São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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LIVROS - HISTÓRIA LATINA
O passado polifônico



Emilia Viotti da Costa publica no Brasil "Coras de Glória, Lágrimas de Sangue"
SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada

Com o plano de transformar uma década de pesquisas num roteiro de cinema e fugindo a todo o custo de discussões teóricas, a historiadora Emilia Viotti da Costa passou pelo Brasil no último mês para lançar aqui "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue", pela Companhia das Letras.
O livro, lançado originalmente em inglês em 1994, trata de uma rebelião de escravos na Guiana em 1823, época em que a região era colônia da Inglaterra. Duramente reprimida, envolveu 12 mil escravos e incriminou missionários que haviam vindo para o Novo Mundo trazer a "mensagem de Deus". Estes religiosos foram acusados de insuflar os negros, em suas pregações, a se rebelarem contra a opressão dos senhores.
Restituindo os relatos dos personagens que vivenciaram o conflito e fazendo-os dialogar com a realidade mais ampla da crise que vivia a então metrópole, Viotti constrói o que chama de "romance polifônico". Ou seja, a história contada de diversos pontos de vista e remetendo aos acontecimentos políticos e econômicos mais amplos, uma fusão de macro e micro-história, das transformações de curta e longa duração. "Isso que está em voga hoje, a história narrativa, eu já fazia em 64. Mas é necessário ir além, trazendo as análises estruturativas do passado para o nível da narrativa", disse a historiadora em entrevista à Folha.
Viotti, professora livre-docente da Universidade de São Paulo, foi aposentada pelo AI-5 em 1969 e partiu para lecionar nos EUA, onde, hoje, dá aulas na Universidade de Yale (EUA).

Folha - A que se deve o aumento do interesse do mercado editorial pela história? Aos temas exóticos levantados pela nova história ou pelo discurso "literário" que os historiadores têm almejado?
Emilia Viotti -
Os livros, hoje, não abordam problemas que são do cotidiano do indivíduo, por isso também não têm leitor. Então se apela às coisas pitorescas e os jovens vão atrás da diversão. Não é uma literatura histórica que pretende explicar e sim uma literatura histórica que pretende divertir, entreter. É uma das funções que o historiador pode ter na sociedade, mas sem dúvida não é a mais importante.
Folha - E qual é a mais importante?
Viotti -
É explicar por que as coisas estão acontecendo da forma como estão acontecendo em determinada sociedade. É evidente que há um elemento de subjetividade nesta avaliação. Mas é possível controlar a subjetividade com método. A subjetividade não invalida o conhecimento histórico.
Folha - Como vê as transformações do discurso historiográfico neste século?
Viotti -
Durante os séculos 19 e 20 houve um esforço de dar à história um certo status de ciência humana. Hoje há também uma certa suspeita, por parte de uma geração mais nova, deste status científico. Isso acompanha o repúdio da razão, que politicamente corresponde ao repúdio da burocracia, do Estado. Acontece, então, uma valorização do espontâneo, do particular. Quando se faz isso, esquecendo que o Estado influencia a vida do cidadão, que as leis que são aprovadas ou não podem ter um impacto, omite-se o fato de que o indivíduo não é imune. Você perde a dimensão do social, a mais importante.
Folha - A nova história foi importada da França, onde a história tradicional já havia se desenvolvido profundamente. No Brasil, faz sentido reproduzir o formato da nova história enquanto ainda existem grandes questões dentro do campo da historiografia clássica que não foram discutidas?
Viotti - Este é um problema da cultura nos países periféricos. O Brasil está sempre dependente das vogas de fora. Existe uma dificuldade muito grande de nos enxergarmos dentro da globalização sem perder a nossa identidade. Então, por que é problemático estudar a micro-história no Brasil sem uma visão mais ampla? Primeiro, porque as pessoas querem e precisam publicar livros depressa. Então, não podem se dedicar a uma análise que demanda tempo para que se possa imbricar a micro na macro. Acaba-se publicando coisas que são impressionistas, que é uma das características da nova história: o subjetivismo elevado à categoria de verdade.
A nova história criticou o reducionismo econômico e social. Ela trouxe a outra dimensão, que tinha sido negligenciada, do discurso, da cultura, do ideológico, das instituições. Mas caiu no extremo de descolar esta dimensão do seu todo. É uma história que nega a existência de um processo histórico, ela não analisa de que forma passado e presente se vinculam, porque não te dá elementos para entender isso. As pessoas se perdem na análise do particular.
Folha - A sra. acha que o que se aproxima como caminho mais óbvio para a historiografia é a retomada do modelo clássico, ainda que revisto?
Viotti -
Eu acho que o que está havendo hoje é uma volta da história que eu aprendi quando era menina. Hoje, que se esteja colocando em circulação este tipo de literatura quase que romântica, é muito significativo. Na França, a volta de Jules Michelet é um fenômeno interessante. De repente passa a ser um grande historiador. É um grande escritor, há uma distinção entre o grande escritor e o grande historiador. Tanto melhor se um historiador consegue ser um bom escritor. Mas só isso não basta, ele precisa ter discernimento.
Folha - Como a sra. situa "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue" nessa discussão?
Viotti -
Eu não gosto de entrar em polêmicas teóricas. Resolvi fazer uma demonstração de como era possível fazer a síntese entre a corrente de história mais tradicional, que analisa as grandes estruturas, e a nova história, que se preocupa com a micro. Esta síntese produz uma história mais rica e mais útil para a sociedade. Para mim, era um desafio da historiografia contemporânea e ao mesmo tempo uma realização de um trabalho de 30 anos como historiadora. Desde o tempo de faculdade eu buscava uma história que agradasse e ajudasse o indivíduo comum a entender o mundo.
Folha - No seu trabalho existe um esforço em realizar um discurso literário, sem cair na história romanceada. Em que medida a senhora se serve da literatura?
Viotti -
Eu me interessei pelo fato de a literatura às vezes ter a capacidade de dar uma melhor visão do passado do que o trabalho do historiador. Podia-se ter uma melhor visão do século 19, por exemplo, lendo a literatura do período, os romances que retratavam a sociedade da época. Esta qualidade de ficção a história não era capaz de comunicar, e eu quis uni-la ao estudo histórico-científico.
Folha - O que a atraiu na figura de John Smith, o missionário inglês acusado de insuflar os escravos e que morre na prisão?
Viotti -
A forma de tratar o personagem mostra como eu analiso a história. O missionário inglês que vai para a colônia tem várias características comuns com outros missionários. Eles têm um objetivo, uma missão, em comum com os outros missionários, de levar a palavra de Deus para o Novo Mundo. Mas, em algum momento, o particular se diferencia. John Smith se sente indignado com a situação dos escravos mais do que os outros que estão com ele na colônia. É uma coisa particular da vida dele, que interage com aquilo que ele tem em comum com seus pares. O mesmo acontece com Jack Gladstone, por exemplo, o chefe da rebelião. Ele é um escravo como qualquer outro, que traz consigo todos os códigos de sua cultura. Mas ele persegue a idéia mais do que qualquer outro. Ele toma a iniciativa de começar o movimento, e é uma iniciativa a princípio isolada, uma decisão individual, que depois acaba se estendendo para os outros escravos.
Folha - Como entrelaçar isto com a macro-história?
Viotti -
Você tem forças históricas operantes. Um grande império, como ele funciona e quais são as suas contradições? Nesse momento ele está se transformando, gerando valores novos, enquanto a colônia continua escravista. Essas contradições estouram na vida dos indivíduos. Então, é necessário estudar as contradições que ocorrem em vários níveis.
Folha - Mas as contradições também têm um contexto...
Viotti -
Sim. Não é uma contradição fora do tempo. É específica daquele tempo em que as coisas estão naquele nível. Se fosse olhar a contradição entre senhor e escravo 50 anos antes, ela não seria a mesma. A noção de direito que os escravos têm -que trato no livro- também é uma noção que se altera com o tempo. O que falta na nova história é essa especificidade do tempo histórico. O escravo sempre existiu, mas o sonho de liberdade -que ele sempre teve- mudou.
Folha - A sra. diz, no livro, que a principal contradição daquele momento entre senhor e escravo não era uma questão de trabalho, e sim uma diferença profunda que havia entre o que cada um deles considerava certo e errado. Quais as dificuldades para interpretar os dois códigos?
Viotti -
No começo do livro eu explico as condições econômicas e de produção da sociedade, a composição da população de escravos, quantos vieram da África, quantos nasceram aqui. Estes dados são essenciais para analisar como estas contradições vão se manifestar. Quando eu falo nos conflitos históricos que acho essenciais, é para mostrar que uma história que só se fundamenta no fenômeno econômico e social perde porque não percebe como é que as pessoas estão avaliando -e as pessoas agem de acordo com o que elas avaliam, mesmo que a realidade que as informa não esteja presente na consciência delas. Por exemplo, o número de escravos africanos que existiam em Demerara é uma realidade em que as pessoas que ali viviam podiam estar pensando ou não, mas era um fato que existia e que tinha importância.
Quando um escravo sai da África, ele traz um script do que pode ou não ser feito, do que é bom ou mal, do que é bonito. E esse script tem que se modificar. Assim acontece conosco. Você tem um script que traz de casa, mas que tem que se modificar de acordo com os embates que enfrenta na sociedade. O mesmo ocorre com o escravo que vem da África, com um script que não pode pôr em prática porque virou escravo. Mas aquilo não desaparece da cabeça dele.
O conflito de valores é uma coisa importante. Mas esse conflito se dá numa situação concreta. Qual é o nível da produção? Está aumentando, está diminuindo, qual é a relação com a metrópole? Existem imbricações políticas, sociais, ideológicas, econômicas, todos os fatores que influenciam o que acontece na história. Qualquer omissão dá uma visão incompleta, você violenta o real.
Folha - Então, a visão que deve ser buscada é totalizadora?
Viotti -
Sim, a visão que deve ser construída é novamente uma idéia de totalidade que se perdeu. É uma totalidade dialética, porque tudo remete às transformações que acontecem na sociedade, que os homens e mulheres fazem, mas que uma vez feitas, passam a determinar gerações futuras, que têm que se relacionar com a realidade que elas encontram.
Folha - A revolta em Demerara explode quando começa a circular entre os escravos rumores de que os senhores na colônia estavam escondendo dos negros o fato de que pessoas na Inglaterra, no caso os abolicionistas, estavam discutindo sua situação e que o governo inglês estaria de certa forma afrouxando as regras da escravidão. Cobrar uma posição de seus senhores em relação à discussão na metrópole já não seria uma aceitação do código dominante?
Viotti -
O que ocasiona a revolta, que já estava latente, é realmente o boato que começa a circular de que os negros eram livres. E de fato este boato tinha um certo fundamento, porque se discutia esta possibilidade de fazer a abolição. Existem códigos, e a mensagem emitida pelas elites é decodificada em termos da experiência vivenciada pelas pessoas.
Hegemonia política é uma coisa muito complicada, porque as pessoas não ouvem a mensagem do mesmo jeito que ela é emitida. O povo se apropria de um discurso político que já existe. Foi essa a idéia que eu desenvolvi neste livro: como os escravos se apropriam da linguagem, do discurso político e das noções de liberdade que estão sendo divulgadas, no termo em que elas estão sendo usadas na Inglaterra, como é que elas estão chegando a eles. Eu tracei como eles conseguiram se informar, ouvindo as conversas dos senhores e discutindo entre si.
Folha - Como historiadora da escravidão, como a senhora compararia a situação escravista em Demerara e a que houve no Brasil?
Viotti -
Em Demerara, a população era predominantemente escrava. Aqui não. Na época da independência os escravos correspondiam a um terço da população brasileira. A relação colono e escravo era outra. Demerara era uma colônia da Inglaterra, que se industrializou rapidamente. Portugal não o fez no mesmo ritmo. Nem o Brasil, que continuou escravocrata depois da Independência. As pressões externas são também diferentes. Por isso foi interessante ter estudado a escravidão no Brasil antes, porque pude comparar.
Folha - O que ficou intransponível ou lacunar no seu livro?
Viotti -
A composição dos escravos é um tema que eu gostaria de aprofundar. Fiquei curiosa sobre os costumes africanos das sociedades de origem. Não era essencial para a história, mas eu fiquei muito interessada.
Folha - Que tema escolheria para estudar em uma nova pesquisa?
Viotti -
Existem no Brasil, várias questões intocadas. Por exemplo, as raízes do coronelismo. Tanto se escreveu sobre o coronelismo, mas até hoje ninguém explicou como se modernizou este sistema que nunca acaba, impera no Brasil. O problema da miséria e a desproporção da riqueza, como é que, entra governo e sai governo, continuamos com a mesma realidade e até pior, de certa maneira.
Folha - É seu próximo projeto?
Viotti -
Pode ser, mas quero escrever também uma história do Brasil. Devo, ainda, fazer um roteiro para o cinema com "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue". Acho que o enredo é bastante cinematográfico.



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