São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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O DIREITO DE PEDALAR

NUNO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo à revelia". É assim que um personagem falastrão de Guimarães Rosa justifica a sua própria prisão (e julgamento).
Quase com certeza o leitor ainda se lembra das pedaladas de Robinho sobre o zagueiro Rogério, do Corinthians, na final do Campeonato Brasileiro, há três anos. Pois saiba que não poderá ver a cena no cinema (no filme "Ginga", realizado pela produtora O2 e pela Nike). Seu uso foi vetado pelo dirigente Alberto Dualib, do Corinthians.
Lembrei-me das palavras de Guimarães Rosa ao saber da proibição, e me animei a escrever este artiguinho. Pois, sem querer exagerar demais, ninguém me tira da cabeça que estão fazendo Robinho pedir desculpas a Rogério e à torcida do Corinthians pelas pedaladas que deu, como se uma turba de advogados depois do jogo, ainda no vestiário, com aquela cara condescendente, chegasse para o jogador ensaboado e dissesse: "Agora, falando sério, rapaz, temos de cuidar da papelada, desse seu drible aí, e a coisa não vai ser mole, não. Tome cuidado com as declarações, não saia à noite, contenha-se e, principalmente, não repita isso de novo. Assim, talvez a gente consiga liberar a jogada".
A conseqüência lógica dessa asneira seria usar nosso embaixador no Uruguai para adular o [goleiro] Mazurkiewicz pela meia-lua que levou do Pelé em 1970 ou, então, a transformação do "talk show" de Maradona ["La Noche del Diez", retransmitido no Brasil pelo canal a cabo SporTV] num hino de louvor à rainha Elisabeth para conseguir passar no cinema o seu gol contra os ingleses, na Copa de 86.
Já pensaram, Garrincha com a patroa, Elza Soares, batendo à porta de cada João no dia seguinte ao jogo, humildemente pedindo sua assinatura num documento de autorização de imagem, para exibição no próximo Canal Cem?
A verdade é que, como todo artista que mereça o nome, meio sem saber, Robinho instaurou uma coisa nova, imprevisível, talvez inacreditável. Isso, como qualquer pessoa de boa-fé percebe, não tem nada a ver com Rogério nem com o Corinthians, mas com essa espécie de alargamento do possível que mora na arte em geral e em algumas atividades vizinhas.
Usado desta forma, o direito de imagem não é mais do que uma tentativa, típica de nossa época controladora, de coibir, mensurar, conter e culpabilizar o que foi anunciado ali. Entendo que haja questões comerciais no meio, entendo que se deva fazer o mapa da grana envolvida e dividi-la com justiça dentro de normas claras, mas dar ao João, ao zagueiro, e depois à raposa, ao cartola, o direito de proibição ultrapassa todos os limites.

Direito do espectador
Porque, se for para ser assim, também vou propor ao Congresso uma espécie de direito de imagem preventivo, voltado aos interesses do espectador. Para começar, não vou querer ver a cara desse Dualib na minha frente pelos próximos dez anos e vou processar o canal de televisão que transmiti-la.
Na verdade, há um outro episódio recente que deve ser pensado junto com este: o polêmico lance, divulgado pela internet, em que Ronaldinho Gaúcho acerta, da entrada da área, por quatro vezes consecutivas, o travessão, sem deixar a bola cair, para um comercial da Nike. É curioso como não temos defesa diante dessas imagens, que tocam, no entanto, numa questão vital para o futebol: "Ele seria mesmo capaz disso?".
Estou, até hoje, mobilizado e indeciso. Assisti dezenas de vezes à cena, com impressões contraditórias, vindas, talvez, de meu desejo de que aquilo fosse, afinal, verdade. Todos me dizem que é mentira e estou aos poucos me conformando, mas vamos combinar: ninguém reage a essa imagem sacana, e sim àquela televisionada ao vivo e presenciada por 50 mil pessoas no Morumbi.
É claro que o assunto é amplo, pois algo no próprio futebol de Ronaldinho Gaúcho, do maior jogador do mundo, se aproxima dessa ambivalência entre o falso e o verdadeiro: aquela falta que o levou à expulsão contra os ingleses [na Copa de 2002], por exemplo, foi mesmo mal-intencionada? O gol que fez nesse jogo foi proposital ou sua intenção era cruzar a bola? Seu sorriso disfarça ou aceita, é irônico ou é ingênuo? Os inumeráveis recursos que apresenta não serão uma dobra narcísica dentro do jogo, distantes do andamento da partida e do placar? (Não é à toa que o gol, no referido comercial, esteja sendo usado não como finalidade, mas como anteparo.)
Talvez Ronaldinho Gaúcho esteja para o futebol um pouco como Elza Soares para o samba: apropriadores magistrais de todo o repertório que os precedeu, numa versão brasileira, contraditória, mas autêntica, do pós-modernismo, inauguram entre nós esse curioso misto de ser e de imagem, de paródia e verdade, de truque e maravilha.
Mas algo no futebol parece resistir bravamente a esta era de simulacros, num mundo à revelia que insiste em permanecer verdadeiro: a grama é arrancada no carrinho do zagueiro, o gol é uma catástrofe, o placar nunca é justo e mesmo um animal veterano (Edmundo) derruba sozinho a má-fé de um juiz.


Nuno Ramos é artista plástico e torcedor do Santos.


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