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Por vias tortas
Bom momento que vive a economia brasileira acentua, por contraste, a fragilidade das instituições democráticas no país
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Faz pensar a entrevista
que Armínio Fraga, no
domingo passado, deu
para o jornal "O Estado de S. Paulo". Ela
nos alerta para a revolução capitalista que está ocorrendo no
Brasil, na medida em que a cadeia financeira se expande, o
mercado de capitais se fortalece, facilitando os investimentos nas suas diversas etapas.
É surpreendente que essa
reestruturação da economia,
apontando para um período de
crescimento sustentável, se faça junto à mais profunda desestruturação das instituições
brasileiras. Basta observar a
desmoralização da Câmara e
do Senado, a guerra entre a polícia e o crime organizado, a
farsa do ensino, principalmente o superior, e assim por diante. E isso não se dá apenas no
nível do Estado, porquanto as
igrejas e as organizações não-governamentais enfrentam
problemas paralelos.
Besouro
A crise, entretanto, não é meramente destrutiva, pois força
algumas instituições a cumprir
em parte a tarefa de outras.
O melhor exemplo se dá no
Poder Judiciário, que, embora
não escapando da desmoralização geral, está tentando controlar as excrescências do sistema
político, forçando uma reforma
que não interessa aos outros
Poderes, além de procurar modernizar a legislação do mercado de trabalho e assim por
diante.
E não convém esquecer que o
Poder Executivo abusa legislando a seu bel-prazer por meio
de medidas provisórias, não
tendo pejo de transformar o dito mercado político num
"souk" de mercenários. É como
se a rede das instituições passasse a funcionar no seu desbaratamento, uma tratando,
quando pode, de corrigir as falhas das outras.
Lembra o besouro, cujas partes não são propriamente adequadas para voar, mas termina
voando, embora mal.
O que pode estar alimentando essa situação? Se isso acontece no mundo todo, parece-me que o lulismo lhe confere
dimensões ainda mais alarmantes. É bom lembrar que este país nunca foi lá muito sério,
como, diz-se, afirmou Charles
de Gaulle, mas em toda minha
vida, já longa, não me lembro
de ter assistido a um circo tão
desengonçado.
É que o lulismo, um grupo de
políticos, sindicalistas e outros
mais, assentado numa base
eleitoral enorme e consistente,
montou um fantástico estelionato ideológico e eleitoral, que
lhe permite fazer o que, meses
antes, acusava de traição. Basta
lembrar sua última campanha
eleitoral, que teve entre seus
motes o combate à privatização, para logo em seguida retomá-la "de uma forma nunca
dantes ousada".
Desde os gregos sabemos que
o compromisso político é regido pela retórica, mas esta sempre se faz sob a aparência da
verdade. Agora, o discurso político vai além do verdadeiro e do
falso. Não é por isso que se torna irrelevante, pois precisa ser
pronunciado para identificar o
político com seu eleitorado.
Por certo esse fenômeno não
é apenas brasileiro -basta observar o estado atual da política
francesa-, mas não duvido de
que estejamos levando a palma
nesse processo de enganação.
Essa dissolução das promessas afeta a economia, tanto do
lado da corrupção deslavada
quanto do lado da instabilidade
jurídica, mas não a impede de
seguir seu próprio rumo.
Em particular o lulismo vem
ao seu auxílio quando joga por
terra aqueles empecilhos ideológicos e institucionais que
atrapalhavam um crescimento
espontâneo do capitalismo.
Não há dúvida de que essa
aliança traz ganhos sociais consideráreis -contrabalançados
por vantagens nunca vistas para o capital financeiro-, mas o
extraordinário é que o governo
como um todo atua destruindo
aquelas ideologias de esquerda,
tidas como os meios indispensáveis para alcançar um desenvolvimento justo e sustentável.
Esquerdas enquadradas
Sob esse aspecto, Lula enquadrou as esquerdas tradicionais, principalmente aquelas
do PT: de um lado, elas continuam com o discurso usual, enquanto, de outro, ele faz o que
vem a ser no momento o mais
adequado para o fortalecimento de seu poder. Exemplo curioso é como muitos ficaram
encantados com um possível
plebiscito para estatizar a Vale
do Rio Doce, enquanto o governo começa a privatizar estradas, ferrovias e até mesmo já fala em privatizar aeroportos.
A ironia da história fez com
que o choque de capitalismo, já
reclamado por Mário Covas
[1930-2001, ex-governador de
SP pelo PSDB], venha da parte
do lulismo, que deveria ter herdado das esquerdas a luta contra as disfunções e perversidades do capital. Se a famosa carta
aos brasileiros -escrita pouco
antes do primeiro mandato e
que pode ser considerada a certidão de nascimento do lulismo- aponta para uma reconciliação com o "neoliberalismo" ,
nunca sugeriu que fizesse do
capital financeiro o êmbolo do
desenvolvimento.
Parece-me que isso acontece,
em grande parte, pelo desfazimento das instituições brasileiras, que terminaram por neutralizar as travas ideológicas
que emperravam o desenvolvimento capitalista.
Nunca o capital internacional -aliás, passando por uma
boa fase- teve tantas facilidades para operar no Brasil; nunca as atividades econômicas nacionais ficaram tão livres para
operar, embora ainda carreguem os pesos da tributação
elevada, da instabilidade jurídica e assim por diante.
Visto de um plano mais geral,
o lulismo fecha um ciclo econômico que se esboçou no governo José Sarney, passou pelas
peripécias do governo Fernando Collor de Mello, aprofundou-se com Fernando Henrique Cardoso e agora se arredonda aos trancos e barrancos.
Notável é que esse processo
corre paralelo à transição do
autoritarismo para a democracia. E, quando o ciclo econômico se arredonda, porém, é essa
democracia que periga.
As oposições sempre imaginaram que as políticas econômicas lulistas chegariam a um
impasse, já que o crescimento
da economia não tem sido ancorado nos investimentos necessários à modernização de
nossa infra-estrutura.
Desse modo, poderiam recuperar o poder no meio da crise.
Não convém menosprezar os
enormes obstáculos que ainda
nos separam de um desenvolvimento sustentável, mas apostar no fracasso do lulismo... Nada me parece hoje mais irrealista. Ele tem mostrado surpreendente capacidade de se livrar de
problemas e deixar para que a
sociedade os resolva segundo
seus próprios mecanismos.
Mas, em contrapartida, traz
uma séria ameaça à democracia. Não estou me referindo a
uma crise no sistema eleitoral,
ao ritual de periodicamente
eleger nossos representantes.
Geléia geral
O perigo advém, creio eu, do
embrutecimento da capacidade de julgar de grandes setores
da população brasileira. Não
imaginemos que nesta confusão generalizada o sistema político esteja em crise. Funciona
aos trancos e barrancos, mas de
modo cada vez menos democrático, pois, de um lado, se afoga na geléia geral, onde não
mais se desenham as diferenças e as alteridades; de outro, ao
perder a preocupação pelos rumos do país, se afunda num jogo do poder pelo poder. Sob esse aspecto, a dissolução das instituições tanto reclama por sua
reformulação como pode disfarçar uma doce tirania.
Parece-me, nessas circunstâncias, que a primeira tarefa
das oposições consiste em lutar
por uma reforma das instituições, inclusive delas mesmas.
No fundo, precisam dizer a
que vêm. No entanto é a reconstrução do Estado o desafio
mais imediato. Todos sabemos
que o Estado, tal como o conhecemos hoje, passa por uma crise de identidade: de um lado,
termina sendo levado pelo fluxo de uma economia globalizada; de outro, se deteriora ao se
infiltrar nos meandros da vida
privada. Nessas condições, como pode contrabalançar a tendência inerente ao capital de
criar riqueza criando pobreza,
de expandir-se tecnologicamente aumentando a massa de
desempregados?
Não há fórmula para enfrentar tais desafios, mas não me
parece que eles mesmos possam ser formulados em termos
corretos sem um Estado pequeno e forte, sem dúvida associado a outros Estados. Não
penso numa liga dos pobres
que substituiria a forma de luta
de classes do século 19, mas na
formação de grupos poderosos
que poderão contrabalançar
poderes adversos. Mas, para isso, precisa ser democrático, associado a uma forma de vida
democrática, pacífica, livre, solidária e responsável.
Diante da geléia das instituições, essa não é nossa primeira
demanda política? Talvez a
nossa última esperança?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve regularmente na seção "Autores", do
Mais! . O autor agradece a Lídia Goldenstein por
ter discutido esse artigo.
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