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Em "Rui Barbosa", Bolívar Lamounier resgata a atualidade do pensamento político do jurista
As garras da águia baiana
Roberto Ventura
especial para a Folha
Sobre Rui Barbosa já se falou tudo, até
que sabia falar todas as línguas vivas
ou mortas, como mostram os depoimentos sobre a passagem da monarquia
à república, reunidos por Gilberto Freyre
em "Ordem e Progresso". Oswald de Andrade o ironizou, no "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", como uma "cartola na
Senegâmbia", símbolo de uma cultura
de gabinete, em que o falar difícil se traduzia em prestígio e poder.
Advogado e político baiano, Rui Barbosa (1849-1923) se tornou uma figura
mítica por sua atuação na Segunda Conferência da Paz, em 1907, que lhe valeu o
apelido de "águia de Haia". Passou a ser
idealizado como o brasileiro que tinha
feito a Europa se curvar diante do Brasil,
como dizia a canção de Eduardo das Neves. Seu triunfo em Haia foi seguido pela
malograda campanha civilista, em que
lançou sua candidatura à Presidência para combater os militares, representados
pelo marechal Hermes da Fonseca, sobrinho do também marechal Deodoro, a
cujo governo servira como ministro da
Fazenda.
Intimidade do lar
O cientista político Bolívar Lamounier resgata, em "Rui
Barbosa", a atualidade de sua reflexão
sobre os fundamentos da democracia representativa. Pesquisador do Instituto de
Estudos Econômicos, Sociais e Políticos
de São Paulo, Lamounier já havia escrito
sobre a formação do pensamento político autoritário na "História Geral da Civilização Brasileira", dirigida por Boris
Fausto, além de ter publicado diversas
obras sobre sistemas eleitoral e político.
O livro contém ainda belas fotografias de
Cristiano Mascaro, que retratou a casa
de Rui Barbosa, no bairro de Botafogo,
no Rio de Janeiro, sede da fundação que
leva seu nome, revelando a intimidade
doméstica do ilustre jurista.
Rui Barbosa se tornou,
segundo Lamounier, um
dos críticos da República
Velha (1889-1930), cuja letargia combateu no momento em que se fortaleciam as correntes antidemocráticas e as ideologias
de Estado. Aponta suas posições pioneiras, sobretudo na campanha presidencial de 1919, em que se pronunciou sobre
a questão social, defendendo os direitos
dos trabalhadores rurais e propondo impostos sobre renda, terras improdutivas
e também sobre heranças.
Gilberto Freyre observa, porém, que
nenhum homem público dos primórdios da República foi tão acusado de improbidade pela imprensa quanto Rui.
Ministro da Fazenda do governo do marechal Deodoro da Fonseca (1889-91), levou adiante a política de crédito fácil do
encilhamento, iniciada pelo último gabinete monárquico do visconde de Ouro
Preto.
A reforma bancária que decretou em
17 de janeiro de 1890 foi recebida com
pesadas críticas até pelos ministros do
governo. Concedeu inúmeros privilégios
ao conselheiro Francisco de Paula Mayrink, presidente do Banco da República,
que foram depois estendidos a outros
grupos descontentes. Assumiu, logo
após sua saída do governo, cargos de diretoria em companhias do banqueiro,
que logo se tornaram insolventes. E o
banco de Mayrink faliu em 1900 com
grande prejuízo para os cofres públicos.
Administrador ingênuo
Alguns
comentaristas, como San Thiago Dantas
e Carlos Manuel Peláez, atribuem ao ministro o propósito desenvolvimentista de
estimular a atividade econômica, sobretudo a industrial. Ficou porém com a fama de administrador ingênuo ou temerário ao autorizar vultosas emissões de
dinheiro pelos bancos privados, que provocaram um dos maiores surtos de inflação do país e jogaram no caos o governo
de Deodoro, deposto por um golpe militar em novembro de 1891.
José Maria Belo comentou, na "História da República", que o fracasso de sua
política financeira lhe pesou em toda a
carreira pública, apesar de seus longos
discursos de justificação e defesa. Tais
críticas encontraram ecos na cáustica
biografia, "Rui, o Homem
e o Mito" (1964), de R.
Magalhães Júnior, ou no
estudo mais recente de
John Schulz, "A Crise Financeira da Abolição"
(Edusp, 1996).
Jornalista incendiário,
Rui apressou a queda do trono com violentos artigos no "Diário de Notícias", do
Rio de Janeiro, em que atacava o imperador, d. Pedro 2º, como incapaz e demente e denunciava a corrupção no governo.
Proclamada a República, foi não só ministro, mas também o principal redator
da Constituição republicana. Fora do governo, converteu-se em duro opositor
dos desmandos autoritários do marechal
Floriano Peixoto e em tenaz crítico dos
primeiros presidentes civis, Prudente de
Morais e Campos Salles.
Molde americano
Lamounier considera que o país construiu um sistema
político próximo àquele que Rui Barbosa
imaginara, com um presidencialismo federativo de molde norte-americano. Não
deixa, porém, de expor algumas contradições de seu ideário político, como o federalismo, introduzido na Constituição
de 1891, que trouxe a descentralização do
poder em benefício das oligarquias regionais que combatia. Ou o modelo presidencialista, que adotou no texto constitucional, apesar de sua preferência pelo
parlamentarismo.
Rui jamais defendeu o direito de voto
para as mulheres, que participaram de
suas campanhas presidenciais, ainda que
fosse favorável ao voto secreto, tido como necessário para moralizar as eleições.
Foi ainda contrário ao voto dos analfabetos, concedido apenas em 1985, o que
contribuiu para a lenta expansão do número de votantes, que só chegou a 5% da
população total em 1930.
Bolívar Lamounier se mostra, porém,
muito benevolente em relação a Rui. Filiado ao PSDB e defensor do governo de
Fernando Henrique Cardoso, o cientista
político adota posições social-democratas próximas às do jurista, para quem a
liberdade econômica deveria ser restringida por uma extensão dos direitos sociais. Discute, em "Rui Barbosa", as
idéias do "águia de Haia" de forma por
demais abstrata, ao colocar em segundo
plano as contradições entre suas doutrinas e a controversa atuação como jornalista, político e advogado no início da República. Afinal, tais contradições são o
melhor e também o pior de Rui.
Rui Barbosa
127 págs., R$ 33,00
de Bolívar Lamounier. Fotografias de Cristiano Mascaro. Ed.
Nova Fronteira (r. Bambina, 25,
CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/
537-8770).
Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical"
(Companhia das Letras).
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