritor que tão sinceramente se põe ao lado
dos marginalizados, dos
rejeitados pela sociedade,
é o mesmo moralista que
denuncia: "A galeria ferve
de pederastas e lésbicas.
Tem beijo na boca, dado,
sugado, molhado, em público".
A oscilação de linguagem, assim como o vaivém entre um progressismo moralista e
um conservadorismo malandro, entre
nostalgia e desmascaramento, idealização e naturalismo, terminam tornando o
livro ao mesmo tempo ambíguo e redundante. Mas o gênero de "Ô, Copacabana!", que é o da crônica longa e improvisada, pressupõe de qualquer modo uma
certa incongruência.
Em "Abraçado ao Meu Rancor", coletânea de contos-reportagem de 1986, as
ambiguidades anteriormente ocultas pelo lugar-comum do pensamento de esquerda surgem, de forma dolorosa, como caso de consciência pessoal.
Pobreza e dissabor
No texto mais
longo do livro, João Antonio trata de fazer uma reportagem sobre São Paulo. A
exemplo do texto sobre Copacabana, o
objetivo seria contestar a imagem vendida pelas agências de turismo. O autor encontra muita pobreza, mas não a que ele
conhecia; o dissabor saudosista se mistura à satisfação ideológica de ver sua tese
comprovada. Há um passado pobre a ser
recuperado nostalgicamente, mas como
isso se mostra impossível, o rancor de
João Antonio se divide: ele se volta contra os que negam a existência da pobreza
e também contra si mesmo, que dela se
afastou.
Em outro texto, vemos o narrador às
voltas com os convivas de uma festa numa poderosa emissora de TV, para a
qual trabalha. Sente-se, a todo momento,
um traidor. "Humilhado e ofendido é
uma ova! Comprado e vendido. Safardana e omisso. E sem utilidade pública nenhuma, diga-se. (...) E atirando culpas à
censura da ditadura tupiniquim."
Até o sarcasmo fácil contra "os preclaros governantes" se torna, pois, insuficiente. E também se perdem de vista os
próprios personagens "humanos", os
coitados, os deserdados etc., a favor dos
quais se escreve. Surgem como vultos
nas andanças do narrador pela cidade;
ou então comparecem em vinhetas de
ralo potencial narrativo, como os textos
"Guardador" e "Maria de Jesus de Souza", bastante pálidos diante do drama
pessoal, este sim autêntico, que com desconforto vemos exposto pelo autor.
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