São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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+ política

Aliança para combater o imperialismo reivindicada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, unindo China, Irã e Rússia, é uma ilusão, pois depende inteiramente da economia dos EUA

O triângulo de cartas

ROBERT KURZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

É possível que sonhar o sonho de amanhã mova o mundo. Mas alguns sonhos são meros fantasmas do mundo fenecido de ontem. Grande parte da esquerda não dispõe hoje de nenhuma orientação em relação ao futuro. Em toda parte do mundo a esquerda prefere retornar aos paradigmas da política tradicional, fundamentada nos Estados nacionais. Por isso a globalização real ou é desmentida e ignorada ou é condenada.
E a crítica não principia pelas categorias basais do "trabalho abstrato", da forma mercadoria, da "valorização do valor" e das relações capitalistas entre os gêneros na nova sociedade mundial. Ela se limita a uma referência superficial ao "capital financeiro" e ao poder imperial externo dos EUA.
Sob as novas condições, origina-se desse modo uma convergência de posições de esquerda e de direita, com um acento anti-semita. Pois, na história moderna, os ideólogos irracionais sempre identificaram o dinheiro especulativo aos "judeus".


Chávez precisa orar para que a potência má dos EUA continue intacta, pois do contrário o castelo de cartas dos sonhos políticos difusos desmorona


No clima de uma evocação de formas historicamente viciadas da política, o antiimperialismo está vivenciando também uma primavera negra, que nada mais tem a ver com as esperanças nacional-revolucionárias do passado.
Contra o imperialismo da segurança ocidental e o colonialismo da crise liderados pelos EUA, a esquerda politicamente empedernida propõe cada vez mais na esfera externa um contrapeso, constituído de regimes que, no processo global de crise, parecem animar a velha soberania nacional. Com isso o verdadeiro caráter desses regimes é tirado de foco.
Trata-se de uma concepção puramente da política de poder, sem nenhuma consideração pelo conteúdo histórico-social e ideológico. Eis uma diferença decisiva em relação ao antigo antiimperialismo, que, se tampouco colocava em questão o moderno sistema produtor de mercadorias e, com isso, o mercado mundial, ainda assim, apesar dessa redução, havia defendido uma reivindicação ideal de emancipação.
O pressuposto disso eram os espaços de manobra de um desenvolvimento nacional a ser realizado no curso da expansão capitalista. Sob as condições na nova crise mundial, não restou nada disso.

Casca vazia
No sentido da reformulação de um antiimperialismo desvinculado das reivindicações substantivas anteriores e reduzido a uma casca vazia, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, considerado o novo portador da esperança da esquerda latino-americana, tem louvado o "triângulo da força" formado por Irã, Rússia e China, almejando com isso uma espécie de aliança contra o neoliberalismo e contra a política norte-americana das guerras pela ordem mundial, já fracassada no Iraque.
Mas aí não se manifesta mais nenhuma contraposição autônoma que pudesse sustentar uma lógica interna de desenvolvimento e libertação. Mostra-se apenas o outro lado da crise global. Caracterizados como inimigos ou rivais dos EUA e da política intervencionista ocidental, esses próprios regimes são componentes do processo de desestabilização e, nesse sentido, estão inseridos na decadência da razão burguesa.
O quadro comum do mercado mundial, que na história da modernização impulsionou a oposição entre o poder imperial e a "luta por reconhecimento" antiimperialista, se tornou, ao extinguir-se a potência da modernização, o campo de força de uma tendência para a barbárie que abarca todos os atores estatais.
Trata-se antes de uma aliança profana de extraviados da modernização que chega ao seu fim, destinada a sustentar o novo antiimperialismo nacional. Sobretudo, não se trata de revitalizar um programa econômico-político contra a globalização; o que está em jogo são os efeitos colaterais da própria globalização.
O fundamento da pretensa "força" no caso dos países exportadores de petróleo -Rússia, Irã e Venezuela- não é uma perspectiva histórica independente que vá além do moderno sistema produtor de mercadorias, mas a duplicação, de resto banal, do preço do petróleo, a qual levou bilhões de dólares para dentro dos respectivos cofres.
Ora, o preço do petróleo não é sinceramente nenhum indicador de transformação social, não é nada mais que um fator no movimento do mercado mundial. Ao mesmo tempo, não se verifica uma reprodução social auto-sustentável, mas antes um momento meramente especulativo e totalmente incerto no contexto da crise do sistema mundial.
Por essa razão, a bênção inesperada dos bilhões do petróleo tampouco consolida programas de desenvolvimento duradouro. O regime de Putin na Rússia representa tão-somente a ruína de uma ex-potência mundial presa à fracassada "modernização recuperadora".
Os serviços secretos convertidos em Estado administram a miséria das massas desesperadas com repressão social e política, a fim de reproduzir em terreno reduzido a pesadelo de um império periférico, que agora se alimenta de petrodólares. O regime dos mulás, que anseia por armas atômicas com base também nos petrodólares, devasta o Irã com o terror religioso e representa um neopatriarcado misógino.

Desmoralização intelectual
Os dissidentes e a esquerda são dizimados aos milhares; o novo presidente, Mahmoud Ahmadinejad, fez da eliminação de Israel o seu programa e denomina de "mito ocidental" a aniquilação dos judeus europeus pelos nazistas. Demonstra-se desmoralização intelectual quando Chávez aceita a loucura anti-semita e chama Ahmadinejad de "irmão".
Mas também o caudilhismo messiânico do próprio Chávez apresenta traços duvidosos. A "revolução bolivariana", que na base de uma ideologia nacionalista limitada deve se tornar o paradigma para a América Latina, se encontra em e coincide com sua pessoa.
As reformas sociais organizadas de forma paraestatal sem dúvida favorecem imediatamente os pobres, mas, no sentido de uma reprodução social autônoma, elas permanecem ocas e incertas, na medida em que se baseiam unicamente em uma subvenção obscura sustentada nos petrodólares. E, no contexto de uma "irmanação" com um regime como o iraniano, escurece-se o horizonte ideológico desses esforços.
Por outro lado, a suposta "força" da China se encontra em uma relação recíproca precária com a nova riqueza especulativa do petróleo dos países exportadores. Pois é precisamente a industrialização chinesa voltada à exportação que contribuiu essencialmente para a explosão do preço do petróleo.
Em poucos anos a China se tornou, depois dos EUA, o segundo maior consumidor do petróleo. No entanto o que aparece como ofensiva chinesa na exportação representa ainda menos a função de um programa de desenvolvimento nacional; é antes o maior efeito colateral da globalização até agora.
Essa abundância de exportações se fundamenta na maior parte nos investimentos de conglomerados ocidentais (em primeiro lugar, dos EUA e da União Européia), que, no curso de sua terceirização global, fizeram da China a plataforma e a mesa giratória das cadeias transnacionais de criação de valor. Por isso a China registrou também, depois dos EUA, o segundo maior afluxo de investimentos diretos estrangeiros.
Ou seja, nenhum vestígio de autonomia nacional, somente o resultado do salário extremamente barato e da proscrição jurídica de escravas que trabalham nas zonas de economia exportadora, na maioria jovens e aquarteladas.
Ao mesmo tempo esses investimentos permanecem insulares. A reprodução social na área maior é ameaçada pelo colapso por parte desse mesmo desenvolvimento. É dessa maneira que se constituíram na China os paradoxos de um capitalismo de minoria desenfreado e transnacional, protegido pelo teto político do aparato de poder, comunista à moda antiga e paternalista.

Quimera
Com ações policiais e militares, uma burocracia corrupta trata de aplacar as contradições sociais que dilaceram o país.
Sob essas condições, o vago projeto de uma aliança antiimperialista de países exportadores de petróleo com a China é uma quimera. Provavelmente nada de uma tal aliança se realize, pois as respectivas posições no mercado mundial são totalmente distintas e até opostas. Na mesma medida em que a China se tornou o novo eldorado para a terceirização dos conglomerados transnacionais, os investimentos diretos na América Latina foram reduzidos.
O México, que ainda nos anos 90 era, no quadro do Nafta [acordo de livre comércio entre EUA, México e Canadá], uma região preferida de investimento para os conglomerados norte-americanos, já está ressequido nesse aspecto. A proximidade com os EUA já não vale a pena, visto que o trabalho chinês é ainda muito mais barato. Um destino semelhante ameaça agora os demais países latino-americanos. Também as esperanças nos grandes investimentos chineses na Argentina e o no Brasil se frustraram rapidamente.
Em vez disso, nesse meio tempo as mercadorias baratas das indústrias chinesas (na realidade, produtos da terceirização transnacional dos conglomerados dos EUA e da União Européia) inundam os mercados latino-americanos. Certamente que as exportações latino-americanas para a China também aumentaram. Mas, em primeiro lugar, trata-se aqui de quase somente matéria-prima. Com isso, se reproduz via globalização apenas a antiga relação de dependência entre centro e periferia em nova configuração.
Em segundo lugar, as exportações para e as importações oriundas da China estão em desequilíbrio completo. Em 2005, as exportações do Brasil para a China subiram 9%, a importações, por sua vez, 50%. O crescente excedente de importações provenientes das zonas chinesas de economia exportadora vai de artigos de fogos de artifício, brinquedos, tecidos e sapatos até eletrônica, automóveis, aviões, aço e produtos químicos. A América Latina se vê ameaçada, dessa maneira, por uma nova desindustrialização.

Planos frágeis
O projeto de uma aliança antiimperialista entre os países exportadores de petróleo, a "revolução bolivariana" e a China, se revela inteiramente frágil quando o último elo da concatenação global é inserido na análise. Assim como a nova riqueza do petróleo depende da industrialização exportadora transnacional da China, esta depende do consumo dos EUA. Aqui se fecha o círculo. É unicamente o fluxo de exportação totalmente unilateral que atravessa o Pacífico o que sustém o pretenso crescimento.
A inundação dos mercados latino-americanos é apenas um efeito colateral da inundação dos mercados norte-americanos com as mercadorias oriundas da China. O consumo norte-americano, por sua vez, se funda essencialmente no afluxo de capital monetário transnacional, ou seja, em endividamento.
Os EUA são há muito tempo o país com o maior endividamento externo do mundo. A solvibilidade desse endividamento é garantida, no entanto, justamente pela posição dos EUA como a última potência mundial, sobretudo em razão da máquina militar sem igual.

Contradição
As políticas social e externa dos países exportadores de petróleo, subvencionadas com petrodólares, dependem portanto, em última instância, justamente da conjuntura que une a solvibilidade e o poder militar do próprio inimigo imperial.
Que contradição! Na verdade, Chávez precisa orar para que a potência má dos Estados Unidos continue intacta, já que, do contrário, o castelo de cartas dos sonhos políticos difusos desmorona.
É provavelmente o momento irracional mais profundo dessa constelação, que provoca o obscurecimento ideológico do suposto novo antiimperialismo, até chegar nas afecções anti-semitas.
Isso comprova uma vez mais que a luta pela emancipação social deve ser conduzida somente por um movimento transnacional vindo de baixo, sem o resseguro nacional da política do poder. O carisma antiimperialista com raízes nacionalistas e incrustado nos nichos econômicos incertos da globalização não pode pretender nenhuma sustentabilidade.

Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "Os Últimos Combates" (Vozes).
Tradução de Luiz Repa.


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