São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Futebol de raiz

Primeiro clube de futebol do mundo, o inglês Sheffield F.C. faz 150 anos tentando se reerguer e ser uma alternativa ao profissionalismo

DAVID OWEN

O estádio Bright Finance, na cidade de Dronfield, no norte de Derbyshire, ao sul de Sheffield, parece um típico estádio do futebol britânico das divisões inferiores do esporte. Uma lanchonete pequena oferece torta com ervilhas por 2 [cerca de R$ 7,25] a porção e, ao lado dela, há um pub.
Atrás de um dos gols se ergue uma pequena arquibancada na qual cinco lugares (dois deles equipados com mesas) são reservados para a imprensa. Outdoors promovem empresas locais, como a Millthorpe Metals Recycling: "A Primeira na Reciclagem de Ferro-Velho". Tudo é mais ou menos como se poderia imaginar.
Ou, melhor dizendo, tudo menos a equipe de cinegrafistas que encontro entre as flâmulas e as fotos na sala da direção do time, repleta de suvenires. A equipe é da TV alemã e parece estar filmando o chá com bolachas preparado para os VIPs locais antes da partida.
Um membro da equipe pede ao pessoal que serve o chá "uma foto de seus figurões", algo que provavelmente não constitui um prelúdio normal a uma partida da divisão Sul 1 da liga Unibond, com público que normalmente não passa de 300 torcedores.
Na verdade, essa é a terceira visita em um mês de uma televisão estrangeira ao Bright Finance. O visitante casual pode bem se indagar o que é que atrai tamanho interesse.
A resposta está na história. O estádio é o lar do Sheffield Football Club, fundado em 24/10/1857 -o que, segundo a Football Association [federação inglesa do esporte], faz dele o mais antigo clube de futebol do mundo. Como diz o presidente do Sheffield, Richard Tims: "Todos os clubes de futebol no mundo, teoricamente, descendem deste".
O futebol primitivo de vários tipos foi jogado em todo o planeta durante séculos, mas foi no Reino Unido do século 19 que uma prévia do futebol contemporâneo saturado de dinheiro começou a ganhar forma nas escolas particulares de elite. O aumento do lazer da população geral ajudou a fazer crescer o público do futebol, e a ampliação da malha ferroviária fez com que fosse mais fácil os times jogarem contra times rivais de outras comunidades.

Primórdios
A Football Association foi fundada em 1863, em Londres, e foi também a Inglaterra que criou a mais antiga competição de futebol, a Copa da Inglaterra (a partir da temporada 1871-72), e a primeira liga de futebol (em 1888). Os britânicos também difundiram o entusiasmo pelo esporte em todo o mundo.
Hoje o futebol é um fenômeno global. De acordo com a Fifa, o organismo mundial que rege o esporte, cerca de 4% da população mundial está diretamente envolvida com o esporte (265 milhões de jogadores e 5 milhões de árbitros e funcionários). A final da Copa do Mundo do ano passado, entre França e Itália, foi acompanhada na televisão por mais de 700 milhões de pessoas.
Esse interesse enorme ajudou a fazer uma enxurrada de dinheiro chegar ao futebol profissional. Por exemplo, a Premier League inglesa, uma das maiores ligas profissionais do mundo, levantou cerca de 2,7 bilhões [R$ 9,8 bilhões] com os direitos de cobertura pela mídia de suas partidas nas próximas três temporadas.
Um jogador de primeiro nível da Premier pode ganhar mais de 100 mil por semana, isso sem contar seus contratos comerciais de publicidade.
As coisas não são bem assim no Sheffield F.C., que hoje em dia é um entre cerca de 301 mil clubes de futebol existentes no mundo. Os jogadores se sustentam com outros empregos e recebem apenas de 80 a 100 semanais, cada um, a título de despesas ligadas ao futebol.
O orçamento operacional anual do clube não chega a 250 mil, e o clube tem apenas três funcionários assalariados. "Eu deveria receber salário, mas não recebo", diz o presidente Tims, dinâmico ex-gráfico que está envolvido com o clube há oito anos e atua como seu presidente em tempo integral. "Ainda não sobrou dinheiro para isso."
Os cerca de 320 torcedores presentes, cada um dos quais pagou 5 pelo ingresso, manifestam seu desencanto com os altos escalões do futebol. "Tenho um ingresso para a temporada toda do Manchester City, mas, francamente, prefiro vir para cá assistir ao Sheffield".
"Está ocorrendo uma erosão do sentimento de fazer parte dos clubes (no futebol de elite). Acho que o futebol está virando um esporte sem rosto. Hoje em dia, você se sente um número, apenas. Mas o futebol jogado fora das ligas não mudou."
Numa sala modular externa, longe da confusão da sala da diretoria, Tims revela que tem planos maiores para o clube. "Antigamente eu administrava uma empresa com faturamento de 8 milhões. Não desisti daquilo para dirigir um clube que não vai fazer parte da liga. Fiz isso para dirigir algo que tem o potencial de virar uma marca global."

Pé no chão
Quanto ao financiamento, diz, "não queremos um patrocinador que ganhou dinheiro rapidamente, mas que também pode perder tudo", diz ele. "Queremos construir nossa estabilidade. Sempre fomos o clube de futebol mais antigo do mundo, mas, no passado, isso não foi o bastante."
"Nós representamos a comunidade, a integridade, o respeito, a honestidade e jogar pelo amor ao esporte" -em outras palavras, ele conclui: "Pelos bons objetivos do futebol". Num momento em que existe preocupação em relação às motivações daqueles que estão investindo no futebol britânico e até mesmo comprando times britânicos, o timing não poderia ser melhor para o Sheffield.
O Sheffield já tem centenas de sócios em todo o mundo, desde das ilhas Malvinas, no sul, até o Canadá e a Finlândia, no norte. Quanto mais cresce o quadro de sócios, melhores devem ser as perspectivas das vendas de camisetas e outros produtos. "Já cadastramos sócios da Argentina, Austrália e até Nigéria", diz Tims. "Eles não são torcedores do Sheffield -são fanáticos por futebol. Mas querem render uma homenagem ao clube que deu origem a tudo."
Outra aspecto é que o futebol de elite, com sua reputação de corrupção e cobiça, só pode se beneficiar de se ver associado ao tradicionalismo saudável encarnado pelo Sheffield. Os cartolas do esporte provavelmente se dão conta disso, e Tims, com certeza, também. "O mundo do futebol precisa de nós", diz ele. "Somos a consciência desse mundo."
Os historiadores esportivos concordam que se pode ter razoável certeza de que o Sheffield foi de fato o primeiro clube de futebol, se por "clube" entendemos um organismo criado unicamente com o objetivo de jogar futebol, em lugar de ser subproduto de uma instituição de ensino. Há alguma razão discernível pela qual o Sheffield tenha sido o primeiro? Um fator possível foi que Creswick, o mais importante de seus fundadores, tinha um passado diferente daquele da maioria dos entusiastas do futebol da época, formados em escolas de elite.
Segundo Graham Curry, professor local cuja história do Sheffield F.C. sairá publicada em breve, Creswick estudou no Sheffield Collegiate. Curry descreve a escola como "uma instituição pertencente à Igreja Anglicana e voltada a garotos da classe média local".
Esse fato pode ter libertado os pioneiros do Sheffield da mentalidade tribal que parece ter caracterizado as atitudes em relação ao futebol nas escolas de elite.

Futebol ou rúgbi
Currey sugere que a maioria das disputas sobre as regras envolveram antigos alunos das escolas Eton e Rugby. Isso acabou levando à "bifurcação" do esporte, terminando nas tradições que temos hoje, baseadas no futebol e no rúgbi.
Contrastando com isso, Creswick e Prest não nutriam nenhuma lealdade especial para com qualquer versão então existente das regras do esporte. Harvey diz que eles "refinavam as regras continuamente".
O que explica outra peculiaridade do Sheffield F.C.: a tendência a ser associado a um número extraordinário de "primeiras vezes" no futebol, como o primeiro travessão fixo, o primeiro chute de escanteio, o primeiro chute livre e a primeira utilização de holofotes.
Num primeiro momento, ao que parece, o Sheffield foi o Real Madrid ou o Manchester United de sua época. "Nos anos 1850 e 1860", diz Harvey, "ele era basicamente o maior clube de futebol do mundo". Infelizmente, porém, depois disso a trajetória do clube foi praticamente toda de declínio -em razão de sua adesão ao etos amador e à falta de uma base permanente para o clube.
A partida que vi [em 9/8] foi uma festa para o Sheffield, que ganhou de 4 x 0.
Isso se deve em parte a um gol maravilhoso, feito a 40 metros de distância, contra o Cammel Laird, pelo atacante e pintor de paredes autônomo Rob Ward.
Com a partida encerrada, me despeço de Richard Tims no pub, onde os jogadores dos dois times, além de muitos torcedores, estão tomando uns tragos. Os torcedores desse tipo de futebol evidentemente não têm razões para queixar-se de que os jogadores se distanciaram deles, acusação feita com freqüência contra os jogadores de primeiro nível.
A julgar pela tarde que passei no campo, o presidente tem razão quando diz que o Sheffield F.C. é um clube comunitário dinâmico. Mesmo assim, ele terá que agir com cuidado se quiser convertê-lo em "marca global" sem solapar as próprias qualidades que quer promover e que são tão evidentemente apreciadas pelos torcedores do clube.
É possível -com alguma dificuldade- ser tanto uma marca global quanto um clube dotado de consciência social. O Barcelona, um dos maiores clubes da Europa, talvez seja o melhor exemplo disso. Tims diz que o Barcelona é "sua inspiração internacional".


A íntegra saiu no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.


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