São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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Crônicas e contos de "Ô, Copacabana!" e "Abraçado ao Meu Rancor", de João Antonio, expõem de modo sarcástico o avesso do processo de modernização

Ô, Copacabana!
144 págs., R$ 22,00
de João Antonio. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/ xx/11/ 3218-1444).

Abraçado ao Meu Rancor
206 págs., R$ 24,00
de João Antonio. Cosac & Naify.

Buracos na rua e uísque falsificado

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Merdunchos, babaquaras, lesados, mondrongos: não há página escrita por João Antonio em que palavras como estas não venham em sequência, a indicar a familiaridade do autor com as gírias da malandragem e da miséria, carioca e paulistana. Desde seu primeiro livro de contos, "Malagueta, Perus e Bacanaço", de 1963, o autor se inscreveu naquilo que poderíamos chamar de "linha suja" da literatura urbana brasileira -a que, sob a égide de Lima Barreto, interessou-se mais pelo destino dos marginalizados e excluídos do que pelos refinamentos, falsos ou verdadeiros, advindos da modernização do país. "Modernização", entretanto, é o tema presente nos dois livros com que a editora Cosac & Naify inicia a republicação das obras de João Antonio: "Abraçado ao Meu Rancor", de 1986, e "Ô, Copacabana!", de 1978. Este último é um misto de crônica e reportagem sobre o bairro em que o autor, nascido num subúrbio paulistano, morou a partir da década de 70. O tom de "Ô, Copacabana!" é muito amargo e carregado, refletindo o estado de espírito da esquerda sob o regime autoritário. Desde as primeiras páginas, João Antonio explode em invectivas contra a famosa "princesinha do mar": "Vontade de brigar contigo, te chutar a barriga, sua marafona engalicada! Vontade, não: gana. Urrar e vomitar sobre você (...) e eu te bato porque te amo". Trata-se de contestar o clichê turístico, a imagem do cartão-postal, mostrando uma realidade sórdida, de boates decadentes, de poluição atmosférica, de apartamentinhos pavorosos. Talvez, na época em que o livro foi escrito, ainda fosse importante desmascarar os folhetos das companhias de aviação, o otimismo dos governantes, as pretensões da classe média. Hoje o sarcasmo de João Antonio parece um tanto embotado: "Não há o menor sintoma de desespero, apertura ou estertor em nossas lojas. Só detratores e derrotistas veriam as coisas por essa ótica malsã". Pois um "atento administrador já nos explicou (...) que morar nesta princesinha do mar, Copacabana, primor dos primores e exemplo de planificação de bairro moderno, é destacadamente um prêmio". A realidade, diz João Antonio, é bem outra. Os preços sobem, há buracos nas ruas. Pior: acabaram os fogos de artifício no Réveillon, não se toca mais samba legítimo, não há mais escritores, ninguém mais toma suco de fruta, só Coca-Cola. E o uísque é falsificado.

Círculo vicioso
O autor se debate contra a falsidade geral: há o falso malandro, não tão bom quanto o malandro dos velhos tempos, e há também a "falsa classe média" (pág. 71), para não falar das "falsas madames" (pág. 75) -como se, nos velhos tempos, as verdadeiras madames fossem melhores. Temos a impressão de que a nostalgia incorre numa espécie de círculo vicioso; se o autor lamenta o desaparecimento dos velhos botequins e reclama do aparecimento de uma lanchonete limpa e moderninha, irá também notar que essa limpeza e modernice é pura fachada, pois ali do lado resiste um botequim nojento e horrível como sempre. A escala de valores de "Ô, Copacabana!" serve para medir -o que é típico do pensamento conservador mas também do modo de vida do malandro- o grau de autenticidade ou de falsidade em cada coisa. Num mundo de enganos, onde só "quem conhece a vida" é digno de colher os louros da derrota, o "outro" do discurso não é o policial ou o burguês, mas sim o otário. É numa espécie de desespero, assim, que o autor faz uso de todo o jargão da malandragem: como não é o malandro quem dá o recado, mas sim o intelectual oposicionista, se perdem a malícia e o deboche, e o vocabulário se engessa em sinônimos, repetições, museologia verbal. Só que esta não se sustenta por muito tempo. O estilo do livro fica desequilibrado; hesita entre o intelectualês e o pitoresco, mas mantendo sempre o desacerto de uma ironia com o dedo em riste. Lemos numa página que "um mapa dos buracos do Rio de Janeiro poderia se prestar como uma espécie de cartografia carrancuda de nossa civilização"; e, em outra, que "o povo da umbanda não chegou mais à praia por falta de bango, gaita, surucutaco, grana, cacau". E o escritor que tão sinceramente se põe ao lado dos marginalizados, dos rejeitados pela sociedade, é o mesmo moralista que denuncia: "A galeria ferve de pederastas e lésbicas. Tem beijo na boca, dado, sugado, molhado, em público". A oscilação de linguagem, assim como o vaivém entre um progressismo moralista e um conservadorismo malandro, entre nostalgia e desmascaramento, idealização e naturalismo, terminam tornando o livro ao mesmo tempo ambíguo e redundante. Mas o gênero de "Ô, Copacabana!", que é o da crônica longa e improvisada, pressupõe de qualquer modo uma certa incongruência. Em "Abraçado ao Meu Rancor", coletânea de contos-reportagem de 1986, as ambiguidades anteriormente ocultas pelo lugar-comum do pensamento de esquerda surgem, de forma dolorosa, como caso de consciência pessoal.

Pobreza e dissabor
No texto mais longo do livro, João Antonio trata de fazer uma reportagem sobre São Paulo. A exemplo do texto sobre Copacabana, o objetivo seria contestar a imagem vendida pelas agências de turismo. O autor encontra muita pobreza, mas não a que ele conhecia; o dissabor saudosista se mistura à satisfação ideológica de ver sua tese comprovada. Há um passado pobre a ser recuperado nostalgicamente, mas como isso se mostra impossível, o rancor de João Antonio se divide: ele se volta contra os que negam a existência da pobreza e também contra si mesmo, que dela se afastou.
Em outro texto, vemos o narrador às voltas com os convivas de uma festa numa poderosa emissora de TV, para a qual trabalha. Sente-se, a todo momento, um traidor. "Humilhado e ofendido é uma ova! Comprado e vendido. Safardana e omisso. E sem utilidade pública nenhuma, diga-se. (...) E atirando culpas à censura da ditadura tupiniquim."
Até o sarcasmo fácil contra "os preclaros governantes" se torna, pois, insuficiente. E também se perdem de vista os próprios personagens "humanos", os coitados, os deserdados etc., a favor dos quais se escreve. Surgem como vultos nas andanças do narrador pela cidade; ou então comparecem em vinhetas de ralo potencial narrativo, como os textos "Guardador" e "Maria de Jesus de Souza", bastante pálidos diante do drama pessoal, este sim autêntico, que com desconforto vemos exposto pelo autor.


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