São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Ponto de Fuga

Alma sem pátria

À pergunta: "Qual é o compositor mais importante para você?" Francisco Mignone respondia, quando jovem, "Bach"; depois, "Beethoven"; na velhice, "Giacomo Puccini"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Um CD lançado recentemente traz gravações inestimáveis para a música brasileira. Salvo erro, são inéditas: o poema sinfônico "Caramuru", de Francisco Mignone, "Alma Minha Gentil", de Glauco Velásquez, e o "Tango-Batuque" de Luciano Gallet, dois requintados compositores do início do século 20, não muito lembrados pelos intérpretes. Há um "A Paz" -cortejo para coro e orquestra, de Francisco Braga, que é como o coração desse maestro bom devia ser: comovente na sua simplicidade generosa.
Outras obras são bem conhecidas: "Reisado", de Lorenzo Fernandes, "Choros nº 10", de Villa-Lobos, para orquestra e coro, o de nº 5, para piano, belamente interpretado por Luiz Carlos de Moura Castro. "Choros nº 5" tem, como denominação, "Alma Brasileira", coisa do espírito de 1925, quando foi escrito. Denominação que serviu de título ao CD: "Alma Brasileira" [coleção Música Brasileira no Tempo]. No caso, a escolha não é muito feliz. Evoca os velhos vícios nacionalistas, bem desgastados e que pertencem ao passado.
Não importa: a música desse CD, feita por compositores sintonizados com a produção internacional, é às vezes excelente e sempre deliciosa. A orquestra da Universidade Federal Fluminense, regida pela maestrina Ligia Amadio, surpreende: pudera todas as universidades brasileiras tivessem conjuntos sinfônicos de qualidade tão alta.

Chave
A Academia Brasileira de Música publica o catálogo de obras de Francisco Mignone, organizado por Flávio Silva. Quando se percorre a lista dos títulos, vem a comichão de tudo descobrir: desde os "Cantos Populares Espanhóis", estreados em Milão com a grande cantora Hina Spani em 1928 (Mignone e Hina Spani, teria havido uma história de amor? Para ouvir Hina Spani, favorita de Toscanini, grande intérprete de Wagner, o selo Club 99 publicou, em 1989, um álbum com dois CDs de suas gravações); à "Paráfrase sobre o Hino dos Cavaleiros do Kyrial", de 1919, sobre uma melodia de Freitas Valle (senador que reunia, em sua residência, a Villa Kyrial, artistas e intelectuais em quem fermentavam os germes do modernismo); às obras de Chico Bororó, heterônimo de Mignone, voltado para a música dita popular; às suas participações em filmes. Quanta coisa.

Desejos
Mignone compôs música para o filme "Bonequinha de Seda", de Oduvaldo Vianna [1892-1972]. Também "aparece regendo orquestra que acompanha a cantora Gilda de Abreu na "Cena da Loucura", de "Lucia di Lammermoor'", diz o catálogo. Quando a Funarte, ou seja quem for, vai restaurar e editar em DVD esse filme mítico, que pertence à história do cinema brasileiro?

Alma
Francisco Mignone contava que, quando era jovem, à pergunta: "Qual compositor é mais importante para você?", respondia sempre com: "Bach". Depois, na maturidade, passou a designar: "Beethoven". Na velhice, porém, quando as hierarquias cheias de convenções deixavam de pesar sobre os preconceitos, e a sinceridade de quem não tem nada a perder vencia os critérios intelectuais prestigiosos, não hesitava e dizia: "Giacomo Puccini".
Vasco Mariz, no livro "Vida Musical" [ed. Civilização Brasileira], conta outra historinha: "Em uma noitada íntima, estava Mignone interpretando uma de suas famosas "Valsas de Esquina", e eis que o compositor subitamente emendou acordes puccinianos e a melodia da ária "E Lucevan le Stelle", da ópera "Tosca". Deu murros no teclado e exclamou: "Isto é que é a minha música!". Foi um constrangimento geral e todos procuraram consolá-lo e rebater sua afirmação".


jorgecoli@uol.com.br

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