São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

Grande nome da ficção portuguesa ao lado de Saramago, Lobo Antunes fala da atração pelo jazz e por Bergman

A correção perpétua

RAPHAÓLLE RÉROLLE

De tempos em tempos, ele se olha no espelho com incredulidade. "António Lobo Antunes, esse é você, você sabia?" Existe ironia e humor penetrante mas também existe angústia, em António Lobo Antunes, quando ele evoca a postura de "grande escritor" sob a qual seus livros são concebidos. Graças à sua obra considerável, que inventa uma forma muito singular de narrativa, esse português de 63 anos já ocupa posição inatacável na literatura contemporânea.


Passo o tempo todo desejoso de corrigir meus livros passados


E é possível apostar, não importam os riscos inerentes a essa forma de previsão, que sua prosa escapará ao esquecimento.
Enquanto isso, continua a escrever com determinação ("não sei fazer outra coisa") e cria para seus leitores um mundo atormentado, difícil, no qual uma visão profundamente trágica da existência se confronta com a vitalidade dos sentimentos e manifestações paradoxais de esperança surgem inesperadamente. Tudo isso em uma forma mais e mais distante do romance clássico e cada vez mais próxima da arquitetura poética, conforme explica abaixo.
 

Pergunta - O senhor começou como escritor de romances, e mais tarde seus livros foram perdendo a forma romanesca, a ponto de parecerem agora bastante próximos da poesia. Como o senhor os classificaria, afinal?
António Lobo Antunes -
Não sei como rotulá-los. Eu gostaria muito de ser poeta, e era exatamente assim que me via aos 19 anos, quando escrevia um poema por dia -um pior do que o outro, aliás.

Pergunta - O que espera de um livro, já que é um leitor tão assíduo?
Antunes -
Um bom livro é um livro que eu sinto que eu tenha escrito: ele me revela a mim mesmo, é como uma espécie de espelho -"O Morro dos Ventos Uivantes" [Record], de Emily Brontë, por exemplo. De todo modo, só tenho respeito por três escritores: Tolstói, razão por que estou aprendendo russo, Proust e Conrad.
Mas tudo é questão de época, e o mesmo se aplica ao cinema. Quando eu era jovem, os filmes de Bergman me enchiam o saco: demorei 20 anos para compreender que na verdade não estava pronto para compreendê-los. E agora eu os amo e acredito que foram filmados por mim.

Pergunta - O sr. teve uma infância muito cerceada, em sua família da grande burguesia lisboeta?
Antunes -
Não, felizmente. Se não fôssemos muito amados, meus irmãos e eu, creio que eu não teria me tornado escritor. Nós tínhamos tios e tias, além disso, para nos envolver em ternura. Mas não me lembro de minha mãe abraçando um dos filhos nem de meu pai fazendo elogios a qualquer de nós.
Quando publiquei meu primeiro livro, ele me disse que "percebe-se que é um texto de estréia".

Pergunta - Por que o sr. se afastou do gênero romance?
Antunes -
Inicialmente, eu creio que desejava escrever romances, mas com o passar do tempo a trama e a história deixaram de me interessar. Não tenho nada contra elas e, na verdade, adoro que me sejam contadas, mas cheguei à conclusão de que, para mim, a história representava uma maneira fácil de me desembaraçar dos problemas que os livros propõem, se desejo fazer aquilo que procuro realmente, e que evidentemente beira o impossível: colocar toda a vida entre as páginas de um livro. É preciso que exista um bom travesseiro sobre o qual repousar a cabeça, quando minha hora final chegar. Enquanto eu não estiver contente, continuarei a viagem.

Pergunta - Mas o senhor não se sente satisfeito com seus livros nem ocasionalmente?
Antunes -
Não é necessário estar satisfeito comigo mesmo, o que constitui desonestidade: seria sempre possível fazer melhor, com um pouco mais de esforço. Quando concluo um livro, fico sempre muito satisfeito e me digo que ninguém escreve como eu. Mas, passado um mês, compreendo que poderia ter feito as coisas de outro jeito e por isso começo um livro para corrigir todos os precedentes e tentar fazer aquilo em que jamais obterei sucesso: criar o livro perfeito, depois do qual não continuarei mais escrevendo.
Isso atrapalha um pouco a vida. Passo o tempo todo desejoso por corrigir meus livros passados, mas não tenho esse direito: é como se tivessem sido escritos por um de meus ancestrais. Mesmo os escritores que amo, eu os leio para descobrir como trabalham e sinto vontade de corrigir seus textos. A vida é assim. De toda forma, você sempre sabe que não foi feliz em nenhum de seus livros, sobretudo quando eles recebem apenas críticas extasiadas -isso não ajuda. É preciso desconfiar: quando todos amam alguma coisa, é provável que não preste.
Descobri uma coisa, ao menos: há uns 15 anos, eu tinha em curso uma obra enorme, que eu queimava periodicamente, muito pretensiosa, muito influenciada, e aquilo não era certo, não era a minha voz.
É preciso aprender a desconectar todas as vozes parasitárias que abrigamos, como os ruídos em antigos programas de rádio. Isso nem sempre é fácil porque existem textos que se colam a nós, e nem sempre se trata daqueles que preferimos -um exemplo seria o escritor português Eça de Queirós.

Pergunta - Como o sr. procede, no trabalho?
Antunes -
Há sempre falsos inícios, capítulos inteiros que eu jogo fora. Normalmente, escrevo uma primeira versão em folhas pequenas de papel, capítulo após capítulo, e depois copio o texto para páginas maiores, até o final. Então releio e me espanto com as coisas que encontro por lá, porque quase esqueci o começo. Por fim, releio e reescrevo. Ao longo do caminho, tenho a impressão de marchar em meio a uma espécie de névoa, penetrada por clarões que subitamente me causam a impressão de que compreendo tudo.
Tento cada vez mais me colocar em estado próximo ao sonho (por exemplo, escrevendo quando estou muito cansado), para que minha polícia política pessoal abaixe a guarda. Primeiro, tenho a idéia de que o livro em que estou trabalhando é meu livro, me pertence de fio a pavio.
Quando acabo, tenho a impressão de estar na ponta dos pés tentando apanhar alguma coisa no alto de um armário, sem saber direito o que vou encontrar. Trata-se de um trabalho que não associo ao prazer e que, mesmo assim, comporta momentos intensamente prazerosos, quando você tem subitamente a impressão de que alguém lhe está ditando o que deve escrever.

Pergunta - Freqüentemente, seus livros parecem funcionar com um ritmo musical.
Antunes -
Aprende-se muito sobre escrever, sobre fraseado, ouvindo o jazz de Charlie Parker, Miles Davis...


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: + autores: Batalhas de símbolos
Próximo Texto: Jogo de classes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.