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Memória
Homem cúmplice da máquina
GISELLE BEIGUELMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nam June Paik é considerado o pai
da videoarte, uma modalidade de
criação que tem suas raízes nos
anos 1960 e na contracultura norte-americana. O termo, apesar da referência
direta ao vídeo, sempre foi abrangente e hoje, com o irreversível processo de digitalização das imagens, engloba novas interfaces,
como a internet e os celulares multimídia, e
formatos mais e menos recentes, como narrativas interativas, videoinstalações e videoperformances.
O artista sul-coreano, que morreu aos 74
anos no último domingo, transitou por quase todos esses formatos. Por isso, de certa
forma, é injusto considerá-lo "apenas" o pai
da videoarte. Correto seria dizer que Paik é
um dos pais de todas as artes eletrônicas e
digitais. Membro do grupo Fluxus, notabilizou-se, entre os anos 1960 e 70 por experimentações que punham em questão a "produtividade programada da indústria para liberar energias novas", como assinalou o crítico Arlindo Machado.
Nesse período, chamam a atenção suas intervenções nos aparelhos de TV, invertendo
circuitos internos e colocando imãs no tubo
catódico, que provocam distorções na imagem e abrem novas possibilidades estéticas
de linguagem videográfica. Paik negava aí a
idéia do vídeo como máquina de registro e
transmissão da imagem em movimento para tratá-lo como um campo de sinais (eletrônicos) e signos em trânsito.
Introduzia também a noção de uma estética do ruído e da falha e colocava no centro
da criação o impulso de contestar a regra da
configuração original para criar sensibilidades alternativas.
Desafiava a visão, ainda, a confrontar uma
forma de imagem videográfica que poderia
ser construída e processada sem passar pela
mediação da câmera nem ser agenciada pelo
olho humano. Negava, assim, o lugar de comando do homem em relação à máquina
para entendê-la não como uma mera ferramenta, mas como um co-autor.
Apesar da intensa divulgação, nos textos
jornalísticos que noticiaram a morte de
Paik, de uma declaração sua sobre a necessidade de odiar a tecnologia e a recordação
das sessões públicas em que destruía aparelhos de TV nos anos 1960, é preciso relativizar e contextualizar esses fatos. Isso porque
a repetição exaustiva e isolada dessas afirmações tende a consolidar um certo ponto
de vista tecnofóbico que tem aparecido freqüentemente na crítica de artes visuais.
Como disse o videoartista Lucas Bambozzi, essa observação refere-se à necessidade
de um uso crítico da tecnologia, não à sua recusa. Afinal, tão importante quanto as reflexões de Paik contra o uso banal da tecnologia foi sua atuação como mestre da necessária relação de cumplicidade que deve se estabelecer entre homens e máquinas no processo de qualquer criação artística que se valha de meios eletrônicos e digitais.
Reinventor de sistemas
Não por acaso, um dos marcos de sua obra
foi o desenvolvimento de um sintetizador de
imagem com o engenheiro japonês Suya
Abe, em 1973, sem o qual os efeitos de mixagem, colagem e camadas do vídeo "Global
Groove", incorporado a sua instalação "TV
Garden" (1974), seriam impossíveis.
Criador de máquinas, Paik foi também
reinventor de sistemas, tendo sido um dos
primeiros a utilizar satélites de telecomunicação em projetos artísticos, como em
"Good Morning Mr. Orwell" (1984) e em
"Wrap around the World" (1988).
Anunciado como "arte para 10 milhões",
público potencial da transmissão de "Good
Morning Mr. Orwell" (1984), o projeto trazia
novas noções de escala e espacialidade para
o campo da arte, não só pelo porte planetário da transmissão via satélite mas pela corrosão das fronteiras do lugar específico da
arte que suscitava.
A obra de Paik tornava-se aí emblemática
das novas relações entre arte e mídia, fazendo com que determinadas modalidades de
criação só pudessem ser entendidas e gozadas no âmbito da telecomunicação. Os artistas da internet e dos dispositivos de comunicação móvel agradecem.
Giselle Beiguelman é webartista, professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia
Universidade Católica (SP) e autora de "Link-se" (ed.
Peirópolis), entre outros.
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