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Futebol de raiz
Primeiro clube de futebol do mundo, o inglês Sheffield F.C. faz 150 anos tentando se reerguer
e ser uma alternativa ao profissionalismo
DAVID OWEN
O estádio Bright Finance, na cidade
de Dronfield, no
norte de Derbyshire, ao sul de
Sheffield, parece um típico estádio do futebol britânico das
divisões inferiores do esporte.
Uma lanchonete pequena oferece torta com ervilhas por 2
[cerca de R$ 7,25] a porção e, ao
lado dela, há um pub.
Atrás de um dos gols se ergue
uma pequena arquibancada na
qual cinco lugares (dois deles
equipados com mesas) são reservados para a imprensa. Outdoors promovem empresas locais, como a Millthorpe Metals
Recycling: "A Primeira na Reciclagem de Ferro-Velho". Tudo
é mais ou menos como se poderia imaginar.
Ou, melhor dizendo, tudo
menos a equipe de cinegrafistas que encontro entre as flâmulas e as fotos na sala da direção do time, repleta de suvenires. A equipe é da TV alemã e
parece estar filmando o chá
com bolachas preparado para
os VIPs locais antes da partida.
Um membro da equipe pede
ao pessoal que serve o chá
"uma foto de seus figurões", algo que provavelmente não
constitui um prelúdio normal a
uma partida da divisão Sul 1 da
liga Unibond, com público que
normalmente não passa de 300
torcedores.
Na verdade, essa é a terceira
visita em um mês de uma televisão estrangeira ao Bright Finance. O visitante casual pode
bem se indagar o que é que
atrai tamanho interesse.
A resposta está na história. O
estádio é o lar do Sheffield
Football Club, fundado em
24/10/1857 -o que, segundo a
Football Association [federação inglesa do esporte], faz dele
o mais antigo clube de futebol
do mundo. Como diz o presidente do Sheffield, Richard
Tims: "Todos os clubes de futebol no mundo, teoricamente,
descendem deste".
O futebol primitivo de vários
tipos foi jogado em todo o planeta durante séculos, mas foi
no Reino Unido do século 19
que uma prévia do futebol contemporâneo saturado de dinheiro começou a ganhar forma nas escolas particulares de
elite. O aumento do lazer da
população geral ajudou a fazer
crescer o público do futebol, e a
ampliação da malha ferroviária
fez com que fosse mais fácil os
times jogarem contra times rivais de outras comunidades.
Primórdios
A Football Association foi
fundada em 1863, em Londres,
e foi também a Inglaterra que
criou a mais antiga competição
de futebol, a Copa da Inglaterra
(a partir da temporada 1871-72), e a primeira liga de futebol
(em 1888). Os britânicos também difundiram o entusiasmo
pelo esporte em todo o mundo.
Hoje o futebol é um fenômeno global. De acordo com a Fifa,
o organismo mundial que rege
o esporte, cerca de 4% da população mundial está diretamente envolvida com o esporte
(265 milhões de jogadores e 5
milhões de árbitros e funcionários). A final da Copa do Mundo
do ano passado, entre França e
Itália, foi acompanhada na televisão por mais de 700 milhões
de pessoas.
Esse interesse enorme ajudou a fazer uma enxurrada de
dinheiro chegar ao futebol profissional. Por exemplo, a Premier League inglesa, uma das
maiores ligas profissionais do
mundo, levantou cerca de 2,7
bilhões [R$ 9,8 bilhões] com os
direitos de cobertura pela mídia de suas partidas nas próximas três temporadas.
Um jogador de primeiro nível da Premier pode ganhar
mais de 100 mil por semana,
isso sem contar seus contratos
comerciais de publicidade.
As coisas não são bem assim
no Sheffield F.C., que hoje em
dia é um entre cerca de 301 mil
clubes de futebol existentes no
mundo. Os jogadores se sustentam com outros empregos e recebem apenas de 80 a 100
semanais, cada um, a título de
despesas ligadas ao futebol.
O orçamento operacional
anual do clube não chega a
250 mil, e o clube tem apenas
três funcionários assalariados.
"Eu deveria receber salário,
mas não recebo", diz o presidente Tims, dinâmico ex-gráfico que está envolvido com o
clube há oito anos e atua como
seu presidente em tempo integral. "Ainda não sobrou dinheiro para isso."
Os cerca de 320 torcedores
presentes, cada um dos quais
pagou 5 pelo ingresso, manifestam seu desencanto com os
altos escalões do futebol. "Tenho um ingresso para a temporada toda do Manchester City,
mas, francamente, prefiro vir
para cá assistir ao Sheffield".
"Está ocorrendo uma erosão
do sentimento de fazer parte
dos clubes (no futebol de elite).
Acho que o futebol está virando
um esporte sem rosto. Hoje em
dia, você se sente um número,
apenas. Mas o futebol jogado
fora das ligas não mudou."
Numa sala modular externa,
longe da confusão da sala da diretoria, Tims revela que tem
planos maiores para o clube.
"Antigamente eu administrava
uma empresa com faturamento de 8 milhões. Não desisti
daquilo para dirigir um clube
que não vai fazer parte da liga.
Fiz isso para dirigir algo que
tem o potencial de virar uma
marca global."
Pé no chão
Quanto ao financiamento,
diz, "não queremos um patrocinador que ganhou dinheiro rapidamente, mas que também
pode perder tudo", diz ele.
"Queremos construir nossa estabilidade. Sempre fomos o clube de futebol mais antigo do
mundo, mas, no passado, isso
não foi o bastante."
"Nós representamos a comunidade, a integridade, o respeito, a honestidade e jogar pelo
amor ao esporte" -em outras
palavras, ele conclui: "Pelos
bons objetivos do futebol".
Num momento em que existe
preocupação em relação às motivações daqueles que estão investindo no futebol britânico e
até mesmo comprando times
britânicos, o timing não poderia ser melhor para o Sheffield.
O Sheffield já tem centenas
de sócios em todo o mundo,
desde das ilhas Malvinas, no
sul, até o Canadá e a Finlândia,
no norte. Quanto mais cresce o
quadro de sócios, melhores devem ser as perspectivas das
vendas de camisetas e outros
produtos. "Já cadastramos sócios da Argentina, Austrália e
até Nigéria", diz Tims. "Eles
não são torcedores do Sheffield
-são fanáticos por futebol.
Mas querem render uma homenagem ao clube que deu origem a tudo."
Outra aspecto é que o futebol
de elite, com sua reputação de
corrupção e cobiça, só pode se
beneficiar de se ver associado
ao tradicionalismo saudável
encarnado pelo Sheffield. Os
cartolas do esporte provavelmente se dão conta disso, e
Tims, com certeza, também. "O
mundo do futebol precisa de
nós", diz ele. "Somos a consciência desse mundo."
Os historiadores esportivos
concordam que se pode ter razoável certeza de que o Sheffield foi de fato o primeiro clube de futebol, se
por "clube" entendemos
um organismo criado unicamente com o objetivo de
jogar futebol, em lugar de
ser subproduto de uma instituição de ensino.
Há alguma razão discernível pela qual o Sheffield
tenha sido o primeiro? Um
fator possível foi que Creswick, o mais importante de
seus fundadores, tinha um
passado diferente daquele
da maioria dos entusiastas
do futebol da época, formados em escolas de elite.
Segundo Graham Curry,
professor local cuja história
do Sheffield F.C. sairá publicada em breve, Creswick
estudou no Sheffield Collegiate. Curry descreve a escola como "uma instituição
pertencente à Igreja Anglicana e voltada a garotos da
classe média local".
Esse fato pode ter libertado os pioneiros do Sheffield
da mentalidade tribal que
parece ter caracterizado as
atitudes em relação ao futebol nas escolas de elite.
Futebol ou rúgbi
Currey sugere que a
maioria das disputas sobre
as regras envolveram antigos alunos das escolas Eton
e Rugby. Isso acabou levando à "bifurcação" do esporte, terminando nas tradições que temos hoje, baseadas no futebol e no rúgbi.
Contrastando com isso,
Creswick e Prest não nutriam nenhuma lealdade especial para com qualquer
versão então existente das
regras do esporte. Harvey
diz que eles "refinavam as
regras continuamente".
O que explica outra peculiaridade do Sheffield F.C.: a
tendência a ser associado a
um número extraordinário
de "primeiras vezes" no futebol, como o primeiro travessão fixo, o primeiro chute de escanteio, o primeiro
chute livre e a primeira utilização de holofotes.
Num primeiro momento,
ao que parece, o Sheffield
foi o Real Madrid ou o Manchester United de sua época. "Nos anos 1850 e 1860",
diz Harvey, "ele era basicamente o maior clube de futebol do mundo".
Infelizmente, porém, depois disso a trajetória do
clube foi praticamente toda
de declínio -em razão de
sua adesão ao etos amador e
à falta de uma base permanente para o clube.
A partida que vi [em 9/8]
foi uma festa para o Sheffield, que ganhou de 4 x 0.
Isso se deve em parte a um
gol maravilhoso, feito a 40
metros de distância, contra
o Cammel Laird, pelo atacante e pintor de paredes
autônomo Rob Ward.
Com a partida encerrada,
me despeço de Richard
Tims no pub, onde os jogadores dos dois times, além
de muitos torcedores, estão
tomando uns tragos. Os torcedores desse tipo de futebol evidentemente não têm
razões para queixar-se de
que os jogadores se distanciaram deles, acusação feita
com freqüência contra os
jogadores de primeiro nível.
A julgar pela tarde que
passei no campo, o presidente tem razão quando diz
que o Sheffield F.C. é um
clube comunitário dinâmico. Mesmo assim, ele terá
que agir com cuidado se
quiser convertê-lo em
"marca global" sem solapar
as próprias qualidades que
quer promover e que são tão
evidentemente apreciadas
pelos torcedores do clube.
É possível -com alguma
dificuldade- ser tanto uma
marca global quanto um
clube dotado de consciência
social. O Barcelona, um dos
maiores clubes da Europa,
talvez seja o melhor exemplo disso. Tims diz que o
Barcelona é "sua inspiração
internacional".
A íntegra saiu no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.
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