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Ponto de Fuga
Alma sem pátria
À pergunta: "Qual é o compositor mais importante para você?" Francisco Mignone respondia, quando jovem, "Bach"; depois, "Beethoven"; na velhice, "Giacomo Puccini"
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Um CD lançado recentemente traz gravações
inestimáveis para a música brasileira. Salvo erro, são
inéditas: o poema sinfônico
"Caramuru", de Francisco
Mignone, "Alma Minha Gentil", de Glauco Velásquez, e o
"Tango-Batuque" de Luciano
Gallet, dois requintados compositores do início do século
20, não muito lembrados pelos
intérpretes. Há um "A Paz"
-cortejo para coro e orquestra,
de Francisco Braga, que é como
o coração desse maestro bom
devia ser: comovente na sua
simplicidade generosa.
Outras obras são bem conhecidas: "Reisado", de Lorenzo
Fernandes, "Choros nº 10", de
Villa-Lobos, para orquestra e
coro, o de nº 5, para piano, belamente interpretado por Luiz
Carlos de Moura Castro. "Choros nº 5" tem, como denominação, "Alma Brasileira", coisa do
espírito de 1925, quando foi escrito. Denominação que serviu
de título ao CD: "Alma Brasileira" [coleção Música Brasileira
no Tempo]. No caso, a escolha
não é muito feliz. Evoca os velhos vícios nacionalistas, bem
desgastados e que pertencem
ao passado.
Não importa: a música desse
CD, feita por compositores sintonizados com a produção internacional, é às vezes excelente e sempre deliciosa. A orquestra da Universidade Federal
Fluminense, regida pela maestrina Ligia Amadio, surpreende: pudera todas as universidades brasileiras tivessem conjuntos sinfônicos de qualidade
tão alta.
Chave
A Academia Brasileira de
Música publica o catálogo de
obras de Francisco Mignone,
organizado por Flávio Silva.
Quando se percorre a lista dos
títulos, vem a comichão de tudo
descobrir: desde os "Cantos Populares Espanhóis", estreados
em Milão com a grande cantora
Hina Spani em 1928 (Mignone
e Hina Spani, teria havido uma
história de amor? Para ouvir
Hina Spani, favorita de Toscanini, grande intérprete de Wagner, o selo Club 99 publicou,
em 1989, um álbum com dois
CDs de suas gravações); à "Paráfrase sobre o Hino dos Cavaleiros do Kyrial", de 1919, sobre
uma melodia de Freitas Valle
(senador que reunia, em sua residência, a Villa Kyrial, artistas
e intelectuais em quem fermentavam os germes do modernismo); às obras de Chico
Bororó, heterônimo de Mignone, voltado para a música dita
popular; às suas participações
em filmes. Quanta coisa.
Desejos
Mignone compôs música para o filme "Bonequinha de Seda", de Oduvaldo Vianna [1892-1972]. Também "aparece regendo orquestra que acompanha a cantora Gilda de Abreu
na "Cena da Loucura", de "Lucia di Lammermoor'", diz o catálogo. Quando a Funarte, ou
seja quem for, vai restaurar e
editar em DVD esse filme mítico, que pertence à história do
cinema brasileiro?
Alma
Francisco Mignone contava
que, quando era jovem, à pergunta: "Qual compositor é mais
importante para você?", respondia sempre com: "Bach".
Depois, na maturidade, passou
a designar: "Beethoven". Na velhice, porém, quando as hierarquias cheias de convenções deixavam de pesar sobre os preconceitos, e a sinceridade de
quem não tem nada a perder
vencia os critérios intelectuais
prestigiosos, não hesitava e dizia: "Giacomo Puccini".
Vasco Mariz, no livro "Vida
Musical" [ed. Civilização Brasileira], conta outra historinha:
"Em uma noitada íntima, estava Mignone interpretando uma
de suas famosas "Valsas de Esquina", e eis que o compositor
subitamente emendou acordes
puccinianos e a melodia da ária
"E Lucevan le Stelle", da ópera
"Tosca". Deu murros no teclado
e exclamou: "Isto é que é a minha música!". Foi um constrangimento geral e todos procuraram consolá-lo e rebater sua
afirmação".
jorgecoli@uol.com.br
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