São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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Reconstrução de uma época



Topbooks relança o clássico "Um Estadista do Império", de Joaquim Nabuco
ROBERTO VENTURA
especial para a Folha

Em sua casa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, Joaquim Nabuco revira os 30 mil documentos deixados pelo pai, José Tomás Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, senador e conselheiro de Estado do Império, que viveu de 1813 a 1878. Afastado do poder desde a queda da monarquia, pretende escrever a biografia do terceiro senador Nabuco de Araújo a partir de seus discursos parlamentares, pareceres jurídicos, projetos de lei e correspondência íntima e oficial. Sobre o senador, que refez parte das leis do Império, diziam os velhos conservadores: "Se deixarmos, ele reforma a Bíblia".
Nabuco começou a examinar os papéis em outubro de 1893, durante os meses da Revolta da Armada, quando as tropas do Exército e os rebeldes da Marinha se enfrentaram em bombardeios diários na capital da República. A população abandonava a cidade com medo dos projéteis lançados pelos canhões em terra e pelas fortalezas e navios na baía de Guanabara. Jovens se escondiam nas casas temendo serem recrutados à força para os combates. Os revoltosos, que se opunham à permanência do marechal Floriano Peixoto na Presidência, lutaram contra o governo até serem derrotados em março do ano seguinte.
Ex-deputado da monarquia, Joaquim Nabuco buscava refúgio dos tempos difíceis de consolidação da República na preparação de "Um Estadista do Império", em que recriou a história política do Segundo Reinado, tendo como eixo a vida do pai. "Ao revolver a poeira das nossas antigas lutas pacíficas", escreveu no prefácio, "eu ouvia fora o duelo da artilharia do mar e da terra nesta baía".
O primeiro dos três volumes de "Um Estadista do Império" chegou às livrarias em março de 1898, já no final do conturbado governo de Prudente de Morais, que varreu do mapa a comunidade de Canudos, no sertão da Bahia, após uma sangrenta guerra. O segundo volume saiu em agosto do mesmo ano e o terceiro em 1899.
A biografia é relançada agora em uma bela edição da Topbooks, que traz fotos e caricaturas de políticos e escritores da época. Inclui ainda artigos de Machado de Assis e José Veríssimo, além de ensaios dos historiadores Raymundo Faoro e Evaldo Cabral de Mello, que situam a obra na perspectiva atual. É uma publicação indispensável para quem se interessa pela história política brasileira, ainda que prejudicada por alguns erros de revisão, que merecem correção em futuras reimpressões.
Nabuco revela, em "Um Estadista do Império", a saudade que sentia do pai, com quem não conviveu na infância, e a nostalgia dos hábitos e costumes de outrora e do reinado de d. Pedro 2º, que elevou à categoria de "grande era brasileira": "Os homens tinham nesse tempo outro caráter, outra solidez, outra têmpera; os princípios conservavam-se em toda a sua fé e pureza".
O ciclo nostálgico de Joaquim Nabuco se completou com sua própria autobiografia, "Minha Formação", de 1900, em que conta sua ascensão à política como deputado e líder do movimento abolicionista. Fala de seus tempos de estudante nas faculdades de direito de São Paulo e do Recife e da infância no engenho Massangana, em Pernambuco, de propriedade dos padrinhos, em cuja capela foi batizado e onde conviveu com os escravos. Confessava, em suas memórias, a saudade que sentia dos escravos da família, tendo resolvido devotar a vida à causa da abolição.
Deu continuidade, com a biografia do pai, à análise da sociedade brasileira proposta em "O Abolicionismo", libelo contra o cativeiro que escreveu no exílio em Londres, na década de 1880, após ter sido derrotado nas eleições para deputado da monarquia. Lançou uma interpretação inovadora, que os historiadores seguem até hoje, ao tomar a escravidão como determinação social básica, cuja influência maléfica se estendia às diversas camadas sociais, desde os cativos, agregados e moradores, até a esfera dos proprietários, políticos e burocratas.
Explicou o baixo nível de vida da população como resultado do monopólio da terra nas mãos da grande propriedade escravista, que asfixiara as atividades produtivas e corrompera o sistema político. O próprio Estado inchara para absorver pelo emprego público os representantes da ordem escravocrata que não encontravam meio de vida no comércio ou em outras ocupações.
Lutando pela libertação dos cativos, o monarquista Nabuco contribuiu, de forma involuntária, para a queda da coroa. Mas defendeu, no Parlamento, o antigo regime até o fim contra o que chamou de "desforra do escravismo", que se abrigava à sombra da República. Considerava a monarquia uma forma política superior, que funcionava como um relógio perpétuo e estável, por não estar sujeita às crises periódicas ditadas pela eleição dos chefes de Estado republicanos. Mas, ao contrário de outros monarquistas, não alimentava qualquer esperança saudosista na restauração do trono no Brasil, cujo período considerava encerrado.
Nabuco inaugurou a biografia no Brasil com um livro singular, em que o retratado, Nabuco de Araújo, só interessa enquanto homem público. É lacônico sobre a vida pessoal e familiar do pai, cuja intimidade preserva com respeito e veneração. O leitor só tem acesso aos fatos que permitem compreender sua trajetória política, como o nascimento na Bahia, glorificada como a Virgínia brasileira, berço de estadistas, que retiveram da terra o espírito flexível e comunicativo. São relatados ainda seus estudos na faculdade de direito de Olinda ou sua atuação como juiz no Recife, que o fizeram incorporar do meio pernambucano o caráter de independência.
O biógrafo confessa que a vida do pai trazia apenas uma "vista lateral da sua época", já que a figura principal é o imperador, centro de todo o poder, apenas entrevisto em seu relato. Os estadistas retratados por Nabuco não são portanto heróis que moldaram a sua época, como os personagens do inglês Thomas Carlyle (1795-1881), que concebia a história como a biografia dos grandes homens. Nabuco evitou com isso a superestimação do indivíduo que, como observou Evaldo Cabral de Mello, é própria ao gênero biográfico, em que a ação individual adquire um peso excessivo.
"Um Estadista do Império" se torna emocionante quando Joaquim Nabuco toca em um dos pontos polêmicos da atuação do pai: sua conversão liberal. O senador Nabuco de Araújo rompeu com os conservadores e lançou as bases do Partido Liberal Radical, ao protestar em 1868 contra a demissão do gabinete de Zacarias de Góis e Vasconcelos.
O senador foi favorável, no Conselho de Estado, à demissão do gabinete liberal de Zacarias, que entrara em conflito com o marquês de Caxias, comandante das forças brasileiras na Guerra do Paraguai. Achava que o afastamento do general iria prejudicar as operações militares, mas se surpreendeu quando d. Pedro 2º desrespeitou a maioria parlamentar e substituiu o gabinete liberal por outro conservador, dissolvendo a Câmara e convocando novas eleições.
Nabuco de Araújo protestou contra a formação do gabinete conservador do visconde de Itaboraí e pronunciou, no Senado, o mais famoso de seus discursos, que seria citado até pelos republicanos, seus opositores políticos, no manifesto do Partido Republicano de 1870. Denunciava o Poder Moderador e o absolutismo da coroa, que reduziam o sistema representativo a uma farsa. Ainda que legal, o direito do imperador de nomear ministros e derrubar gabinetes era tão pouco legítimo quanto a odiosa escravidão, fato autorizado por lei, mas condenado pela civilização.
O pronunciamento do senador Nabuco ficou conhecido como o discurso do sorites, amontoado de silogismos ou de premissas que levavam a uma conclusão lógica: a falta de legitimidade do poder político, exercido em nome de maiorias parlamentares fabricadas pela Coroa. Exprimiu, com seu protesto, a revolta dos liberais e a crise da monarquia, que se prolongaria até o golpe militar que proclamou a República.
"Um Estadista do Império" foi bem recebido pela crítica. Machado de Assis observou que o livro era escrito à maneira refinada dos ensaios ingleses, que buscavam reconstruir uma época por meio de uma vida. O crítico José Veríssimo elogiou o estilo distinto do autor, capaz de atingir a eloquência do orador, sem cair na declamação estridente. Mas apontava algumas limitações, como a afinidade ou a simpatia com que retratava os políticos do Império, e censurava ainda a descontinuidade da obra, interrompida a todo instante por longas citações de discursos e pareceres, que representam, sem dúvida, o maior obstáculo à sua leitura.
Escrita no ostracismo, a biografia trouxe a reabilitação política de Joaquim Nabuco, logo convidado pelo presidente Campos Sales a chefiar a missão diplomática brasileira na questão de fronteiras com a Guiana inglesa. Foi nomeado, em 1905, embaixador em Washington, nos Estados Unidos, onde morreu em 1910.
Nabuco ocupou, nos últimos anos de vida, cargos diplomáticos que a República destinou a monarquistas como ele e seu amigo, o barão do Rio Branco, filho de outra eminência do Império, o visconde do Rio Branco, chefe do gabinete que aprovara a lei do Ventre Livre em 1871. O barão, ministro das Relações Exteriores de 1902 a 1912, tinha ajudado Nabuco na revisão das provas de "Um Estadista" em Paris e colaborou na redação de algumas de suas notas.


Roberto Ventura é professor de teoria literária na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras); prepara uma biografia de Euclides da Cunha.



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