São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Em "Rui Barbosa", Bolívar Lamounier resgata a atualidade do pensamento político do jurista
As garras da águia baiana

Roberto Ventura
especial para a Folha

Sobre Rui Barbosa já se falou tudo, até que sabia falar todas as línguas vivas ou mortas, como mostram os depoimentos sobre a passagem da monarquia à república, reunidos por Gilberto Freyre em "Ordem e Progresso". Oswald de Andrade o ironizou, no "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", como uma "cartola na Senegâmbia", símbolo de uma cultura de gabinete, em que o falar difícil se traduzia em prestígio e poder. Advogado e político baiano, Rui Barbosa (1849-1923) se tornou uma figura mítica por sua atuação na Segunda Conferência da Paz, em 1907, que lhe valeu o apelido de "águia de Haia". Passou a ser idealizado como o brasileiro que tinha feito a Europa se curvar diante do Brasil, como dizia a canção de Eduardo das Neves. Seu triunfo em Haia foi seguido pela malograda campanha civilista, em que lançou sua candidatura à Presidência para combater os militares, representados pelo marechal Hermes da Fonseca, sobrinho do também marechal Deodoro, a cujo governo servira como ministro da Fazenda.

Intimidade do lar
O cientista político Bolívar Lamounier resgata, em "Rui Barbosa", a atualidade de sua reflexão sobre os fundamentos da democracia representativa. Pesquisador do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo, Lamounier já havia escrito sobre a formação do pensamento político autoritário na "História Geral da Civilização Brasileira", dirigida por Boris Fausto, além de ter publicado diversas obras sobre sistemas eleitoral e político. O livro contém ainda belas fotografias de Cristiano Mascaro, que retratou a casa de Rui Barbosa, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, sede da fundação que leva seu nome, revelando a intimidade doméstica do ilustre jurista. Rui Barbosa se tornou, segundo Lamounier, um dos críticos da República Velha (1889-1930), cuja letargia combateu no momento em que se fortaleciam as correntes antidemocráticas e as ideologias de Estado. Aponta suas posições pioneiras, sobretudo na campanha presidencial de 1919, em que se pronunciou sobre a questão social, defendendo os direitos dos trabalhadores rurais e propondo impostos sobre renda, terras improdutivas e também sobre heranças. Gilberto Freyre observa, porém, que nenhum homem público dos primórdios da República foi tão acusado de improbidade pela imprensa quanto Rui. Ministro da Fazenda do governo do marechal Deodoro da Fonseca (1889-91), levou adiante a política de crédito fácil do encilhamento, iniciada pelo último gabinete monárquico do visconde de Ouro Preto. A reforma bancária que decretou em 17 de janeiro de 1890 foi recebida com pesadas críticas até pelos ministros do governo. Concedeu inúmeros privilégios ao conselheiro Francisco de Paula Mayrink, presidente do Banco da República, que foram depois estendidos a outros grupos descontentes. Assumiu, logo após sua saída do governo, cargos de diretoria em companhias do banqueiro, que logo se tornaram insolventes. E o banco de Mayrink faliu em 1900 com grande prejuízo para os cofres públicos.

Administrador ingênuo
Alguns comentaristas, como San Thiago Dantas e Carlos Manuel Peláez, atribuem ao ministro o propósito desenvolvimentista de estimular a atividade econômica, sobretudo a industrial. Ficou porém com a fama de administrador ingênuo ou temerário ao autorizar vultosas emissões de dinheiro pelos bancos privados, que provocaram um dos maiores surtos de inflação do país e jogaram no caos o governo de Deodoro, deposto por um golpe militar em novembro de 1891. José Maria Belo comentou, na "História da República", que o fracasso de sua política financeira lhe pesou em toda a carreira pública, apesar de seus longos discursos de justificação e defesa. Tais críticas encontraram ecos na cáustica biografia, "Rui, o Homem e o Mito" (1964), de R. Magalhães Júnior, ou no estudo mais recente de John Schulz, "A Crise Financeira da Abolição" (Edusp, 1996). Jornalista incendiário, Rui apressou a queda do trono com violentos artigos no "Diário de Notícias", do Rio de Janeiro, em que atacava o imperador, d. Pedro 2º, como incapaz e demente e denunciava a corrupção no governo. Proclamada a República, foi não só ministro, mas também o principal redator da Constituição republicana. Fora do governo, converteu-se em duro opositor dos desmandos autoritários do marechal Floriano Peixoto e em tenaz crítico dos primeiros presidentes civis, Prudente de Morais e Campos Salles.

Molde americano
Lamounier considera que o país construiu um sistema político próximo àquele que Rui Barbosa imaginara, com um presidencialismo federativo de molde norte-americano. Não deixa, porém, de expor algumas contradições de seu ideário político, como o federalismo, introduzido na Constituição de 1891, que trouxe a descentralização do poder em benefício das oligarquias regionais que combatia. Ou o modelo presidencialista, que adotou no texto constitucional, apesar de sua preferência pelo parlamentarismo.
Rui jamais defendeu o direito de voto para as mulheres, que participaram de suas campanhas presidenciais, ainda que fosse favorável ao voto secreto, tido como necessário para moralizar as eleições. Foi ainda contrário ao voto dos analfabetos, concedido apenas em 1985, o que contribuiu para a lenta expansão do número de votantes, que só chegou a 5% da população total em 1930.
Bolívar Lamounier se mostra, porém, muito benevolente em relação a Rui. Filiado ao PSDB e defensor do governo de Fernando Henrique Cardoso, o cientista político adota posições social-democratas próximas às do jurista, para quem a liberdade econômica deveria ser restringida por uma extensão dos direitos sociais. Discute, em "Rui Barbosa", as idéias do "águia de Haia" de forma por demais abstrata, ao colocar em segundo plano as contradições entre suas doutrinas e a controversa atuação como jornalista, político e advogado no início da República. Afinal, tais contradições são o melhor e também o pior de Rui.



Rui Barbosa
127 págs., R$ 33,00 de Bolívar Lamounier. Fotografias de Cristiano Mascaro. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/ 537-8770).



Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras).


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