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+ brasil 502 d.C.
O horror pós-tudo
Luiz Costa Lima
O quarto livro de Frederico Barbosa, "Louco no Oco sem Beiras" (Ateliê Editorial), exige
por si e pelo momento em que
surge uma (ainda que brevíssima) contextualização temporal.
Em 1902, Joseph Conrad apresentava,
em forma de livro, "Heart of Darkness"
("O Coração das Trevas"). Ele se tornaria
não só a mais famosa de suas narrativas
curtas como, pela epígrafe de "The Hollow Men" (Os Homens Ocos), que T.S.
Eliot publicaria em 1925, um verdadeiro
ícone do sentimento que assolava a intelectualidade do Primeiro Mundo. Em
seu inglês estropiado, "Mistah Kurtz he
dead", a epígrafe remetia à comunicação
da morte daquele cujas últimas palavras
haviam sido: "The horror, the horror".
Kurtz fora um agente de companhia belga que recebera de sua majestade Leopoldo 2º o direito de explorar concessão
em território africano. Internando-se na
selva, em busca de marfim, Kurtz fora
além das práticas de cobiça e espoliação
dos brancos e se tornara malquisto na
Central Station em que se concentravam.
Transmitidas ao narrador da novela,
Marlow, o sentido de suas palavras finais
se mantivera enigmático. O horror estivera no que vira, no que fizera ou no que
via que os brancos faziam com os nativos? No poema de Eliot e no seu imediatamente anterior, "The Waste Land" ("A
Terra Devastada", 1922), as palavras de
Kurtz assumiam um sentido geral -a
civilização branca está aos pedaços, seus
membros são criaturas vazias-, ao passo que, na interpretação que se legitimava da novela, se impunha um sentido
mais cômodo: Kurtz renunciara aos valores dos brancos, se entregara à luxúria
e à dissipação, "enegrecera" sua alma.
Fausto mais modesto, pactuara com os
valores de outra cultura.
A divergência interpretativa é por si
significativa: para a minoria intelectualizada, o Ocidente, desarvorado, carecia
doutro rumo. E as opções logo receberiam nome: fascismo ou comunismo, Estado de Bem-Estar e keynesianismo. Independentemente de a opção ser revolucionária ou reformista, as propostas traziam implícito o reconhecimento da urgência de drástica mudança. Mas, para a
maioria dos contemporâneos europeus e
norte-americanos, a urgência significava
menos a necessidade de alguma escolha
do que impelia a viver a vida a todo o vapor. Nos negócios como nos afetos, a vida então se tornava frenética.
"Homens vazios"
Baixe-se a cortina, corte-se a cena. Venhamos aos anos
depois da queda do Muro de Berlim (por
acaso, a coincidência é quase absoluta
com a estréia de Frederico Barbosa ("Rarefato", 1990). Após um instante de euforia -acabou-se o perigo "vermelho",
somos os donos do mundo!-, retornava a alternativa dos anos de 1920-30. Por
um lado, o sociólogo alemão Robert
Kurz prenunciava a progressiva decomposição do capitalismo, cada vez mais reduzido a ilhas afortunadas, a contrastarem com o desastre econômico; de outro, a massa globalizada convertia o antigo frenesi em consumismo e cálculos sobre a Bolsa. O que fora frenesi já não escondia o cinza conformismo de "homens vazios".
Em "Contracorrente", Frederico Barbosa captava como poucos esse clima:
"Mandam: seja aeromoça na vida./ Sorria sempre: bailarina medíocre./ Faça-se
média. Desconsidere-se. Não pense,
nunca faça pensar,/ Não seja irônico,/
Diga só o que querem: ouvir-se/ No espelho da mesmice. Deixe-se xingar, entregue-se,/ Venda-se de corpo e alma. E,
acima de tudo, calma:/ Nunca reclame/
(Des)contente(-se) e cale-se". Com a
"coragem de falar do eu e do mundo"
(Antonio Candido), o poeta enquadrava,
ainda nas palavras de Candido, "uma experiência pessoal crispada" e um "tempo
calamitoso". Tornava assim flagrante
sua oposição à poesia que guardava belos modos enquanto se mantinha atenta
às oportunidades.
Quando então escreve, no momento
de passagem do século -"Chegamos à
nova era/ E ela já era"-, o poeta parecia
antecipar o cataclismo que se abriria a
partir de 11 de setembro último. O horror
fantasmal de Kurtz tomara outro rumo.
Os espoliados por séculos de colonização
branca mostravam que já não há "santuário" contra o horror. Não é que o relógio da história houvesse desandado; apenas seu curso agora se generaliza. Já não
há uma central, "very clean", que manda
seus agentes e comandos para selvas escuras. O relógio da história traz agora o
horror para o coração da grande metrópole. De repente, o horror se ampliara. E
o protesto de Frederico Barbosa contra
os que "converteram" post mortem o
poeta João Cabral pode deixar em pânico
os oportunistas: "Logo dirão que se inspirou/ [..." E que se arrependeu do pecado/ De ser exato, claro e enjoado". Chegou a hora em que os espertos cordeiros
se vêem sem pasto.
Como o poeta não é nem um mago
nem um reflexo das estruturas sociais,
seu livro mais recente não é tampouco a
mera intensificação da denúncia do horror globalizado. E os que prezam a poesia
como conquista da linguagem e não simples sintoma do que se dá na sociedade
têm a alegria de se congratular com a
correção de rumo que traz seu último livro. Há aqui um salto em processo: a
multiplicação de experiências, desde o
caos privado, com instantes de êxtase
erótico, com a visão de uma São Paulo
estrangulada, se transforma em condensação. O vário se estrutura em forma. A
forma que tem por matéria o horror, como digo em homenagem a Augusto de
Campos, pós-tudo. Ela se evidencia no
poema de abertura.
Destaco tão-só dois elementos. O mais
evidente está na palavra final: "Desespertador". A útil maquineta passa a ser composta por duplo formante: não só "desperta", mas "desespera". O desespertador cumpre o papel de despertar para o
desespero do "chumbo", "mais que profundo", dos dias sempre iguais. E, porque sempre iguais, sujeitos às mesmas
pressas e carências, o desespero está em
que, na verdade, não há despertar. Há
sim uma constante sonolência, um torpor que se distende. Por isso o eu, que,
no livro anterior, ainda se entregava ao
dilema entre fazer sentido e sentir que o
corpo envelhece, agora assume um caráter (gramaticalmente!) reflexivo: "Começo-me/ como quem grita sem". O verbo perde seu caráter ativo-transitivo
porque se refere a um animal "desfocado/ fora de faro". O homem, eis um cão
doméstico.
Não é que o relógio da história houvesse desandado; apenas seu curso agora se generaliza; já não há uma central, "very clean", que manda seus agentes e comandos para selvas escuras; o relógio da história traz agora o horror para o coração da grande metrópole
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Não adianta, pois, que os versos mudem sua ordem -o poema final apenas
permuta a ordem de construção do poema de início. No fim, está sempre o desespertador. Algo porém de fato muda:
na estrofe central, a posição do artigo definido, que de "sono o/ sono o", recupera
sua posição normal "o sono/ o sono".
Com isso, apontamos o segundo elemento que tínhamos em mente. O definido recupera seu lugar quanto ao nome,
"sono", que condensa todo o torpor do
animal "fora de faro". Essa é a única situação em que "o" define um nome. Em
quase todos os poemas, entre o artigo definido e o nomeado há a passagem para
outro verso. O vazio do enjambement é
intermediário da situação limite encarnada no final de "troco-me no tremor/
do atraso". No final "o atraso, o atraso,
o" o definido já não define nada. Ou melhor, define o que se vive e não se vê: o
puro vazio. O horror pós-tudo modifica
ao menos alguma coisa: torna visível o
que não se via. Ou não se queria ver.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de
"Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros.
Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
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