São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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+ sociedade

El Paso em falso

Para fugir da miséria e da criminalidade, emigrantes ilegais recorrem até a esgotos para passarem de Ciudad Juarez, no México, à cidade norte-americana

Yasmin Aboytes - 9.ago.2004/"El Paso Times"/Associated Press
Mexicanos aguardam em fila para entrar em El Paso (EUA)

JEAN-PAUL MARI

Duas grandes cidades ficam frente a frente uma para a outra, em lados opostos do rio Grande: El Paso, no Texas (EUA), e Ciudad Juarez, no México. Basta atravessar uma ponte, uma rua, uma boca-de-lobo para chegar à América, vigiada como fortaleza.
As pessoas fogem da miséria, das fábricas-dormitório e da crueldade de Juarez, a cidade que assassina mulheres jovens.
Os esgotos de El Paso -um caminho rápido e seguro! Pelo menos, foi o que pensou Jesus Prado, 25 anos, técnico em eletricidade na cidade de Guadalajara, a 24 horas de ônibus da fronteira com os EUA.
Em sua cidade ele trabalhava numa "maquila", uma fábrica em solo mexicano da empresa Jebil, dos EUA, produzindo joysticks de videogame -oito horas por dia para receber US$ 50 [R$ 93] por semana, o suficiente para sobreviver. Seu futuro era tão monótono quanto o percurso do rio Grande.
Jesus partiu pela primeira vez aos 20 anos, com a ajuda de um "coiote". Em primeiro lugar, o ônibus até Tijuana, depois a fronteira a ser atravessada à noite, três dias de caminhada no deserto e US$ 1.500 para desembolsar. Nos EUA, em um mês de trabalho clandestino, Jesus ganhou o equivalente a um ano de salário de operário no México.
Um dia, decidiu retornar a Guadalajara para buscar a mulher, Cecilia. Mas não tinha como pagar novamente um coiote. Depois de chegarem a Ciudad Juarez, a cidade mexicana situada em frente a El Paso, ele aguardou o anoitecer, atravessou o rio Grande a seco e enveredou com Cecilia numa boca-de-lobo que tinha observado.
Os EUA estavam ali, a apenas 40 metros de distância, logo após a saída do túnel, depois de uma faixa de terra nua e uma alta barreira metálica. Desde que não cruzassem com a patrulha da fronteira.
Dentro dos esgotos, eles mergulharam até o peito na água e no lixo, na escuridão total e gelada. Ao fim do caminho, Jesus e sua mulher toparam com uma porta interditada.
Decidiram retornar por uma galeria paralela, andaram por duas horas à luz de seu farolete, se perderam e acabaram errando por três dias no labirinto: "Sem dormir, sem comer, tiritando de frio todas as noites", contou Jesus.
Poderiam ter morrido naquele labirinto. Cecilia se feriu e ficou recoberta de equimoses, mas agüentou firme e não queria desistir. A saída estava ali, quatro quilômetros à frente.
Jesus empurrou uma tampa de esgoto, ergueu sua mulher para o alto da grade e pôs os pés em El Paso, nos EUA.
Vitória! Só que Cecilia não tinha levado suas roupas, que teriam sido um peso grande demais. No mesmo dia, Jesus empreendeu o caminho de volta sozinho, atravessou a ponte para o México, sem passar por nenhum controle, e enveredou novamente pelo caminho da cloaca, carregando um fardo de roupas nas costas.
"Tinha medo de que a patrulha da fronteira me tomasse por narcotraficante", contou.
Precisou escalar 40 metros, mas conseguiu passar sem empecilhos, e Cecília, refugiada num abrigo religioso, pôde vestir-se decentemente nos EUA.

Ação cinematográfica
Uma semana mais tarde, Jesus decidiu informar os amigos de seu bairro, bloqueados em Ciudad Juarez, desesperados à procura de uma maneira de atravessar a fronteira. E então voltou ao México, sozinho, pela quarta vez.
"Quando retornei, ao sair do esgoto, uma policial da patrulha da fronteira me viu e soou o alarme. Uma patrulha me perseguiu dentro do túnel." Jesus mergulhou na água imunda, cobriu o rosto e o corpo de lama fétida e ficou grudado à parede.
O raio de um farolete possante de um policial o percorreu durante um longo instante sem detectá-lo e desapareceu. Às 6h ele tentou uma nova saída. "Vi um policial dormindo em sua viatura, com os vidros abertos.
Passei ao lado dele, sem correr, para não acordá-lo", conta Jesus, sorrindo.
Quando reencontrou Cecilia, ela explodiu em lágrimas diante de seu homem, negro, fedido e imundo. E ele jurou a ela que nunca mais tentaria atravessar o rio Grande.
Dias depois, partiram juntos para a Flórida: "Alguns dias de trem e apenas um posto de controle, que evitamos, fazendo um desvio a pé que leva dois dias". Em seguida, Miami, um emprego e uma casa. Era urgente: Cecilia estava grávida.
O primeiro é cônsul do México em El Paso. Não espere a caricatura do alto funcionário barrigudo, com farto bigode negro: Juan Carlos Foncerrada Berumen tem 36 anos, olhos azuis vivos, cabelos castanhos claros e ar de alguém saído da Universidade de Yale.
O segundo, Doug Mosier, é chefe da "border patrol". Esperamos um discurso repressivo de xerife texano, mas encontramos um homem gentil, sensível à tragédia dos migrantes que persegue. Diante dele, 400 quilômetros de fronteira a controlar, do Texas ao Novo México. Sob suas ordens, 1.850 agentes, 12 aviões e helicópteros, um arsenal de radares, sensores elétricos, câmeras e aparelhos ópticos de visão noturna.
Balanço: 122.600 clandestinos interpelados em 2006, devidamente cadastrados e enviados de volta à outra margem do rio Grande. Com a mobilização dos 6.000 homens da Guarda Nacional, o número de prisões -logo, de travessias- caiu pela metade em El Paso. A informação é confirmada pelo cônsul.
Só que 500 mil, talvez 1 milhão de imigrantes conseguem penetrar ilegalmente nos EUA a cada ano. Com dificuldades, muitas vezes ao custo da própria vida. A patrulha da fronteira às vezes os encontra boiando de barriga para cima no rio Grande ou estendidos no chão no deserto mais a oeste -adultos, mulheres, crianças, idosos, mortos pelo sol, pelo calor e pela exaustão.
O que procuram? Um trabalho de empregado agrícola, de empregado doméstico, de vendedor de pizza, jardineiro ou lixeiro. E uma escola para seus filhos, um pouco de futuro.
Nada os detém. Nisso, o policial e o cônsul concordam: "Um muro não vai represar esse fluxo. Vai apenas tornar a travessia mais dura e perigosa, portanto, mais cara", diz o chefe da patrulha da fronteira.
"Quando os caminhos tradicionais são cortados, os coiotes inventam vias novas, os preços aumentam, as mortes se multiplicam, e a máfia organizada assume o monopólio do tráfico de seres humanos", diz o cônsul.
Os novos coiotes não hesitam em abandonar uma mulher grávida no meio do deserto ou em roubar um grupo de 20, 30 ou 50 clandestinos, antes de abandoná-los, sem dinheiro e sem água.
A US$ 1.500 a passagem, a fronteira representa uma mina de ouro: "Hoje é mais lucrativo fazer passar 20 camponeses de Chiapas que uma caravana carregada de maconha!".

Mulheres mortas
São 9h, sobre a ponte de El Paso. Nove anos atrás eu já estava aqui, sobre essa ponte que leva ao aglomerado mexicano de Ciudad Juarez, assolado pelo mesmo calor, para investigar a mesma história terrível. Estamos em 1998: 200 mulheres jovens foram mortas em Ciudad Juarez nos últimos cinco anos. Não se trata de crimes comuns.
Em muitos dos casos, as vítimas desapareceram, seqüestradas, foram mantidas prisioneiras por vários dias e violentadas antes de serem estranguladas ou espancadas até morrer. Os corpos freqüentemente carregam marcas de mutilações, como o seio direito cortado. Seus cadáveres são encontrados alguns dias ou alguns meses mais tarde, jogados no deserto que cerca a cidade, como brinquedos quebrados dos quais alguém quis se livrar.
Elas são essencialmente jovens vindas do sul pobre do país, que trabalham nas "maquilas", as fábricas norte-americanas transferidas ao México. Cerca de 300 mil empregados se alternam em três turnos diários de oito horas cada, transportados por ônibus particulares e vigiados por guardas e contramestres. Os interesses são enormes, e as máquinas não param nunca.
É claro que a cidade me parece brutal, com suas violências conjugais, seu machismo, o crime organizado e o narcotráfico. Em novembro de 2001, os corpos de oito mulheres foram encontrados num campo de algodão, não no deserto, mas em pleno centro de Ciudad Juarez.

Mostrando serviço
Dessa vez, foi demais. A imprensa, as organizações de defesa dos direitos humanos, a Anistia Internacional, todos alardearam o escândalo. Abrem-se os arquivos da polícia -e estão vazios! Um relatório denuncia "a eficácia limitada do procurador federal especial", e 177 funcionários são suspeitos de negligência ou de omissão voluntária. Em suma, a brigada de combate ao crime, a Justiça, as autoridades se calam ou abafam o assunto. São 15h em Ciudad Juarez.
Procuro o célebre advogado, mas não o verei mais. Em 25 de janeiro do ano passado, ele parou num sinal de trânsito no centro da cidade, em plena luz do dia. E um pistoleiro lhe acertou dez tiros.
Aventam-se teorias sobre um "serial killer" em versão americana, sobre tráfico de órgãos que não foram retirados ou fantasias de filhos desempregados da burguesia local.
Um jornalista daqui está convencido de que foi obra dos narcotraficantes, intocáveis, que têm sua maneira própria de festejar a venda de grandes carregamentos de droga. Especialistas vasculham velhos arquivos vazios, muitos funcionários incriminados continuam ocupando seus cargos, e a polícia se esforça para fazer com que seu passado seja esquecido.


A íntegra deste texto saiu na revista francesa "Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain.


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