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O DIREITO DE PEDALAR
NUNO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
mundo à revelia". É assim
que um personagem falastrão de Guimarães Rosa
justifica a sua própria prisão (e julgamento).
Quase com certeza o leitor ainda se
lembra das pedaladas de Robinho
sobre o zagueiro Rogério, do Corinthians, na final do Campeonato Brasileiro, há três anos. Pois saiba que
não poderá ver a cena no cinema (no
filme "Ginga", realizado pela produtora O2 e pela Nike). Seu uso foi vetado pelo dirigente Alberto Dualib,
do Corinthians.
Lembrei-me das palavras de Guimarães Rosa ao saber da proibição, e
me animei a escrever este artiguinho. Pois, sem querer exagerar demais, ninguém me tira da cabeça
que estão fazendo Robinho pedir
desculpas a Rogério e à torcida do
Corinthians pelas pedaladas que
deu, como se uma turba de advogados depois do jogo, ainda no vestiário, com aquela cara condescendente, chegasse para o jogador ensaboado e dissesse: "Agora, falando sério,
rapaz, temos de cuidar da papelada,
desse seu drible aí, e a coisa não vai
ser mole, não. Tome cuidado com as
declarações, não saia à noite, contenha-se e, principalmente, não repita
isso de novo. Assim, talvez a gente
consiga liberar a jogada".
A conseqüência lógica dessa asneira seria usar nosso embaixador no
Uruguai para adular o [goleiro] Mazurkiewicz pela meia-lua que levou
do Pelé em 1970 ou, então, a transformação do "talk show" de Maradona ["La Noche del Diez", retransmitido no Brasil pelo canal a cabo
SporTV] num hino de louvor à rainha Elisabeth para conseguir passar
no cinema o seu gol contra os ingleses, na Copa de 86.
Já pensaram, Garrincha com a patroa, Elza Soares, batendo à porta de
cada João no dia seguinte ao jogo,
humildemente pedindo sua assinatura num documento de autorização de imagem, para exibição no
próximo Canal Cem?
A verdade é que, como todo artista
que mereça o nome, meio sem saber, Robinho instaurou uma coisa
nova, imprevisível, talvez inacreditável. Isso, como qualquer pessoa de
boa-fé percebe, não tem nada a ver
com Rogério nem com o Corinthians, mas com essa espécie de alargamento do possível que mora na
arte em geral e em algumas atividades vizinhas.
Usado desta forma, o direito de
imagem não é mais do que uma tentativa, típica de nossa época controladora, de coibir, mensurar, conter e
culpabilizar o que foi anunciado ali.
Entendo que haja questões comerciais no meio, entendo que se deva
fazer o mapa da grana envolvida e
dividi-la com justiça dentro de normas claras, mas dar ao João, ao zagueiro, e depois à raposa, ao cartola,
o direito de proibição ultrapassa todos os limites.
Direito do espectador
Porque, se for para ser assim, também vou propor ao Congresso uma
espécie de direito de imagem preventivo, voltado aos interesses do espectador. Para começar, não vou
querer ver a cara desse Dualib na minha frente pelos próximos dez anos
e vou processar o canal de televisão
que transmiti-la.
Na verdade, há um outro episódio
recente que deve ser pensado junto
com este: o polêmico lance, divulgado pela internet, em que Ronaldinho
Gaúcho acerta, da entrada da área,
por quatro vezes consecutivas, o travessão, sem deixar a bola cair, para
um comercial da Nike. É curioso como não temos defesa diante dessas
imagens, que tocam, no entanto, numa questão vital para o futebol: "Ele
seria mesmo capaz disso?".
Estou, até hoje, mobilizado e indeciso. Assisti dezenas de vezes à cena,
com impressões contraditórias, vindas, talvez, de meu desejo de que
aquilo fosse, afinal, verdade. Todos
me dizem que é mentira e estou aos
poucos me conformando, mas vamos combinar: ninguém reage a essa imagem sacana, e sim àquela televisionada ao vivo e presenciada por
50 mil pessoas no Morumbi.
É claro que o assunto é amplo, pois
algo no próprio futebol de Ronaldinho Gaúcho, do maior jogador do
mundo, se aproxima dessa ambivalência entre o falso e o verdadeiro:
aquela falta que o levou à expulsão
contra os ingleses [na Copa de 2002],
por exemplo, foi mesmo mal-intencionada? O gol que fez nesse jogo foi
proposital ou sua intenção era cruzar a bola? Seu sorriso disfarça ou
aceita, é irônico ou é ingênuo? Os
inumeráveis recursos que apresenta
não serão uma dobra narcísica dentro do jogo, distantes do andamento
da partida e do placar? (Não é à toa
que o gol, no referido comercial, esteja sendo usado não como finalidade, mas como anteparo.)
Talvez Ronaldinho Gaúcho esteja
para o futebol um pouco como Elza
Soares para o samba: apropriadores
magistrais de todo o repertório que
os precedeu, numa versão brasileira,
contraditória, mas autêntica, do
pós-modernismo, inauguram entre
nós esse curioso misto de ser e de
imagem, de paródia e verdade, de
truque e maravilha.
Mas algo no futebol parece resistir
bravamente a esta era de simulacros,
num mundo à revelia que insiste em
permanecer verdadeiro: a grama é
arrancada no carrinho do zagueiro,
o gol é uma catástrofe, o placar nunca é justo e mesmo um animal veterano (Edmundo) derruba sozinho a
má-fé de um juiz.
Nuno Ramos é artista plástico e torcedor
do Santos.
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