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+ cultura
Grande nome da ficção portuguesa ao lado de Saramago, Lobo Antunes fala da atração pelo jazz e por Bergman
A correção perpétua
RAPHAÓLLE RÉROLLE
De tempos em tempos, ele se
olha no espelho com incredulidade. "António Lobo
Antunes, esse é você, você
sabia?" Existe ironia e humor penetrante mas também existe angústia,
em António Lobo Antunes, quando
ele evoca a postura de "grande escritor" sob a qual seus livros são concebidos. Graças à sua obra considerável, que inventa uma forma muito
singular de narrativa, esse português
de 63 anos já ocupa posição inatacável na literatura contemporânea.
Passo o tempo todo desejoso de corrigir
meus livros passados
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E é possível apostar, não importam os riscos inerentes a essa forma
de previsão, que sua prosa escapará
ao esquecimento.
Enquanto isso, continua a escrever
com determinação ("não sei fazer
outra coisa") e cria para seus leitores
um mundo atormentado, difícil, no
qual uma visão profundamente trágica da existência se confronta com a
vitalidade dos sentimentos e manifestações paradoxais de esperança
surgem inesperadamente. Tudo isso
em uma forma mais e mais distante
do romance clássico e cada vez mais
próxima da arquitetura poética,
conforme explica abaixo.
Pergunta - O senhor começou como
escritor de romances, e mais tarde
seus livros foram perdendo a forma
romanesca, a ponto de parecerem
agora bastante próximos da poesia.
Como o senhor os classificaria, afinal?
António Lobo Antunes - Não sei como rotulá-los. Eu gostaria muito de
ser poeta, e era exatamente assim
que me via aos 19 anos, quando escrevia um poema por dia -um pior
do que o outro, aliás.
Pergunta - O que espera de um livro,
já que é um leitor tão assíduo?
Antunes - Um bom livro é um livro
que eu sinto que eu tenha escrito: ele
me revela a mim mesmo, é como
uma espécie de espelho -"O Morro
dos Ventos Uivantes" [Record], de
Emily Brontë, por exemplo. De todo
modo, só tenho respeito por três escritores: Tolstói, razão por que estou
aprendendo russo, Proust e Conrad.
Mas tudo é questão de época, e o
mesmo se aplica ao cinema. Quando
eu era jovem, os filmes de Bergman
me enchiam o saco: demorei 20 anos
para compreender que na verdade
não estava pronto para compreendê-los. E agora eu os amo e acredito
que foram filmados por mim.
Pergunta - O sr. teve uma infância
muito cerceada, em sua família da
grande burguesia lisboeta?
Antunes - Não, felizmente. Se não
fôssemos muito amados, meus irmãos e eu, creio que eu não teria me
tornado escritor. Nós tínhamos tios
e tias, além disso, para nos envolver
em ternura. Mas não me lembro de
minha mãe abraçando um dos filhos
nem de meu pai fazendo elogios a
qualquer de nós.
Quando publiquei meu primeiro
livro, ele me disse que "percebe-se
que é um texto de estréia".
Pergunta - Por que o sr. se afastou
do gênero romance?
Antunes - Inicialmente, eu creio
que desejava escrever romances,
mas com o passar do tempo a trama
e a história deixaram de me interessar. Não tenho nada contra elas e, na
verdade, adoro que me sejam contadas, mas cheguei à conclusão de que,
para mim, a história representava
uma maneira fácil de me desembaraçar dos problemas que os livros
propõem, se desejo fazer aquilo que
procuro realmente, e que evidentemente beira o impossível: colocar toda a vida entre as páginas de um livro. É preciso que exista um bom
travesseiro sobre o qual repousar a
cabeça, quando minha hora final
chegar. Enquanto eu não estiver
contente, continuarei a viagem.
Pergunta - Mas o senhor não se sente satisfeito com seus livros nem ocasionalmente?
Antunes - Não é necessário estar satisfeito comigo mesmo, o que constitui desonestidade: seria sempre
possível fazer melhor, com um pouco mais de esforço. Quando concluo
um livro, fico sempre muito satisfeito e me digo que ninguém escreve
como eu. Mas, passado um mês,
compreendo que poderia ter feito as
coisas de outro jeito e por isso começo um livro para corrigir todos os
precedentes e tentar fazer aquilo em
que jamais obterei sucesso: criar o livro perfeito, depois do qual não continuarei mais escrevendo.
Isso atrapalha um pouco a vida.
Passo o tempo todo desejoso por
corrigir meus livros passados, mas
não tenho esse direito: é como se tivessem sido escritos por um de
meus ancestrais. Mesmo os escritores que amo, eu os leio para descobrir como trabalham e sinto vontade
de corrigir seus textos. A vida é assim. De toda forma, você sempre sabe que não foi feliz em nenhum de
seus livros, sobretudo quando eles
recebem apenas críticas extasiadas
-isso não ajuda. É preciso desconfiar: quando todos amam alguma
coisa, é provável que não preste.
Descobri uma coisa, ao menos: há
uns 15 anos, eu tinha em curso uma
obra enorme, que eu queimava periodicamente, muito pretensiosa,
muito influenciada, e aquilo não era
certo, não era a minha voz.
É preciso aprender a desconectar
todas as vozes parasitárias que abrigamos, como os ruídos em antigos
programas de rádio. Isso nem sempre é fácil porque existem textos que
se colam a nós, e nem sempre se trata daqueles que preferimos -um
exemplo seria o escritor português
Eça de Queirós.
Pergunta - Como o sr. procede, no
trabalho?
Antunes - Há sempre falsos inícios,
capítulos inteiros que eu jogo fora.
Normalmente, escrevo uma primeira versão em folhas pequenas de papel, capítulo após capítulo, e depois
copio o texto para páginas maiores,
até o final. Então releio e me espanto
com as coisas que encontro por lá,
porque quase esqueci o começo. Por
fim, releio e reescrevo. Ao longo do
caminho, tenho a impressão de marchar em meio a uma espécie de névoa, penetrada por clarões que subitamente me causam a impressão de
que compreendo tudo.
Tento cada vez mais me colocar
em estado próximo ao sonho (por
exemplo, escrevendo quando estou
muito cansado), para que minha polícia política pessoal abaixe a guarda.
Primeiro, tenho a idéia de que o livro
em que estou trabalhando é meu livro, me pertence de fio a pavio.
Quando acabo, tenho a impressão
de estar na ponta dos pés tentando
apanhar alguma coisa no alto de um
armário, sem saber direito o que vou
encontrar. Trata-se de um trabalho
que não associo ao prazer e que,
mesmo assim, comporta momentos
intensamente prazerosos, quando
você tem subitamente a impressão
de que alguém lhe está ditando o que
deve escrever.
Pergunta - Freqüentemente, seus livros parecem funcionar com um ritmo
musical.
Antunes - Aprende-se muito sobre
escrever, sobre fraseado, ouvindo o
jazz de Charlie Parker, Miles Davis...
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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