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LIVROS - HISTÓRIA LATINA
O passado polifônico
Emilia Viotti da Costa publica no Brasil "Coras de
Glória, Lágrimas de Sangue"
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SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada
Com o plano de transformar
uma década de pesquisas num roteiro de cinema e fugindo a todo o
custo de discussões teóricas, a historiadora Emilia Viotti da Costa
passou pelo Brasil no último mês
para lançar aqui "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue", pela
Companhia das Letras.
O livro, lançado originalmente
em inglês em 1994, trata de uma
rebelião de escravos na Guiana em
1823, época em que a região era
colônia da Inglaterra. Duramente
reprimida, envolveu 12 mil escravos e incriminou missionários que
haviam vindo para o Novo Mundo
trazer a "mensagem de Deus". Estes religiosos foram acusados de
insuflar os negros, em suas pregações, a se rebelarem contra a
opressão dos senhores.
Restituindo os relatos dos personagens que vivenciaram o conflito
e fazendo-os dialogar com a realidade mais ampla da crise que vivia
a então metrópole, Viotti constrói
o que chama de "romance polifônico". Ou seja, a história contada
de diversos pontos de vista e remetendo aos acontecimentos políticos e econômicos mais amplos,
uma fusão de macro e micro-história, das transformações de curta
e longa duração. "Isso que está em
voga hoje, a história narrativa, eu
já fazia em 64. Mas é necessário ir
além, trazendo as análises estruturativas do passado para o nível da
narrativa", disse a historiadora em
entrevista à Folha.
Viotti, professora livre-docente
da Universidade de São Paulo, foi
aposentada pelo AI-5 em 1969 e
partiu para lecionar nos EUA, onde, hoje, dá aulas na Universidade
de Yale (EUA).
Folha - A que se deve o aumento
do interesse do mercado editorial
pela história? Aos temas exóticos
levantados pela nova história ou
pelo discurso "literário" que os historiadores têm almejado?
Emilia Viotti - Os livros, hoje,
não abordam problemas que são
do cotidiano do indivíduo, por isso também não têm leitor. Então se
apela às coisas pitorescas e os jovens vão atrás da diversão. Não é
uma literatura histórica que pretende explicar e sim uma literatura
histórica que pretende divertir,
entreter. É uma das funções que o
historiador pode ter na sociedade,
mas sem dúvida não é a mais importante.
Folha - E qual é a mais importante?
Viotti - É explicar por que as
coisas estão acontecendo da forma
como estão acontecendo em determinada sociedade. É evidente
que há um elemento de subjetividade nesta avaliação. Mas é possível controlar a subjetividade com
método. A subjetividade não invalida o conhecimento histórico.
Folha - Como vê as transformações do discurso historiográfico
neste século?
Viotti - Durante os séculos 19 e 20 houve um esforço
de dar à história um certo
status de ciência humana.
Hoje há também uma certa
suspeita, por
parte de uma
geração mais nova, deste status
científico. Isso acompanha o repúdio da razão, que politicamente
corresponde ao repúdio da burocracia, do Estado. Acontece, então, uma valorização do espontâneo, do particular. Quando se faz
isso, esquecendo que o Estado influencia a vida do cidadão, que as
leis que são aprovadas ou não podem ter um impacto, omite-se o
fato de que o indivíduo não é imune. Você perde a dimensão do social, a mais importante.
Folha - A nova história foi importada da França, onde a história tradicional já havia se desenvolvido
profundamente. No Brasil, faz
sentido reproduzir o formato da
nova história enquanto ainda existem grandes questões dentro do
campo da historiografia clássica
que não foram discutidas?
Viotti - Este é um problema da
cultura nos países periféricos. O
Brasil está sempre dependente das
vogas de fora. Existe uma dificuldade muito grande de nos enxergarmos dentro da globalização
sem perder a nossa identidade. Então, por que é problemático estudar a micro-história no Brasil sem
uma visão mais ampla? Primeiro,
porque as pessoas querem e precisam publicar livros depressa. Então, não podem se dedicar a uma
análise que demanda tempo para
que se possa imbricar a micro na
macro. Acaba-se publicando coisas que são impressionistas, que é
uma das características da nova
história: o subjetivismo elevado à
categoria de verdade.
A nova história criticou o reducionismo econômico e social. Ela
trouxe a outra dimensão, que tinha sido negligenciada, do discurso, da cultura, do ideológico, das
instituições. Mas caiu no extremo
de descolar esta dimensão do seu
todo. É uma história que nega a
existência de um processo histórico, ela não analisa de que forma
passado e presente se vinculam,
porque não te dá elementos para
entender isso. As pessoas se perdem na análise do particular.
Folha - A sra. acha que o que se
aproxima como caminho mais óbvio para a historiografia é a retomada do modelo clássico, ainda
que revisto?
Viotti - Eu acho que o que está
havendo hoje é uma volta da história que eu aprendi quando era menina. Hoje, que se esteja colocando
em circulação este tipo de literatura quase que romântica, é muito
significativo. Na França, a volta de
Jules Michelet é um fenômeno interessante. De repente passa a ser
um grande historiador. É um
grande escritor, há uma distinção
entre o grande escritor e o grande
historiador. Tanto melhor se um
historiador consegue ser um bom
escritor. Mas só isso não basta, ele
precisa ter discernimento.
Folha - Como a sra. situa "Coroas
de Glória, Lágrimas de Sangue"
nessa discussão?
Viotti - Eu não gosto de entrar
em polêmicas teóricas. Resolvi fazer uma demonstração de como
era possível fazer a síntese entre a
corrente de história mais tradicional, que analisa as grandes estruturas, e a nova história, que se
preocupa com a micro. Esta síntese produz uma história mais rica e
mais útil para a sociedade. Para
mim, era um desafio da historiografia contemporânea e ao mesmo
tempo uma realização de um trabalho de 30 anos como historiadora. Desde o tempo de faculdade eu
buscava uma história que agradasse e ajudasse o indivíduo comum a
entender o
mundo.
Folha - No
seu trabalho
existe um esforço em realizar um discurso literário,
sem cair na história romanceada. Em que
medida a senhora se serve
da literatura?
Viotti - Eu me interessei pelo fato de a literatura às vezes ter a capacidade de dar uma melhor visão
do passado do que o trabalho do
historiador. Podia-se ter uma melhor visão do século 19, por exemplo, lendo a literatura do período,
os romances que retratavam a sociedade da época. Esta qualidade
de ficção a história não era capaz
de comunicar, e eu quis uni-la ao
estudo histórico-científico.
Folha - O que a atraiu na figura
de John Smith, o missionário inglês acusado de insuflar os escravos e que morre na prisão?
Viotti - A forma de tratar o personagem mostra como eu analiso a
história. O missionário inglês que
vai para a colônia tem várias características comuns com outros missionários. Eles têm um objetivo,
uma missão, em comum com os
outros missionários, de levar a palavra de Deus para o Novo Mundo.
Mas, em algum momento, o particular se diferencia. John Smith se
sente indignado com a situação
dos escravos mais do que os outros
que estão com ele na colônia. É
uma coisa particular da vida dele,
que interage com aquilo que ele
tem em comum com seus pares. O
mesmo acontece com Jack Gladstone, por exemplo, o chefe da rebelião. Ele é um escravo como
qualquer outro, que traz consigo
todos os códigos de sua cultura.
Mas ele persegue a idéia mais do
que qualquer outro. Ele toma a iniciativa de começar o movimento, e
é uma iniciativa a princípio isolada, uma decisão individual, que
depois acaba se estendendo para
os outros escravos.
Folha - Como entrelaçar isto com
a macro-história?
Viotti - Você tem forças históricas operantes. Um grande império, como ele funciona e quais são
as suas contradições? Nesse momento ele está se transformando,
gerando valores novos, enquanto
a colônia continua escravista. Essas contradições estouram na vida
dos indivíduos. Então, é necessário estudar as contradições que
ocorrem em vários níveis.
Folha - Mas as contradições também têm um contexto...
Viotti - Sim. Não é uma contradição fora do tempo. É específica
daquele tempo em que as coisas
estão naquele nível. Se fosse olhar
a contradição entre senhor e escravo 50 anos antes, ela não seria a
mesma. A noção de direito que os
escravos têm -que trato no livro- também é uma noção que se
altera com o tempo. O que falta na
nova história é essa especificidade
do tempo histórico. O escravo
sempre existiu, mas o sonho de liberdade -que ele sempre teve-
mudou.
Folha - A sra. diz, no livro, que a
principal contradição daquele momento entre senhor e escravo não
era uma questão de trabalho, e
sim uma diferença profunda que
havia entre o que cada um deles
considerava certo e errado. Quais
as dificuldades para interpretar os
dois códigos?
Viotti - No começo do livro eu
explico as condições econômicas e
de produção da sociedade, a composição da população de escravos,
quantos vieram da África, quantos
nasceram aqui. Estes dados são essenciais para analisar como estas
contradições vão se manifestar.
Quando eu falo nos conflitos históricos que acho essenciais, é para
mostrar que uma história que só se
fundamenta no fenômeno econômico e social perde porque não
percebe como é que as pessoas estão avaliando -e as pessoas agem
de acordo com o que elas avaliam,
mesmo que a realidade que as informa não esteja presente na consciência delas. Por exemplo, o número de escravos africanos que
existiam em Demerara é uma realidade em que as pessoas que ali
viviam podiam estar pensando ou
não, mas era um fato que existia e
que tinha importância.
Quando um escravo sai da África, ele traz um script do que pode
ou não ser feito, do que é bom ou
mal, do que é bonito. E esse script
tem que se modificar. Assim acontece conosco. Você tem um script
que traz de casa, mas que tem que
se modificar de acordo com os embates que enfrenta na sociedade. O
mesmo ocorre com o escravo que
vem da África, com um script que
não pode pôr em prática porque
virou escravo. Mas aquilo não desaparece da cabeça dele.
O conflito de valores é uma coisa
importante. Mas esse conflito se dá
numa situação concreta. Qual é o
nível da produção? Está aumentando, está diminuindo, qual é a
relação com a metrópole? Existem
imbricações políticas, sociais,
ideológicas, econômicas, todos os
fatores que influenciam o que
acontece na história. Qualquer
omissão dá uma visão incompleta,
você violenta o real.
Folha - Então, a visão que deve
ser buscada é totalizadora?
Viotti - Sim, a visão que deve ser
construída é novamente uma idéia
de totalidade que se perdeu. É uma
totalidade dialética, porque tudo
remete às transformações que
acontecem na sociedade, que os
homens e mulheres fazem, mas
que uma vez feitas, passam a determinar gerações futuras, que
têm que se relacionar com a realidade que elas encontram.
Folha - A revolta em Demerara
explode quando começa a circular
entre os escravos rumores de que
os senhores na colônia estavam escondendo dos negros o fato de
que pessoas na Inglaterra, no caso
os abolicionistas, estavam discutindo sua situação e que o governo
inglês estaria de certa forma
afrouxando as regras da escravidão. Cobrar uma posição de seus
senhores em relação à discussão
na metrópole já não seria uma
aceitação do código dominante?
Viotti - O que ocasiona a revolta, que já estava latente, é realmente o boato que começa a circular de
que os negros eram livres. E de fato
este boato tinha um certo fundamento, porque se discutia esta
possibilidade de fazer a abolição.
Existem códigos, e a mensagem
emitida pelas elites é decodificada
em termos da experiência vivenciada pelas pessoas.
Hegemonia política é uma coisa
muito complicada, porque as pessoas não ouvem a mensagem do
mesmo jeito que ela é emitida. O
povo se apropria de um discurso
político que já existe. Foi essa a
idéia que eu desenvolvi neste livro:
como os escravos se apropriam da
linguagem, do discurso político e
das noções de liberdade que estão
sendo divulgadas, no termo em
que elas estão sendo usadas na Inglaterra, como é que elas estão
chegando a eles. Eu tracei como
eles conseguiram se informar, ouvindo as conversas dos senhores e
discutindo entre si.
Folha - Como historiadora da escravidão, como a senhora compararia a situação escravista em Demerara e a que houve no Brasil?
Viotti - Em Demerara, a população era predominantemente escrava. Aqui não. Na época da independência os escravos correspondiam a um terço da população brasileira. A relação colono e escravo
era outra. Demerara era uma colônia da Inglaterra, que se industrializou rapidamente. Portugal não o
fez no mesmo ritmo. Nem o Brasil,
que continuou escravocrata depois da Independência. As pressões externas são também diferentes. Por isso foi interessante ter estudado a escravidão no Brasil antes, porque pude comparar.
Folha - O que ficou intransponível ou lacunar no seu livro?
Viotti - A composição dos escravos é um tema que eu gostaria
de aprofundar. Fiquei curiosa sobre os costumes africanos das sociedades de origem. Não era essencial para a história, mas eu fiquei
muito interessada.
Folha - Que tema escolheria para
estudar em uma nova pesquisa?
Viotti - Existem no Brasil, várias questões intocadas. Por exemplo, as raízes do coronelismo. Tanto se escreveu sobre o coronelismo, mas até hoje ninguém explicou como se modernizou este sistema que nunca acaba, impera no
Brasil. O problema da miséria e a
desproporção da riqueza, como é
que, entra governo e sai governo,
continuamos com a mesma realidade e até pior, de certa maneira.
Folha - É seu próximo projeto?
Viotti - Pode ser, mas quero escrever também uma história do
Brasil. Devo, ainda, fazer um roteiro para o cinema com "Coroas
de Glória, Lágrimas de Sangue".
Acho que o enredo é bastante cinematográfico.
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