São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Por vias tortas

Bom momento que vive a economia brasileira acentua, por contraste, a fragilidade das instituições democráticas no país

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Faz pensar a entrevista que Armínio Fraga, no domingo passado, deu para o jornal "O Estado de S. Paulo". Ela nos alerta para a revolução capitalista que está ocorrendo no Brasil, na medida em que a cadeia financeira se expande, o mercado de capitais se fortalece, facilitando os investimentos nas suas diversas etapas.
É surpreendente que essa reestruturação da economia, apontando para um período de crescimento sustentável, se faça junto à mais profunda desestruturação das instituições brasileiras. Basta observar a desmoralização da Câmara e do Senado, a guerra entre a polícia e o crime organizado, a farsa do ensino, principalmente o superior, e assim por diante. E isso não se dá apenas no nível do Estado, porquanto as igrejas e as organizações não-governamentais enfrentam problemas paralelos.

Besouro
A crise, entretanto, não é meramente destrutiva, pois força algumas instituições a cumprir em parte a tarefa de outras.
O melhor exemplo se dá no Poder Judiciário, que, embora não escapando da desmoralização geral, está tentando controlar as excrescências do sistema político, forçando uma reforma que não interessa aos outros Poderes, além de procurar modernizar a legislação do mercado de trabalho e assim por diante.
E não convém esquecer que o Poder Executivo abusa legislando a seu bel-prazer por meio de medidas provisórias, não tendo pejo de transformar o dito mercado político num "souk" de mercenários. É como se a rede das instituições passasse a funcionar no seu desbaratamento, uma tratando, quando pode, de corrigir as falhas das outras. Lembra o besouro, cujas partes não são propriamente adequadas para voar, mas termina voando, embora mal.
O que pode estar alimentando essa situação? Se isso acontece no mundo todo, parece-me que o lulismo lhe confere dimensões ainda mais alarmantes. É bom lembrar que este país nunca foi lá muito sério, como, diz-se, afirmou Charles de Gaulle, mas em toda minha vida, já longa, não me lembro de ter assistido a um circo tão desengonçado.
É que o lulismo, um grupo de políticos, sindicalistas e outros mais, assentado numa base eleitoral enorme e consistente, montou um fantástico estelionato ideológico e eleitoral, que lhe permite fazer o que, meses antes, acusava de traição. Basta lembrar sua última campanha eleitoral, que teve entre seus motes o combate à privatização, para logo em seguida retomá-la "de uma forma nunca dantes ousada".
Desde os gregos sabemos que o compromisso político é regido pela retórica, mas esta sempre se faz sob a aparência da verdade. Agora, o discurso político vai além do verdadeiro e do falso. Não é por isso que se torna irrelevante, pois precisa ser pronunciado para identificar o político com seu eleitorado.
Por certo esse fenômeno não é apenas brasileiro -basta observar o estado atual da política francesa-, mas não duvido de que estejamos levando a palma nesse processo de enganação. Essa dissolução das promessas afeta a economia, tanto do lado da corrupção deslavada quanto do lado da instabilidade jurídica, mas não a impede de seguir seu próprio rumo.
Em particular o lulismo vem ao seu auxílio quando joga por terra aqueles empecilhos ideológicos e institucionais que atrapalhavam um crescimento espontâneo do capitalismo.
Não há dúvida de que essa aliança traz ganhos sociais consideráreis -contrabalançados por vantagens nunca vistas para o capital financeiro-, mas o extraordinário é que o governo como um todo atua destruindo aquelas ideologias de esquerda, tidas como os meios indispensáveis para alcançar um desenvolvimento justo e sustentável.

Esquerdas enquadradas
Sob esse aspecto, Lula enquadrou as esquerdas tradicionais, principalmente aquelas do PT: de um lado, elas continuam com o discurso usual, enquanto, de outro, ele faz o que vem a ser no momento o mais adequado para o fortalecimento de seu poder. Exemplo curioso é como muitos ficaram encantados com um possível plebiscito para estatizar a Vale do Rio Doce, enquanto o governo começa a privatizar estradas, ferrovias e até mesmo já fala em privatizar aeroportos. A ironia da história fez com que o choque de capitalismo, já reclamado por Mário Covas [1930-2001, ex-governador de SP pelo PSDB], venha da parte do lulismo, que deveria ter herdado das esquerdas a luta contra as disfunções e perversidades do capital. Se a famosa carta aos brasileiros -escrita pouco antes do primeiro mandato e que pode ser considerada a certidão de nascimento do lulismo- aponta para uma reconciliação com o "neoliberalismo" , nunca sugeriu que fizesse do capital financeiro o êmbolo do desenvolvimento.
Parece-me que isso acontece, em grande parte, pelo desfazimento das instituições brasileiras, que terminaram por neutralizar as travas ideológicas que emperravam o desenvolvimento capitalista.
Nunca o capital internacional -aliás, passando por uma boa fase- teve tantas facilidades para operar no Brasil; nunca as atividades econômicas nacionais ficaram tão livres para operar, embora ainda carreguem os pesos da tributação elevada, da instabilidade jurídica e assim por diante.
Visto de um plano mais geral, o lulismo fecha um ciclo econômico que se esboçou no governo José Sarney, passou pelas peripécias do governo Fernando Collor de Mello, aprofundou-se com Fernando Henrique Cardoso e agora se arredonda aos trancos e barrancos. Notável é que esse processo corre paralelo à transição do autoritarismo para a democracia. E, quando o ciclo econômico se arredonda, porém, é essa democracia que periga.
As oposições sempre imaginaram que as políticas econômicas lulistas chegariam a um impasse, já que o crescimento da economia não tem sido ancorado nos investimentos necessários à modernização de nossa infra-estrutura.
Desse modo, poderiam recuperar o poder no meio da crise. Não convém menosprezar os enormes obstáculos que ainda nos separam de um desenvolvimento sustentável, mas apostar no fracasso do lulismo... Nada me parece hoje mais irrealista. Ele tem mostrado surpreendente capacidade de se livrar de problemas e deixar para que a sociedade os resolva segundo seus próprios mecanismos.
Mas, em contrapartida, traz uma séria ameaça à democracia. Não estou me referindo a uma crise no sistema eleitoral, ao ritual de periodicamente eleger nossos representantes.

Geléia geral
O perigo advém, creio eu, do embrutecimento da capacidade de julgar de grandes setores da população brasileira. Não imaginemos que nesta confusão generalizada o sistema político esteja em crise. Funciona aos trancos e barrancos, mas de modo cada vez menos democrático, pois, de um lado, se afoga na geléia geral, onde não mais se desenham as diferenças e as alteridades; de outro, ao perder a preocupação pelos rumos do país, se afunda num jogo do poder pelo poder. Sob esse aspecto, a dissolução das instituições tanto reclama por sua reformulação como pode disfarçar uma doce tirania.
Parece-me, nessas circunstâncias, que a primeira tarefa das oposições consiste em lutar por uma reforma das instituições, inclusive delas mesmas.
No fundo, precisam dizer a que vêm. No entanto é a reconstrução do Estado o desafio mais imediato. Todos sabemos que o Estado, tal como o conhecemos hoje, passa por uma crise de identidade: de um lado, termina sendo levado pelo fluxo de uma economia globalizada; de outro, se deteriora ao se infiltrar nos meandros da vida privada. Nessas condições, como pode contrabalançar a tendência inerente ao capital de criar riqueza criando pobreza, de expandir-se tecnologicamente aumentando a massa de desempregados?
Não há fórmula para enfrentar tais desafios, mas não me parece que eles mesmos possam ser formulados em termos corretos sem um Estado pequeno e forte, sem dúvida associado a outros Estados. Não penso numa liga dos pobres que substituiria a forma de luta de classes do século 19, mas na formação de grupos poderosos que poderão contrabalançar poderes adversos. Mas, para isso, precisa ser democrático, associado a uma forma de vida democrática, pacífica, livre, solidária e responsável.
Diante da geléia das instituições, essa não é nossa primeira demanda política? Talvez a nossa última esperança?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! . O autor agradece a Lídia Goldenstein por ter discutido esse artigo.


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