São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Versos esculpidos

Um dos grandes nomes da Renascença, Michelangelo tem traduzidos 50 poemas que expressam uma personalidade em conflito

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poderia parecer que a poesia de Michelangelo não passasse de mais um exercício no espectro monumental de suas realizações artísticas. Considerado até hoje a expressão máxima da capacidade humana de se expressar por meio das artes plásticas, a poesia talvez lhe viesse como um simples adendo, um adereço do tipo "anch'io" [eu também] no sentido de se ombrear com Petrarca e Dante, os grandes vultos poéticos de seu tempo, e em cuja leitura -ele, o autodidata supremo- bebeu os ensinamentos e adquiriu as ferramentas necessárias para se exprimir também em versos.
Uma visão mais próxima de seus sonetos revela, no entanto, um trabalho de cantaria semelhante à faina do escultor, uma dicção pétrea, um caminhar tortuoso, que faz de seus versos verdadeiras "coisas", verdadeiros objetos de pedra, em vez de simples fluxos de palavras cadenciadas e etéreas.
Ou, como se expressou definitivamente Berni a esse respeito, "ele diz coisas, enquanto os outros falam palavras".
Michelangelo deixou cerca de 300 "rime" (composições, entre as quais uns 80 sonetos completos, 100 madrigais e 50 epitáfios, além de numerosos "fragmentos").
Embora não lhes faltem verdadeiras pedras-de-toque ("Vorrei voler, Signor, quel chio non voglio", "Carico danni e di peccati pieno", "Di morte certo, ma non giá dellora" etc.) que os distinguem na literatura italiana, o certo é que sua feitura -penosa, arrastada, inconclusa ou digressiva- nada tem da maviosidade de seus modelos e lhes falta amiúde os ouropéis conclusivos, ficando seu entendimento prejudicado não raro pelo lio das idéias que se recusam se organizar como formas inteligíveis.
Em vez de se parecerem com suas luminosas estátuas, como o Davi (de Florença) ou a Pietà (de São Pedro), em que a obra de arte está a um passo da perfeição formal humana, eles lembram mais fortemente o abandonado, incompleto, esboçado estilo da Pietà (de Rondanini) e de outras obras deixadas inconclusas. São ásperos, quase "in natura", mas bafejados por uma anteforma que prevalece sobre a realização definitiva. Sua leitura revela uma personalidade taciturna, em conflito consigo mesma, uma ambivalência dicotômica em que se debatem bem e mal, belo e horrendo, pecado e virtude.

Solidão profunda
Na maioria escritos em seus últimos 30 anos de vida, depois de se ter fixado finalmente em Roma em 1534, quando seus grandes rivais artísticos, Leonardo e Rafael, já tinham morrido, os sonetos de Michelangelo, longe de expressarem o conceito que dele tinham seus contemporâneos -ou seja, o de "alguém que alcançou o ponto culminante da ambição humana"-, demonstram o quão pouco essa glória significava para ele, autocondenado a uma solidão incontornável, a um conflito tormentoso entre o eroticismo e a virtude, entre a crença e a negação.
Revelam ainda, e de maneira acerba, a duplicidade patética de dois amores platônicos, sublimados ambos na angústia da irrealização impossível.
O poeta e tradutor Mauro Gama traz agora ao leitor brasileiro a transposição de 50 desses sonetos, numa seleção que obedece a critérios firmados, não deixando de fora nenhum dos poemas "fundamentais".
Ali estão os sonetos dirigidos a Dante, a Tommaso de Cavalieri, a Vittoria Colonna, além daqueles que revelam sentimentos íntimos e cenas da vida cotidiana do artista, com menção a suas ferramentas de trabalho e aos objetos ou criaturas que o circundam.
Diversamente da onda que se apossou da maioria de nossos tradutores jovens, que os leva a "modernizar" o texto original e até "facilitá-lo" para benefício de um suposto leitor menos familiarizado com os "clássicos", Gama optou por se valer das dicções coetâneas da literatura portuguesa (no caso, o código camoniano) para verter os poemas, condicionando-se inclusive a não usar termos "que não houvessem ou não fossem usados no período", além de manter, na medida do possível, "a forma que cada vocábulo então apresentava".
Para facilitar o trabalho do leitor, os poemas foram precedidos de um "pequeno glossário de peculiaridades do português quinhentista".
Tais condicionamentos (que implicam, por exemplo, a contagem de "sua", "tua" como monossílabos, de acordo com a métrica da época) não presumem, no entanto, que a beleza intrínseca dos versos se tenha perdido na transposição, asfixiada por uma linguagem a que o leitor habitual não esteja acostumado.
Alguns momentos da tradução deixam à mostra como a sensibilidade tradutória de Gama, aliada à sua capacidade poética, puderam dar língua nossa aos lamentos angelescos dirigidos a Vittoria Colonna.


IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor. É autor de "A Caça Virtual" (Record).

CINQÜENTA POEMAS
Autor:
Michelangelo
Tradução: Mauro Gama
Editora: Ateliê (tel. 0/xx/11/ 4612-9666)
Quanto: R$ 36 (144 págs.)


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