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Versos esculpidos
Um dos grandes nomes da Renascença, Michelangelo tem traduzidos 50 poemas que expressam uma personalidade em conflito
IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poderia parecer que a
poesia de Michelangelo não passasse de
mais um exercício no
espectro monumental de suas realizações artísticas. Considerado até hoje a expressão máxima da capacidade
humana de se expressar por
meio das artes plásticas, a poesia talvez lhe viesse como um
simples adendo, um adereço do
tipo "anch'io" [eu também] no
sentido de se ombrear com Petrarca e Dante, os grandes vultos poéticos de seu tempo, e em
cuja leitura -ele, o autodidata
supremo- bebeu os ensinamentos e adquiriu as ferramentas necessárias para se exprimir também em versos.
Uma visão mais próxima de
seus sonetos revela, no entanto, um trabalho de cantaria semelhante à faina do escultor,
uma dicção pétrea, um caminhar tortuoso, que faz de seus
versos verdadeiras "coisas",
verdadeiros objetos de pedra,
em vez de simples fluxos de palavras cadenciadas e etéreas.
Ou, como se expressou definitivamente Berni a esse respeito, "ele diz coisas, enquanto
os outros falam palavras".
Michelangelo deixou cerca
de 300 "rime" (composições,
entre as quais uns 80 sonetos
completos, 100 madrigais e 50
epitáfios, além de numerosos
"fragmentos").
Embora não lhes faltem verdadeiras pedras-de-toque
("Vorrei voler, Signor, quel
chio non voglio", "Carico danni
e di peccati pieno", "Di morte
certo, ma non giá dellora" etc.)
que os distinguem na literatura
italiana, o certo é que sua feitura -penosa, arrastada, inconclusa ou digressiva- nada tem
da maviosidade de seus modelos e lhes falta amiúde os ouropéis conclusivos, ficando seu
entendimento prejudicado não
raro pelo lio das idéias que se
recusam se organizar como
formas inteligíveis.
Em vez de se parecerem com
suas luminosas estátuas, como
o Davi (de Florença) ou a Pietà
(de São Pedro), em que a obra
de arte está a um passo da perfeição formal humana, eles
lembram mais fortemente o
abandonado, incompleto, esboçado estilo da Pietà (de Rondanini) e de outras obras deixadas inconclusas.
São ásperos, quase "in natura", mas bafejados por uma anteforma que prevalece sobre a
realização definitiva. Sua leitura revela uma personalidade
taciturna, em conflito consigo
mesma, uma ambivalência dicotômica em que se debatem
bem e mal, belo e horrendo, pecado e virtude.
Solidão profunda
Na maioria escritos em seus
últimos 30 anos de vida, depois
de se ter fixado finalmente em
Roma em 1534, quando seus
grandes rivais artísticos, Leonardo e Rafael, já tinham morrido, os sonetos de Michelangelo, longe de expressarem o conceito que dele tinham seus contemporâneos -ou seja, o de "alguém que alcançou o ponto culminante da ambição humana"-, demonstram o quão pouco essa glória significava para
ele, autocondenado a uma solidão incontornável, a um conflito tormentoso entre o eroticismo e a virtude, entre a crença e
a negação.
Revelam ainda, e de maneira
acerba, a duplicidade patética
de dois amores platônicos, sublimados ambos na angústia da
irrealização impossível.
O poeta e tradutor Mauro
Gama traz agora ao leitor brasileiro a transposição de 50 desses sonetos, numa seleção que
obedece a critérios firmados,
não deixando de fora nenhum
dos poemas "fundamentais".
Ali estão os sonetos dirigidos
a Dante, a Tommaso de Cavalieri, a Vittoria Colonna, além
daqueles que revelam sentimentos íntimos e cenas da vida
cotidiana do artista, com menção a suas ferramentas de trabalho e aos objetos ou criaturas
que o circundam.
Diversamente da onda que se
apossou da maioria de nossos
tradutores jovens, que os leva a
"modernizar" o texto original e
até "facilitá-lo" para benefício
de um suposto leitor menos familiarizado com os "clássicos",
Gama optou por se valer das
dicções coetâneas da literatura
portuguesa (no caso, o código
camoniano) para verter os poemas, condicionando-se inclusive a não usar termos "que não
houvessem ou não fossem usados no período", além de manter, na medida do possível, "a
forma que cada vocábulo então
apresentava".
Para facilitar o trabalho do
leitor, os poemas foram precedidos de um "pequeno glossário de peculiaridades do português quinhentista".
Tais condicionamentos (que
implicam, por exemplo, a contagem de "sua", "tua" como
monossílabos, de acordo com a
métrica da época) não presumem, no entanto, que a beleza
intrínseca dos versos se tenha
perdido na transposição, asfixiada por uma linguagem a que
o leitor habitual não esteja
acostumado.
Alguns momentos da tradução deixam à mostra como a
sensibilidade tradutória de Gama, aliada à sua capacidade
poética, puderam dar língua
nossa aos lamentos angelescos
dirigidos a Vittoria Colonna.
IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor. É autor de "A Caça Virtual" (Record).
CINQÜENTA POEMAS
Autor: Michelangelo
Tradução: Mauro Gama
Editora: Ateliê
(tel. 0/xx/11/ 4612-9666)
Quanto: R$ 36 (144 págs.)
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